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Episódio #20: Não foi sonho

Capa de 'Oktubre' com o 'tiutlo do podcast

A criação e primeira fase de uma das mais icônicas bandas de rock argentino: Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota.

Incluída no contexto do rock dos anos ’80, contamos a estória desde o início underground durante a ditadura até os primeiros álbuns, já no início da democracia. É uma banda que irá fazer historia por 2 décadas, há muito o que contar. Aqui falamos da primeira fase do grupo.

A transcrição do episódio está aqui.

Participação especial da Cairo Braga interpretando o monólogo ‘No me miren‘ de Enrique Symns.

 

Referências :

Sobre as letras: https://redondossubtitulados.com/

O monólogo de Enrique Symns (ou seja, a versão que sobreviveu até hoje, aparentemente o monólogo foi apresentado mais de uma vez) aconteceu num dos shows nas Bambalinas em 84, aqui o concerto completo com relativa qualidade : https://www.youtube.com/watch?v=-_uyIk1OtLM&t=168s

Rocambole, arte y diseño: https://www.youtube.com/watch?v=xElN_dpoT2U

Biografia de Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota: ‘Fuimos reyes’, Mariano del Mazo | Pablo Perantuono: https://www.planetadelibros.com.ar/libro-fuimos-reyes-la-historia-completa-de-los-redonditos-de-ricota/318211

El Golpe 1976 Argentina – Crónica De Una Conspiración: https://www.youtube.com/watch?v=-gYCfFC3TfE

 

 

Transcrição do episódio #20: Não foi sonho

 

Apresentação do Patricio Rey antes até de se chamar assim (Carlos Solari, irmãos Beilinson e outros no palco do Teatro Lozano, La Plata, circa 1978)

Depois de mais um concerto no teatro Lozano, os principais integrantes que tinham subido no palco entraram num ônibus rumo ao bar El Polaco. Estavam exaustos, mas podiam descansar no ônibus já que estavam em La Plata, e o destino, o bar El Polaco, estava na cidade de Salta, a mais ou menos mil e duzentos kilómetros de distância, no noroeste argentino. Umas 15 horas se fosse uma linha reta, e garanto que não é.

Por que tocar tão longe ? Era o começo de ’78 e La Negra Poli e seu namorado Skay tinham conhecidos na região. Tinham mantido umas terras do pai do Skay, tentaram convertê-la numa bela farm hippie que deu mais ou menos certo, já que o lucro não estava nas prioridades. Era bem longe da cidade de onde eles eram, La Plata, mas na época a banda estava começando a se profissionalizar, embora ainda fosse um grupo artístico bem diverso.

‘Como vamos anunciá-los?’ perguntaram no bar.

Ainda não sabiam, nem mesmo o trio fundacional do grupo.

Skay Beilinson, La Negra Poli e Carlos El Indio SolariO trio era mais ou menos organizado assim: la negra Poli na estruturação de ensaios, representação para se apresentarem nos mais diversos locais, recolhimento das poucas entradas, divulgação no telefone e no boca a boca. Carmen Castro, conhecida desde sua época hippie como La Negra Poli, fazia sempre toda a administração do grupo e o seu apelido de polifacética grudou para sempre. Da era hippie tinha sobrado a rebeldia e a vontade de sustentar esse grupo artístico conhecido como Cofradía de la Flor Solar. Mãe solteira de milhares de histórias no underground da cidade de La Plata, agora era o motor silencioso e interno do grupo.

Outro membro do trio estrutural do grupo era Skay Beilinson, guitarrista e o cérebro musical da banda. De familia bem abastada, os irmãos Guillermo e Eduardo (pelos olhos azuis apelidado Skay) se afastaram do pai, que não desaprovava as carreiras musicais dos irmãos, mas também não ia financiá-la. “Ganharás o pão com o sudor de sua frente” e todas essas porra…

A relação melhorou depois do pai de Skay ter sido sequestrado pelo ERP em ’73. O ERP era o Exército Revolucionário do Povo, o braço das guerrilhas trotkistas que foi aniquilado na Argentina em 76, e continuou existindo até onde se sabe somente no Peru. Skay percorreu a cidade para levantar la plata para evitar el plomo. Skay e Poli já namoravam e depois casaram, e tinham ideias de estruturar o grupo desde que se formou a partir do aguante La Cofradia de La Flor Solar.

La Cofradía se juntava em um par de casas do centro de La Plata e foi a resistência cultural onde todos se conheceram, aquele ateliê/aguante, ou seja um local de acolhimento de almas perdidas, rejeitadas pela familia, ou perseguidas pela polícia, local que também era o de aproximação cultural que formou o grupo.

Mas o novo grupo se desfazia lentamente do passado hippie da Cofradia e começava a ser um grupo de punk-rock, ou rockabilly com melodías dos pampas, ou um background sórdido de um escuro bar onde se murmuram as verdades que a sociedade finge não existir.

Nessa metamorfose foi fundamental o terceiro membro do grupo, apresentado pelo Guillermo Beilinson para Skay: Carlos El Indio Solari. El Indio Solari nasceu no interior, em Entre Rios, mas fez a escola em La Plata, nunca terminou os estudos de artes mas sempre esteve ligado ao cinema e depois à música. Conheceu na adolescência a Guillermo Beilinson na Cofradía. Chegaram a escrever e produzir um curta, e nessa época Guillermo apresentou para El Indio ao seu irmão Skay, surgindo assim a dupla criativa da banda.

‘Como vamos anunciá-los?’ insistiam em perguntar no bar El Polaco em Salta. Poli devolveu a pergunta para eles. Qual seria o nome da banda? Ainda não tinham fechado um. Então um dos antigos insights ganhou e ficou Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota.

Patricio Rey já era invocado como uma entidade na época nas apresentações quando abriam ou fechavam com alguns monólogos. É como se os músicos fizessem o que essa entidade mandasse, suas marionetinhas. Um dos membros / entusiastas / professor de matemática do tempo das apresentações, o Docente, ou El Doce,de vez em quando distribuía para a plateia uns bolinhos de ricota. Não se sabe ao certo mas deve ter começado quando as apresentações do saltimbanqui grupo começavam numa hora incerta, não tinham hora para acabar e eram regadas a vinho barato. Alguém deve ter sentido fome entre meia-noite e 4 horas da manhã (várias vezes só foram embora quando expulsos pelos administradores do local).

 

El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota
El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota

Então a solução do nome da banda foi invocar um mix dessas duas ideias, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota, Patricio Rey sua entidade imagética e seus saltimbanquis redonditos. O nome dá o toque irônico que resume bem a intenção da banda: como se fossem governados por uma entidade, que evoca os poderes patriarcais e ambivalentes que dominam sempre, onde a arte apresentada é quase sua bênção divina. Soava muito bem com o jeito circense e irônico das apresentações onde, nas palavras do Indio Solari, muitas vezes se apresentavam 10, 12 pessoas e havia mais gente no palco do que na platéia.

Existem várias lendas do origem do nome da banda, e esta é uma delas. Outra menciona uma receita que viram numa revista antiga, onde uma Patricia Rey assinava uma receita de uns bolinhos e isso teria ficado na cabeça de alguns deles.

Um quarto ‘redondo’ foi o sempre presente Ricardo Cohen ‘Rocambole’, antigo amigo de Poli e bem ativo na Cofradía. Rocambole, como artista plástico, passou a ser responsável pela divulgação da banda. Nos anos oitenta isso significava estar nas reuniões da banda para saber quando

Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium - Buenos Aires, circa 1986
Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium – Buenos Aires, circa 1986

e como seriam as apresentações, desenhar a pincel os cartazes, reproduzi-los e colá-los ao redor do centro da cidade de La Plata -e arredores. Ele desenhou todas as capas dos Redondos, mas nas primeira épocas fazia e imprimia os lambe-lambe para espalhar na cidade.

Outros membros nada estáveis foram Sergio Mufercho Martínez e Enrique Symns, que abriam as apresentações com monólogos, o Piojo Ávalos e depois Walter Sidotti nas bateras, Daniel Semilla Buccarelli no baixo, Willy Crook nos saxos tão presentes em todas as composições dos primeiros anos, os coros das <Bay Biscuits> Claudia Puyó, Laura Hatton y María Calzada, entre outros.

Mufercho era um dos que abriam as apresentações falando em Patricio Rey, e outro o mítico fundador da revista punk ‘Cerdos y PecesEnrique Symns, que fez um dos mais celebrados monólogos (já em 84) no teatro Las Bambalinas e se chama ‘Não olhem para mim’ :  

 

Ele! Ele! Ele o fez ! Esse velho viscoso e chato ao que chamam de Deus, foi ele que fez ! Ele criou esta pantomima que chamam de “universo”. Ele separou as estrelas para que estivessem a infinitas distâncias entre si, para que a Ursa Maior com a Cruz do Sul nada aconteça. Longe, que tudo estivesse longe, que os átomos dançassem freneticamente, as moléculas entre si, sem que nunca copulassem. A vida, esse orgasmo retido. Ele, esse psicopata, esse psicopata criminal que condenou o universo à solidão porque ele estava só. É um velho só e entediado. Ele, essa gelatina espiritual nojenta, que sobe sobre as tetas do nada como uma lesma. Quem ejaculou esse ser miserável ?

Não olhem para mim ! Não olhem para mim ! 

Mas eu não venho a lutar contra ele, nem contra os seus eunucos, seus serafins e querubins. Foda-se este universo de cartolina, este mundo de merda. O que são vocês? Uns zumbis que ele treinou para dizer sempre ‘sim’.

‘Sim mamãe’, ‘sim papai’, sim, mestre, sim, meu tenente, sim chefe, sim senhor ministro, sim MORTE!

“Não, mamãe, não! Não vou parar de tocar uma! Vou correr pela casa toda com o pau gozado para passar ele no teu avental manchado de feijão de desespero, mamãe! Vem mamãe vem que tenho um negócio aqui !”

“Não, pai, não, não vou comer esse miolo de pão nojento. Eu não sou um antropófago que compra um paraíso artificial vendido por uns livros velhos escritos por esses caras horríveis.”

“Não tenente! Nada de um,dois, esquerda-direita! Vou marchar como eu quiser…”

“Não mulher, vou te ser infiel, vou fazer amor com o gato, o canário, a avó, a planta… “

Não olhem para mim ! Não olhem para mim, zombies ! Vocês me contagiam quando olham para mim ! O que querem ? Mais chocolate quente ? Mais samba ? Mais cocaína para espalhar pelo corpo pelas ruas violentadas pela polícia ? O que querem ? Mais desejo ?

Enrique Symns, “No me miren” (tradução livre)

Foi assim que Los Redondos se iniciaram como banda no começo de  ’78, em plena guerra fria e no mais escuro momento do último golpe militar da história argentina. Mas na Argentina houve mais de um golpe militar ?

 

 

Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955
Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955

Perón sofre o golpe em 55 com tanques nas ruas. Se asila na Espanha, o peronismo é banido. Nos próximos 30 anos não haverá nenhum governo eleito que consiga acabar o mandato sem sofrer um golpe de estado.

O ultracatólico tenente coronel Lonardi (seu lema era ‘Deus é justo’) irá suspender tribunais, o estado de direito, as associações gremiais e os partidos políticos. A ala mais radical dos militares vai derrubá-lo 2 meses depois -era muito mole. O novo ditador, Aramburu, vai radicalizar ainda mais o governo, abolindo também direitos trabalhistas, fuzilando opositores e fechando universidades.

Estudantes e professores sendo expulsos das universidades na Noche de los Bastones Largos, 1966, Argentina
Noche de los bastones largos

Após insurreições e caos, guerrilhas e mais fuzilamentos, Aramburu convoca eleições mas impedindo o peronismo de se candidatar. Em 57 ganha Frondizi, e acaba caindo antes do fim do mandato. São convocadas eleições pela mão do Senado e ganha Arturo Illia. Ele ensaia uma abertura, mas é derrubado 3 anos depois por Onganía, que irá inaugurar uma nova era de perseguições, incluindo ‘La noche de los bastones largos’, quando reitores e centos de professores foram expulsos das universidades apanhando num corredor polonês de policiais de cassetetes.

Montoneros, um novo grupo de guerrilha urbana,  sequestra e mata a Aramburu, além de ocorrerem massivos protestos contra o governo de Onganía como o Cordobazo, e ele cai. Os militares continuarão no comando até 71 quando finalmente permitem que o peronismo presente candidato. Perón ganha as eleições, mas deixa a ultra direita dominar o seu governo. Morre com menos de um ano de governo deixando a vice da chapa (e sua esposa) Isabelita numa posição política insustentável. Ela acaba sofrendo o golpe em 76 para um governo que cria um moedor de carne onde opositores são eliminados, silenciados, jogados ao vazio desde aviões, e só irão parar ante a protesta generalizada após a guerra suicida de Malvinas em 82.

Alto comando militar argentino no julgamento de 1985
Julgamento das Juntas Militares

A nova e frágil democracia consegue colocar na fila dos réus a todos os ditadores do antigo regime num processo chamado ‘Juicio de las Juntas’. Videla, Massera, Viola e Galtieri, entre outros, foram condenados a penas entre 10 anos de reclusão e perpétua. Videla e Massera, responsáveis pelo golpe em 76 e pela fase mais sangrenta desse terrorismo de estado, pegam perpétua. São inocentados nos 90, mas novamente condenados. Massera morre em 2010 de causas naturais, Videla vai para a prisão comum e vai morrer sentado na latrina da sua cela em 2013.

 

O show de Salta foi um desastre em termos técnicos, um fracasso em termos econômicos, mas foi determinante para a identidade da banda. Além disso, tendo um nome e uma identidade criativa, passou a aparecer nas revistas de música como Pelo e de variedades underground punk como a Cerdos y Peces (do Enrique Symns), que também publicava sobre feminismo ou sobre a situação desumana no maior complexo manicomial do país.

Este não muito humilde podcast vai se atrever agora a tentar classificar as músicas dos Redondos, tarefa ingrata que fazemos pelos nossos ansiosos e atrevidos ouvintes.

Conseguimos localizar tres tipos básicos :

  • Número 1: pops ou rocks para dançar, como ‘Pierre El Vitricida’, ‘O inferno está encantador esta noite’, ‘Maldição, vai ser um dia esplêndido’,  ‘Mariposa Pontiac’, ‘Eu não caí do céu’, ‘Meu cachorro dinamita’, ou ‘Ñam Fri Fruli Fali Fru’ . Era necessário tirar essa pressão horrível de anos sem poder se expressar. Eu ouvi e li muitas bobagens sobre o sentido de ‘ñam Fri Fruli’ mas claro que está falando da cocaína, que começou a invadir os arredores de Buenos Aires, rota do tráfico das montanhas andinas para a Europa. La frula é a cocaína, mas a música é quase uma ode a um escapismo, muito necessário, como ‘Eu não caí do céu’, uma confissão de ser humano e querer um pouco de diversão.

Algumas músicas fazem referência a drogas embora exista a lenda de que tudo nos redondos é sobre drogas. ‘Pierre o Vitricida’ por exemplo não quebra vidros cheirando ou ficando violento, é uma homenagem a um produtor, e aqui temos que fazer um enorme parêntese.

(Estou desenhando um parêntese)

Nessa época totalmente improvisada do underground era muito comum os ‘inferninhos’ e neles os Redondos, assim como outras bandas, passaram por muitos riscos de segurança. Mesmo no lançamento em Buenos Aires da banda no teatro El Cemento, era tudo improvisado. Pierre foi um produtor musical que apoiou muitas bandas underground mas era muito chato com a segurança, com razão. Um dia viu que onde iam tocar os Redondos, eles tinham limpado um dia atrás e estava encharcado, talvez por ter deixado alguma torneira aberta. Pierre tentou parar o show, discutiu e bateu portas quebrando o vidro de uma delas.

Redonditos de Ricota no El Cemento (na frente Carlos El Indio Solari de gravata torta, o resto da banda no palco improvisado e com uma parede de tijolo à vista atrás)
Redonditos de Ricota no El Cemento

A produção deu um jeito de secar o chão, mas a anedota ficou, e a verdade é que poderiam ter acontecido desastres como aconteceu depois no CroMagnon, onde houve algo parecido com o sucedido na boate Kiss no Brasil. São lugares bastante exploratórios que se colocam como salvaguardas da liberdade musical mas lucram com o perigo dos artistas e público toda noite, até hoje.

(O parêntese fechou)

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 2: histórias cinematográficas delirantes. Impossível classificar de outra forma narrativas como a que apresentou a banda, a faixa 1 de Gulp: “Barbazul versus o Amor Letal”. Está vagamente baseada na estória do assassino serial Landú apelidado de Barba Azul, mas é mais do que isso, é um pouco a descrição de como o mundo machista cria um arcabouço -tá bom, só vejo isso, foda-se, leia a letra e depois comente e me prove do contrário. Ah, e antes que queira criticar a letra há frases bem preconceituosas, porque são proferidas de forma misógina, que El Indio completava com danças no cenário para deixar a coisa bem ridícula (“velhas feias como macacos, blearghhhh”)

Outra nessa pegada descritiva é ‘Te voy a atornillar’ descrevendo uma relação tóxica (te pressiono demais, te asfixio demais, ‘como pode ser que te choquem os meus prazeres?’, gostaria de te espanar, vou te parafusar, vou te apertar, vou te ferir só mais um pouquinho).

Nesta categoria há uma particular descrição de pessoas ou lugares dessa época de um tardio punk argentino, muquifos mal iluminados com personagens duvidosos da noite que também será o ambiente de um posterior hit da banda, Masacre en el puticlub.

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 3: hits épicos do caralho. Em geral estão sob uma base 4/4 mas não rockera, como murgas ou ¾ quase tarantellísticos misturados a notas épicas que fizeram com que virem pogos monumentais.

Outro parêntese, desculpem.

Murga: é um ritmo popular principalmente no Rio de la Plata, de Buenos Aires e Montevidéu principalmente, para cantar estrofes no ritmo de marcha de carnaval.

Pogo: dança para fazer com amigos, com grupos de dezenas, centenas de pessoas às vezes só dançando e se entrechocando juntas.

Também se sentiam, de forma estranhamente orgulhosa, um tipo de vanguarda underground. Se considerar que a banda começa em 78 e grava o seu primeiro álbum em 85, a banda era madura, mas também demorou para poder se expressar, precisou esperar melhores tempos, e consegue de fato ter um espaço na frágil democracia que começava nessa época. Teve a maturidade de decidir gravar um álbum, somente quando houvesse uma coesão sonora e independência financeira. Mesmo que tenha demorado, só deixou mais consistente o resultado final.

As músicas em geral tinham uma tônica pessimista, de conseguir se divertir dentro de uma realidade opressiva.

Alguns dos títulos e frases das músicas : 

‘O inferno está encantador esta noite’

‘por fim vais gostar desta prisão’

‘vem para minha casa suburbana’ , ‘me deixa maluco tua prisão’

‘queimas tua vida nesta fila morna’

‘como vc está nestes dias, humano quebrado e mal em pé’

 

As músicas surgem dessa parceria entre eles El Indio Solari e Skay, que nunca teria ido pra frente se não tivesse uma pessoa como Poli para ‘tocar’ os assuntos dos shows, divulgação, organização geral, principalmente econômica e logística. Cada pequeno show, cada interpretação dava um caixa que Poli administrava e que deu a capacidade da banda de conseguir gravar todos os seus álbuns sem divulgação na mídia, sem grandes produtoras, sem produtor musical, gravadoras internacionais, vampiros da criação musical que desde sempre administram o rolê da edição e distribuição artística.

As bandeiras que Los redondos sempre irão manter erguidas: 

  • evitar a divulgação por meios oficiais como televisão ou vídeos (em quinze anos de banda somente há dois ou tres videos oficiais dos Redondos, e foram divulgados por meios independentes). Evitar os meios principalmente para não serem pautados por ela.
  • a música tem que unir, para dançar junto e não pode ser sequestrada por um grupinho intelectualóide que imagine ter o privilégio de entendê-la. As letras podem ser ambíguas mas tem frases de efeito, a música sempre leva à dança, evoca os movimentos de rua e não tem que compactuar com governos de turno.
  • nasceu underground, então tem que ser independente. Desde o primeiro álbum Los Redondos sempre fizeram questão de produzir o seu material e foram os responsáveis pela sua divulgação. Sem selos, gravadoras, marcas nacionais e internacionais depredando os ganhos, marcando suas exigências e operando na sua própria lógica do consumo.

Existe inclusive a anedota de terem sido consultados por Charly Garcia que quis produzir o grupo, e eles se negaram. Serem apadrinhados pela ‘elite’ musical da época não compactuava com a vontade de independência que eles queriam.

Eles tinham se tornado artistas na escura noite das ditaduras, no terrorismo de estado onde simulavam ser saltimbanquis, e depois adotaram a estética e preceitos punk para a vida toda mantendo uma saudável distância dos poderes que sempre condenaram.

Muitas vezes esses estandartes mantidos na força do braço levaram balas da artilheria pesada dos pombos mais variados: produtores musicais, managers, empresas que ofereceram o doce caminho do estrelato, até músicos de outras bandas. Nem todos saúdam o sucesso do coleguinha.

E nada, nada nos Redondos tem uma versão. O nome da banda, por quê foram para Salta, quantos baixistas houve antes do Semilla ser o definitivo por muitos anos, se foram presos e se sim, quantas vezes. Nunca há somente uma versão dos fatos, tudo tem pelo menos uma versão para cada participante do rolê. Isso acontece muito mais na interpretação das letras, que é algo que o Indio não gosta, então torce para o caos, para não explicar ao todo uma letra, mais do que o sentimento geral dela.

Gulp

Capa do álbum 'Gulp'
‘Gulp’ dos Redonditos

Em 83 veio a democracinha, uma criancinha que cambaleava entre problemas econômicos de um país destruído, sem indústrias, tendo perdido uma guerra, com as mágoas que o terrorismo de estado deixou, com milhares de desaparecidos, com uma herança de isolamento da política internacional e problemas fronteiriços. Mas as pessoas queriam falar de coisas mais leves, liberdade de se vestir, pensar diferente.  Após o caos, a guerra, o terror, queriam dançar. Vivendo a vida.

A indústria do entretenimento viu e acompanhou esse movimento e o pop entrou como nunca no país.

Los Redondos fizeram outra interpretação: não se render aos seus princípios, mas captar também esse sentimento, mantendo a consciência com letras fortes, mas outras somente para se libertar.

A cada show Los Redondos era menos um desfile e mais uma banda de rock. Rock? Não exatamente: os ritmos da época eram o ska, o rockabilly, e a banda adota junto outros ritmos populares, fazem rock com elementos da murga, invocam pogos. Mantém solos de guitarra e sax, algo que somente outra banda fazia também: Sumo, com os que se apresentaram mais de uma vez. Luca, o líder de Sumo pegou uma letra do Indio Solari (“Mejor no hablar de ciertas cosas”), que virou um sucesso com Sumo, assim como emprestaram o cenário para os Redondos numa parceria que durou até Sumo acabar.

Então, após uma boa lista de shows, conseguiram reunir o dinheiro suficiente para poder fazer seu primeiro álbum.

Foi algo totalmente independente: a gravação e edição ficou a cargo da MIA, Músicos Independentes Associados. Lito Vitale ficou encarregado da produção e edição técnica. A capa, feita por Rocambole, com riscos pretos e traços feitos em guache, o nome da banda na frente (Redondit -os na outra linha, mal escrito propositadamente) e o nome do álbum embaixo em laranja e verde. Cumpria o que se propunha, mostrava a proposta underground e se destacava nas lojas de discos.

Gulp começa com ‘Barbazul versus el amor letal’ cuja letra já comentei mas é digno de nota que a estreia foi arrojada, com uma música enigmática e uma ambientação bem inusual para o rock da época.

Gulp continua com o primeiro grande hino ricotero: “La bestia pop”. É uma letra bastante clara contra a música pop da época, feita não só como escapismo e sim para entreter uma massa de gente nas grandes mídias. “o meu herói e a grande monstro pop que nos sonhos ilumina a vigilia, que me fará dormir antes de contar até dez”.

Também fala da efemeridade de figuras da música, de se entregar à fama antes sequer de dar o seu melhor (‘morrem cavalos jovens antes de galopar’) ainda incluindo uma crítica aos rockeiros famosos que enchem grandes estádios (‘vou dançar o rock do rico, Luna Park’).

O solo do sax é uma dança arabesca e reflete muito bem a diversidade musical da banda, e a capacidade de fazer hits com ritmos inesperados. A voz e postura do Índio também eram inesperados no rock, um careca de óculos dançando de um jeito estranho com uma voz de freada de caminhão, como ele mesmo diz.Tres poses do Indio Solari dançando

‘Gulp’ tem músicas para dançar como ‘Alguns peligros sensatos’ que antes se chamava ‘golpe de sorte’  outros similares como ‘Ñam Fri Fruli…’ e ‘O inferno está encantador esta noite’.

No ‘o inferno está encantador esta noite’ a reflexão quebra a parede por primeira vez na banda, perguntando ao público o que ele realmente quer ouvir, e se estão qualificados para o espetáculo.

Outro fato importante é que eles tres (e também a maioria dos colaboradores na banda) já tinham uma longa estrada percorrida quando decidiram avançar com o projeto Redonditos de Ricota. No ano de lançamento do primeiro álbum Poli, Skay e Solari estavam com aproximadamente 35 anos. Então podiam falar isso para o público, desafiá-lo, e na mesma letra garantir: esta noite vou me comer a tua dor. Porque era um pouco isso, ter a valentia de questionar o público, mas deixar claro que estão no palco para dar um pouco de alívio e diversão.

‘Gulp’ foi um soco que ninguém esperava. Eles estavam maduros depois de 6 anos na estrada antes do seu primeiro disco, feito a pulmão uma apresentação atrás da outra, tem releituras de músicas que já tocavam ao vivo, mas sendo uma banda desconhecida do grande público, era todo material ‘novo’. Vale lembrar há horas e horas de temas inéditos, que nunca tiveram uma versão de estúdio, e eram distribuídos/pirateados/contrabandeados entre a galera, e existem até hoje vivos, apresentações minúsculas em cassetes esquecidos.

Mas ‘Gulp’ também circulou muito em fita cassette numa época em que o vinilo era caro, e uma vitrola ainda mais. E para uma banda que não tocava no rádio ficou rapidamente popular principalmente nessa forma informal de distribuição, que tanto elevou as vendas como impulsionou a popularização do lado underground da banda.

Nos primeiros tempos Gulp se juntou a centenas de gravações piratas das apresentações da banda, que era a forma de distribuição lenta porém mais efetiva que já tiveram.

Fizeram várias apresentações para o álbum, mas no geral passou batido na vida formal da Argentina 1984. Los Abuelos de La Nada, Soda Stereo, Fito Páez enchiam estádios , o underground era dominado por Sumo e Los Redondos só começavam sua caminhada.

Oktubre

Além de muitas apresentações, havia na banda o sentimento de que devia acabar a época underground de ser cultuada por um grupo requintado de intelectuais, se é que existiu alguma vez (se ler com cuidado a letra de Mariposa Pontiac, existiu sim um grupo de fãs das primeiras épocas que era da classe média alta e quis se apropriar do grupo, transformá-lo num objeto de culto).

El Indio Solari e Skay Beilinson passaram a se concentrar em materiais novos, e releituras de antigos. Estavam procurando a sonoridade da banda e com isso experimentando desde baterias eletrônicas até assuntos não convencionais para as músicas e letras.

Nessa época também ficaram impactados numa apresentação do Bolshoi, havia um esplendor do mundo soviético que agora não era mais proibido ser mencionado.  E também evocava um sentimento revolucionário que agora podia se expressar sem medo.

Assim foi maturado, fermentado, fervido e cozinhado a fogo lento o próximo e mais memorável álbum dos Redonditos de Ricota: “Oktubre”.

Rocambole montou a capa com fundo preto, desenhos de pessoas, a horda, a turba, a gentalha, em traços brancos contrastando com o fundo preto. Cada pessoa desenhada em traços firmes, no primeiro plano de traços crus, no fundo os punhos levantados. Levam bandeiras vermelhas, e no fundo se lê o título do álbum: “Oktubre” , com k mesmo, em letras vermelhas de sangue, o ‘b’ invertido imitando cilírico. Para mim , a melhor capa do rock argentino, quiçá do mundo mundial.

Na mesma época ocorria o Juicio a las Juntas, os julgamentos a todo o alto comando da última ditadura militar. Nas ruas havia sentimentos contraditórios. Por um lado uma grande parcela da população sequer tinha tomado conhecimento da ferocidade do regime, e os seguidos relatos das atrocidades cometidas, da perversão, truculência dos torturadores que maltratavam suas vítimas sem necessidade, e da coordenação nacional evidente das ações, despertou uma revolta geral que até agora faz com que apoiar o regime de ultra direita seja um tabu. Mas por outro lado, nem todas as feridas se curaram, porque muitos torturadores não foram julgados, pois pela lógica da obediência, o alto comando foi condenado, mas para julgar e condenar torturadores era difícil, pois em tese estariam recebendo ordens que não podiam ignorar, e poucos deles pagaram pelos seus crimes. Mesmo assim condenar, retirar a patente militar e dar perpétua para os principais nomes da ditadura foi um marco único no país e na região, porém o sentimento na época era de uma vitória amarga.

Contracapa do álbum 'Oktubre'

Em resumo, o que o argentino médio nessa época queria era que…

O álbum ‘Oktubre’ abre com as bombas e foguetes dos ‘Fuegos de octubre’, e o espírito da música bebe da fonte dessa estética soviética, para cantar que estamos sem estandartes, mas te prefiro igual internacional.

Cinco anos atrás por muito menos todos tinham sido presos e torturados. Uma letra ou um álbum assim seria impensável, teriam morrido.

O álbum todo é de composições novas e por isso é bem coeso musicalmente. Há muitas guitarras que se interpõem, o saxo em geral para os solos e para enfatizar a letra, como coros (as Bay Biscuits não estavam mais com eles nesta época).

Capa opcional do álbum 'Oktubre' com a igreja central de La Plata em chamas
Capa opcional do álbum ‘Oktubre’ com a igreja central de La Plata em chamas

Há também uma construção musical originalíssima, Skay e El Indio se permitindo altos vôos em ‘motor psico’, inicialmente inspirado num filme baseado em tres opiniões sobre o amor, mas que a música levou para um outro patamar, tenso, quase romântico sem ser piegas, profundo e lírico. 

o meu deus não joga dados, espero que esteja ao meu favor. Motor psico, o mercado de todo amor, o que deves, como podes ficar com ele?.

O centro do álbum é a música em que mais investiram na composição. Um ritmo tenso mas épico, com uma letra ambígua que até agora está entre as mais enigmáticas e ao mesmo tempo profundas da banda.

Apresentações do Los Redondos ao vivo de OktubreEl Indio sempre disse que sua tarefa é de dar dicas, mas não uma letra sequencial e com uma interpretação fechada. Mas no caso Jijiji se presta a muitas interpretações. A deste humilde podcast é que trata basicamente do medo de se converter em alguém desprezível, está dividida de forma clássica em tres estrofes que descrevem como nasce esse monstro psicopata, como se desenvolve, e depois o medo de nós sermos esse psicopata, de uma forma muito original e quase como um roteiro de cinema (lembrando que foi justamente o início do Guillermo Beilinson e El Indio, tentando fazer cinema). Mas está povoada de referências ambíguas, começando pelo nome que parece uma risadinha (para mim desse inconsciente que nos engana sempre) e muitas frases que podem significar muitas coisas.

O solo de guitarra da música se converteu na música dançada por mais gente ao mesmo tempo na historia do rock argentino, ‘el pogo más grande del mundo’ nas palavras del Indio.

Independentemente de records ou não, é uma música profunda de acordes épicos que tem impacto forte e que contém uma dança louca e um final trágico. Foi escrita para virar um hino, e virou mais do que um hino, uma dança geral de milhares de fãs.

Também foi para muitos o grande cartão postal da banda porque a música quebrou a bolha do underground, tocou nas rádios rockeiras, além de ter frases que entraram para sempre no imaginário argentino, como o ‘não era sonho’, revivido em 2014 na final do mundial no brasil, e novamente em 2022 com o triunfo em Qatar, só para mostrar que as imagens que gerou se reinventam a cada nova geração.

É bem difícil que uma música passe um sentimento épico, tenha uma dança no meio e termine de forma ambígua e trágica e seja um hino. Mas isso é Los Redondos, estamos num mundo louco que nos engole, vamos dançar, e toca profundamente os corações geração a geração.

El Indio Solari dançando e Skay tocando atrás 'Jijiji'No meio das composições abrimos a cortina e a realidade terrível se asoma. Na época em que o álbum é composto, acontecia o ‘Juicio de las Juntas’, os julgamentos à alta cúpula da ditadura militar do processo chamado Processo de Reorganização Nacional, a ditadura entre 1976 e 1982. Alguns dos momentos claves do julgamento foram televisados, a grande maioria dos argentinos se inteirava por fim dos desaparecimentos, torturas e desmandos dessas épocas, e em Música para pastilhas El Indio canta para os rockeiros bonitos que ‘ os bons voltaram e estão rodando cinema de terror’.

Entre divertido e sarcástico, El Indio canta quase gritando em ‘Divina TV Fuhrer’, ‘me afogo, caio a pique, gluglu’. A TV é sempre o espetáculo deplorável da massificação e do pior do ser humano, neste caso do desfile do que a TV impõe que é bonito.

Destoando do disco, a última faixa é um alívio descontraído chamado de forma bem irônica “Ninguém vai ouvir tua camiseta’ e que canta ‘você está efêmera, mas acredito em ti’ e que rejeita essa realidade opressiva e do cotidiano de ver notícias desagradáveis ( ‘outro sequestro, não!’)

É necessário celebrar a nossa mísera existência neste mundinho dos caraças enfiado no terceiro canto do universo e parar um pouco com a desgraça matinal das notícias.

Oktubre figura até hoje como um dos melhores álbuns de rock nacional, ‘Jijiji’ nunca sai da lista de 10 melhores do rock, e apresentou a banda para o público argentino que para sempre seguiu a banda desde então.

– 

Foi assim que Patricio Rey deu vida aos seus Redonditos de Ricota, que terão nos próximos anos altas produções, altos voos, e também desgraças porque a vida é assim mesmo, mas essa estória merece um outro episódio no futuro.

 

Paródia: “Picanha”

 

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você se surprende do que?

Você esperava o que?…

Milico não quer só picanha

Milico quer picanha

e pilulinha azul

Milico não quer só picanha

Milico quer Lulinha

na submissão…

Milico não quer só picanha

Milico quer medalha

Diversão, lazer

Milico não quer só picanha

milico quer apoio

pra tomar o poder…

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você precisa do que?

Você quer mais o que?

Milico não quer só poder

Ele quer o poder

e todo o prestigio

Milico não quer só poder

milico quer juiz

Pra vencer o litígio

Milico não quer

Só dinheiro

Milico quer dinheiro

E prosperidade

Milico não quer

Só dinheiro

milico quer sair

na impunidade…

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você se surprende do que?

Você esperava o que?…

Milico não quer só domínio

Milico quer domínio,

privilegios, bens,

Milico não quer só domínio

milico quer bem cheios

os seus armazém

Milico não quer só avião

Milico quer avião

recheado de pó

Milico não quer só avião

Milico quer ficar

longe do xilindró

Milico não quer só garimpo

milico quer garimpo

mas não ir em cana.

Milico não quer só prazer

milico quer prazer

com a bomba peniana.

Milico não quer

Só dinheiro

Milico quer dinheiro

E prosperidade

Milico não quer

Só dinheiro

milico quer sair

na impunidade…

Com prosperidade

na impunidade

Diversão, picanha

e bomba peniana

Picanha, impunidade, golpinho

Impunidade, golpinho, eh!

Impunidade, picanha, eh!

Impunidade…

VNP #09: Homem milico

Foto alterada sobre manifestação pedindo intervenção militar em Brasília

Já sabemos o que fazem os milicos de toda a América Latina. Embora queiram se associar aos libertadores que lutaram contra monarquias européias, a verdade é que essa casta armada é filha dessas monarquias. Tanto é que não reivindicam lutar contra o colonialismo e sim contra os monarcas europeus. Sempre quiseram ser a força contra os monarcas europeus, a favor dos monarcas das colônias.

Esses mesmos milicos reivindicam a memória do Duque de Caxias.

Até onde sei Duque é um título monárquico. Sim, o tal Luis Alves Lima e Silva foi membro do partido Conservador e combateu as revoluções que tentavam derrubar o monarca agora brasileiro, o braço da monarquia portuguesa que tomou o poder da colônia.

Não é coincidência que milicos atuais reivindiquem o Duque de Caxias. É uma característica de uma casta que se sente parte do Brasil mas não da República, e ainda espera voltar a tomar o poder, seja da mão dos ultraliberais, seja da mão de um maluco qualquer da extrema direita. A liderança das forças armadas continua estando na mão das famílias imperiais e dos grandes donos de terras, que tem um plano exploratório para o Brasil igualzinho ao plano monarquista português.

E não é coincidência terem protagonizado o pior governo em cuidado da saúde, na política internacional, na coordenação política… Porque a visão dos militares está em 64, no mundo da guerra fria, nos preconceitos de um mundo pós-guerra, num mundo ultra eurocentrista, que aceita a duras penas que povos originários tenham direitos ou sejam humanos.

É difícil pedir para um já idoso Lula combater essa elite idosa porém bem articulada da hierarquia militar, mas ela precisa ser extirpada do controle militar. Sim, isso passa por condenar, afastar e limitar atuais lideranças e colocar outras, mas a outra alternativa é que esse braço armado de lobos nunca domesticados volte a atacar um outro dia que sinta que a república enfraquece.

Tem que eliminar de uma vez por todas essa sanha militar de se acreditarem a força que permite que haja democracia, porque quando contrariados sempre teremos um novo 8 de janeiro.

Porque é sempre bom lembrar: milico é, sempre foi e sempre será golpista.

(Imagem de capa: imagem alterada a partir de foto de Eraldo Peres)

Episódio #19: Quiroga e a selva

 

É uma biografia sobre Horacio Quiroga ?

É uma tentativa de descrever um rio que atravessa teimoso a metade do continente ?

É a descrição de um dos últimos territórios argentinos que virou província, de tão desprezado ?

Um território que teve o maior número de missões jesuíticas do país ?

Uma descrição das associações literárias de começo de século ?

Talvez, mas também há muitas impressões sobre tudo isto, através da vida de Horacio Quiroga.

Observação importante: o episódio contém descrições que podem ser um gatilho. Se quiser conversar, acesse https://www.cvv.org.br/

Narração do @PensadorLouco no conto ‘A galinha degolada‘.

As músicas de ambiente são totalmente construídas pela equipe Por Outro Lado para este episódio.

A transcrição do episódio está aqui.

Transcrição do episódio #19: Quiroga e a selva

O rio Paraná nasce fatiando Mato Grosso e São Paulo. Serpenteia o pantanal dividindo os países do Paraguay e o Brasil. Depois ele teima em descer ao sul, tem um encontro épico com o rio que dá nome às cataratas do Iguaçu, e daí ruma oeste, separando Paraguay do nordeste da Argentina, indo depois para o sul novamente, desta vez até a bacia do Rio de La Plata e aí ele é liberto das terras, ganhando o oceano.

Essa parte do rio onde Paraguay fica ao norte é chamada de Alto Paraná. No trecho do Alto Paraná o lado argentino é a província de Misiones, nome dado por ter sido a região onde estavam os assentamentos montados pelos jesuítas, construídos e povoados por povos originários da região, principalmente de nações guaranis -chiriguanos, e talvez antepassados dos atuais mbya. No atual Brasil, guaranis nessa época tinham assentamentos na República de Guayrá, que hoje é praticamente o mesmo território do estado do Paraná. Na divisão territorial das nações ibéricas, esse lado ficou com os portugueses, os jesuítas foram empurrados para o oeste, os guaranis os seguiram porque valia mais a pena imitar a Jesus do que ser escravizado para construir o maravilhoso e rico estado de São Paulo, ao norte dessas terras. Mais tarde os jesuítas foram definitivamente expulsos, a fachada espiritual caiu, as missões abandonadas, e os guaranis caçados, sequestrados, escravizados ou mortos, e cada vez mais reduzidos a pequenos focos rebeldes que resistem até hoje. Eu deveria dizer que hoje fazem parte das nações democráticas do continente, votam e são votados, e seria até verdade, mas a proporção na qual isso acontece, o desrespeito e desprezo em que ainda vivem, diante das nações que já foram, não me permite ter esse otimismo todo.

Uma das missões jesuíticas que mais perduraram foi San Ignacio, no Alto Paraná. No começo do século XX, o governo argentino encomendou para Leopoldo Lugones um trabalho de levantamento das que na época já eram Ruinas de San Ignacio. Lugones era já um importante nome da literatura argentina e a ideia era construir um ensaio histórico, e para isso Lugones se propôs viajar até as ruínas das missões, e um dos seus amigos insistiu muito para acompanhá-lo. Era professor de letras no Colegio Británico em Buenos Aires e escritor promissor, mas ia como fotógrafo, um hobby que já dominava e prometia ser útil na viagem. Era Horacio Quiroga.

 

Horacio QUiroga jovem sentado numa cadeira

Horacio Quiroga nasceu no final (no final mesmo, em 31 de dezembro) do ano de 1878 em Salto, cidade uruguaia na fronteira com a cidade argentina de Concordia, separadas pelo rio Uruguai, no meio do caminho entre Buenos Aires e Misiones.

Embora tenha nascido no Uruguai, a família dele tinha laços com a Argentina. O seu tio-avô foi o famoso líder Facundo Quiroga que no início da república governou a província de La Rioja, no pé dos Andes, e foi um dos mais ferrenhos federalistas, opositores aos líderes conservadores de Buenos Aires.

Talvez por essa oposição e também pelo que Facundo representava, foi utilizado como contraposição entre civilização e barbárie, plasmada no livro do Sarmiento “Facundo o civilización y barbarie en las pampas argentinas”.

Facundo usava umas famosas costeletas praticamente unidas aos bigodes. Menem, presidente peronista dos anos 90 e também da mesma província de La Rioja, vai imitar essa moda 100 anos depois só para invocar a lembrança do Facundo … sendo ridículo, porque não tinha nenhum outro traço de Facundo -só as costeletas mesmo.

Horacio Quiroga estava em Buenos Aires depois de passar pelas primeiras tragédias de sua vida, algumas fortuitas, outras que parecem auto infligidas, a maioria delas envolvendo armas de fogo.

O pai de Horacio Quiroga morre num tiro acidental de espingarda com ele ainda bebê nos braços de sua mãe. A familia muda para Córdoba, Argentina. Sua mãe casa de novo, e seu companheiro vai criar os filhos. Mas irá tirar a própria vida depois de um AVC que o deixa com movimentos comprometidos e sem fala. A familia volta a Salto, Horacio termina os estudos, vai para a faculdade na capital Montevidéu, e mata acidentalmente o seu amigo Federico Ferrando (sim, era o nome dele) na tentativa de preparar uma arma para o duelo em que Federico tinha se metido. Horacio chegou a ficar preso uma semana pela estória ser tão bizarra, mas no fim foi absolvido.

Com a morte do pai ele usa o dinheiro da herança para fazer a viagem dos seus sonhos a Paris. Quiroga idealizava Europa como todos fazemos no cone sul. A sua viagem ao Velho Mundo foi decepcionante. Achou tudo caro, sobrevalorizado, frio, asséptico, gostando somente de paisagens para fotografar. Dono de um corpo magro e esguio, depois da decepção de Paris, Horacio Quiroga irá utilizar longas barbas mal cortadas que junto com penetrantes olhos azuis e olhar profundo sempre cativou as pessoas. A sua admiração aos poetas franceses continuou mas algo no seu espírito os tirou daquele pedestal.

Nessas épocas da faculdade, Quiroga começa seu tortuoso porém brilhante caminho de contista. Leitor dos franceses e admirador de Edgar A. Poe, terá seus primeiros contos publicados, alguns sobre o amor não correspondido, outros sobre estórias trágicas e o horror desvendado na última frase.

Funda um grupo literário, escreve para revistas e depois do episódio trágico com o seu amigo acaba por se mudar para Buenos Aires, conhecer o seu ídolo Leopoldo Lugones, o que os leva para a selva misionera.

Lugones, Quiroga e comitiva partiram em 1903 e conheceram principalmente San Ignacio, no Alto Paraná, a uns 100km da capital de Misiones, Posadas. Depois dessa viagem Lugones irá escrever o ensaio histórico ‘O império jesuítico‘.

A experiência de conhecer a selva no seu estado mais puro mudou Quiroga para sempre. Ficou maravilhado pelo bestial e arrebatador contraste dos restos de muralhas e salas de pedra com o inexorável passo da natureza, os peteribís, os guatambus e timbós atravessando pedra e muro.

Essa ocupação progressiva, inexorável e não violenta da mata selvática foi o que primeiro impressionou o jovem Quiroga.  Também foi seduzido talvez pelo sentimento de participar de um lugar isolado onde podia viver sem estar rodeado de humanos. Já sabia que não pertencia a lugar nenhum, mas aqui podia ser ele mesmo sem interferências humanas.

Quiroga volta para Buenos Aires, mas daí em diante irá alternar entre anos indo na selva e anos vivendo em Buenos Aires, mas mesmo na cidade sempre sonha em voltar à selva.

Primeiro tentou gerir uma fazenda de erva mate no Chaco, no noroeste de Misiones, mas foi um fracasso. Seus primeiros contos eram descrições melancólicas de amor ou descrições do terror como Edgar A. Poe fazia, criando um ambiente onde sabemos o que vai acontecer, mas a descrição visceral nos revela o horror nas últimas linhas.

Assim é “O travesseiro de penas” ou “Mel silvestre”. 

 

Em Buenos Aires ele leciona literatura, publica seus contos em revistas como Caras y Caretas, tem encontros literários com outros escritores, mas com os pensamentos em Misiones.

 

A primeira experiência real em Misiones foi o encontro com a vida na selva de um Horacio recém casado com uma de suas alunas, Ana María Cirés. Desse casamento nascem dois filhos, Eglé e depois Darío.

 

Ele constrói sua própria casa. Participa de tudo, desde o plano, passando pelo nivelamento do terreno, a construção dos jardins e da fundação em madeira da ampla casa perto do río Paraná. 

Mas como dissemos tudo em Quiroga tem o toque maldito da tragédia, fortuita ou auto inflingida: o que começou um casamento romântico cujos anos felizes lhe dão muita inspiração em contos como ‘Sublime Amor’, ‘Pasado Amor’ e ‘El amor turbio’, logo vira discussão todo dia onde as suas manias, sua obssessão pela vida na selva, a imposição a uma vida afastada do resto do mundo, faz Ana Maria odiar o lugar. Mesmo que tenham construído uma casa apartada perto onde moravam os pais dela, a educação orientada à vida na selva que ele dá aos filhos, com tudo sempre girando em torno a essa vida de ermitão, a pressão do marido fica insuportável.

Não conhecemos as circunstâncias, mas podemos deduzir que essa atitude opressiva de Quiroga, quase 20 anos mais velho do que ela, sedutor e autoritário, culto mas impaciente, deve ter feito com que ela fique nessa prisão. O que aparentemente aconteceu é que, após uma discussão, ela bebe um dos líquidos usados para a revelação fotográfica, que a deixa se contorcendo de dor, até morrer sete dias depois. As circunstâncias da morte são pouco claras; deduzimos essa atitude opressiva do que conhecemos hoje mas a culpabilidade do Horacio Quiroga não é citada explicitamente em lugar algum, inclusive às vezes é sugerido algum problema de ordem psicológica com Ana Maria. Quiroga ainda estava exercendo como juiz de paz. Era um juiz de paz bem relapso que escrevia os nascimentos, casamentos e falecimentos não no livro de atas e sim em papeizinhos que deixava numa lata de bolachas. À época da morte da esposa não consegue exercer suas funções que são assumidas por um amigo. Num arrebato de ódio dias após o falecimento dela, ele até queimou os pertences dela.

Viúvo, muito provavelmente se sentindo culpado, mal da cabeça e com pouco dinheiro, ele volta para Buenos Aires. Se concentra em criar os filhos e escreve contos para distraí-los, resgatando sua imaginação misturada com sua experiência na selva. É sem dúvidas sua época mais prolífica em termos de escrita. Os contos quase de fábulas para crianças são publicados em 1918 num livro chamado ‘Cuentos de la selva’, que até hoje é um clássico da literatura infanto juvenil.

Há a descrição de arraias de água doce que defendem um homem contra os tigres da selva, em vários deles os animais são os protagonistas, tartarugas, jacarés, flamingos e tigres, mas em vários deles há uma contraposição entre animais e humanos. Humanos contra tigres, filhos de quati e filhos humanos ou arraias e homens contra tigres. São contos não preocupados com uma moral, mas em geral mostram a supremacia e em certos casos ignorância humana, em contraposição ou em comparação com a riqueza animal, a riqueza poética, intelectual e diversidade animal sejam serpentes, quatis, arraias, formigas ou tigres.

Quando ele diz tigre não é o tigre asiático, refere-se à onça ou jaguaretê, o nome que os guaranis usavam, mas prefere colocar tigre provavelmente porque o seu público da cidade não está familiarizado com os outros termos.

Ele também cria seu contos dentro de uma lógica menos centrada em Buenos Aires, menos focada em interações humanas e com animais como personagens e a selva como pano de fundo.

Ele também cria, ou destila, ou se lhe escapam outros contos não para os seus filhos ou esse público infanto juvenil, e sim tentativas de revelar os seus próprios fantasmas, mais tarde compilados com o título certeiro de ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte’, entregando toda a sua alma em contos de terror ambientados na selva: o padre que fica louco bebendo um vinho feito de laranjas e que vê a filha transformada num enorme rato, que mata a machadadas. 

Há outro bem peculiar: um casal jovem e feliz, Berta e Mazzini, que tem um filho que após 18 meses perde as suas capacidades mentais : 

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; mas a

inteligência, a alma, e até o instinto, tinham desaparecido totalmente; tinha ficado

profundamente idiota, babão, molenga, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.

– Filho, meu filho querido! – soluçava a mãe, sobre aquela terrível desgraça de seu

primogênito.

Eles tem mais outro filho que também sofre convulsões aos 18 meses e tem o mesmo destino. E depois eles tem gêmeos, com o mesmo destino, quatro meninos `idiotas`.

Não sabiam engolir, mudar de lugar, ou sequer se sentar. Por fim aprenderam a caminhar, mas esbarravam em tudo, por não se dar conta dos obstáculos. Quando eram lavados, mugiam até ficar com o rosto em chamas. Somente se animavam com comida, quando viam cores brilhantes ou quando escutavam trovões. Então riam, pondo para fora a língua e rios de baba, radiantes em um frenesi bestial. Por outro lado, tinham alguma habilidade imitativa.

E mais nada.

Mas depois vem a única filha mulher, e ela cresce saudável, e após brigas do casal da tensão normal de criar 4 filhos com necessidades, ter a caçula iluminar a casa é uma bênção, fazendo-os esquecer de suas… aberrações.

Se nos últimos tempos Berta sempre cuidara de seus filhos, com o nascimento de Bertinha, ela praticamente tinha se esquecido dos outros. A simples lembrança deles a horrorizava, como uma atrocidade que a tivessem obrigado a cometer. O mesmo acontecia com Mazzini, embora em menor grau. Nem por isso a paz havia chegado às suas almas. A menor indisposição de sua filha fazia brotar o pavor de perdê-la e o rancor da sua descendência podre.

  

E um belo dia a mãe e a empregada nos seus afazeres, a empregada preparando uma galinha para o jantar pede para os filhos-aberrações saírem da cozinha. Mas a imagem fica na mente deles, e quando a irmã segura na cerca para ver o pai ir embora trabalhar, não duvidam, … é sua galinha. Prendem cada um segurando um dos seus membros, deixando sua cabeça na ponta da mesa da cozinha.

– Minha filha, minha filha! – correu já desesperado até os fundos. Mas ao passar pela cozinha, viu no piso um mar de sangue. 

Esta é uma rápida resenha e se for ler o conto ‘A galinha degolada‘ verá que há várias outras camadas. As culpas, as acusações mútuas do porquê dos meninos ficarem assim, o amor e o ódio intensos, os `idiotas`, os desejados, os rejeitados pela sociedade, o que as famílias ocultam. Muitas camadas de amor, de loucura e de morte.

 

Também continuam os contos quase fábulas. “A anaconda”, a saga das serpentes que tentam se unir contra os homens que as perseguem, mas as serpentes são eficientes para matar mas não confiam em si mesmas e acabam por trair umas às outras.

Mas quando a estória dos povos originários e a vida de Horacio Quiroga irão se cruzar ? Não irão se cruzar. Embora cite um ou outro personagem, algum cacique ou algum ‘indio’ no meio das matas, a vida de Quiroga estava entre os colonizadores, então não é que não houvessem reservas, mas são invisíveis a menos que nosso olhar seja direcionado para eles. Foi a forma de sobrevivência que estes povos encontraram, se confundir com a paisagem selvática.

O olhar da destruição claramente passa pelo talvez melhor conto de Horacio Quiroga, não muito citado: ‘Os desterrados’. Aqui sim cita um cacique, a destruição da mata para que seja `produtiva`, as plantações de cana de açúcar, erva mate, laranja, e entre eles os bóias fria do lugar chamados “os mensú”, ou seja os trabalhadores itinerantes que trabalham por diárias ou -mensualidades (mensalidades, pagamentos por mes). O protagonista do conto é o brasileiro João Pedro, um mensú, negro falante de portunhol e com ele exemplifica as relações da força de trabalho partir da saída dos jesuítas, transferida dos povos nativos para os imigrantes das tres fronteiras. Mas os métodos não mudaram muito: sua primeira paga é literalmente um tiro na mão. Abre a mão para receber, e recebe bala.

 

A partir daí a saga de João Pedro será vingar sua mão ferida e voltar a sua terra. No caminho encontra outro brasileño desterrado e juntos partem para essa aventura. Quiroga utiliza esse fio condutor para descrever a situação desses trabalhadores, as injustiças, as soluções para conseguir armas, se vingar, fugir. É o que resta aos desterrados.

Como sempre Quiroga usa as analogias para se descrever, desta vez não com animais e sim humanos contra humanos, onde todos perdem, onde a fronteira não significa mais do que cruzar um rio mas significa muito para o mundo dos humanos de papéis, permissões e linguas. O portunhol no conto é mais castelhano, para que o leitor de fala hispana compreenda melhor, mas é impecável nas expressões e expressa essa sensação de estar sempre fora de sua terra, de sua língua, de seu lugar.

Assim como ‘Pasado amor‘ era mais autobiográfico, descrevendo em detalhes como ele mesmo construiu sua casa na selva, esta época tem contos mais alegóricos e poéticos embora ainda autobiográficos de algum modo como Juan Darién, o tigre criado e educado como uma criança na escola, mas que é condenado por ser ‘selvagem’. Juan Darién terá uma saga tentando se encontrar como humano, mas finalmente aceita as rejeições do mundo humano, e se interna na selva.

Juan Darién é um tigre criado pela mãe que perde um filho, e que uma serpente ajuda a que pareça humano para os humanos. Quiroga é um humano que escolheu a vida na selva, se tornar um tigre, e é desprezado pelos humanos das cidades, revelado sempre como um estranho. Juan Darién é Quiroga, e Quiroga é um Juan Darién às avessas mas que sofre o mesmo problema de ser sempre um desterrado, um homem alheio à vida urbana e que acredita que a civilização é somente sua forma de vida e as outras são todas selvagens.

Quiroga foi sempre suficientemente excêntrico como para se preocupar com flertar com a loucura. Sua vida são os seus filhos, seus escritos, as memórias da selva. Sempre foi atacado pela morte trágica e talvez isso tenha afetado para sempre sua forma de ver o mundo, mas ao mesmo tempo nunca fez esforços para impedir ser o algoz de pessoas no seu entorno, mulheres e filhos. Essa tendência destrutiva, aliada com o sentimento de que viver isolado na mata misionera o salvaria, fez com que construísse uma personalidade arisca e abusiva, uma pessoa que fazia o que queria, do jeito dele e no seu tempo, alheio ao fato de arruinar a vida das pessoas ao seu redor.

É assim que constrói uma canoa do zero para navegar o Paraná desde Misiones até Buenos Aires, ou constrói a casa com outros dois pedreiros, ou coloca como meta plantar erva mate, ou construir uma engenhoca para afastar formigas, ou criar seus filhos para viver para sempre no meio da selva.

E como um amante dominador que geralmente seduz mulheres bem mais jovens, vai repetir esse comportamento abusivo mais de uma vez.

Sim, seu pai se matou com uma espingarda, seu padrasto se matou com outra espingarda quando uma doença o deixou preso a uma cadeira de rodas, ele mesmo Quiroga matou acidentalmente o seu amigo com um revólver tentando  limpá-la antes de um duelo, e assim as tragédias se enfileiram uma atrás da outra e é difícil que Quiroga não visse uma certa predestinação à catástrofe nesses fatos. Mas isso não justifica pressionar a mente de uma jovem e levá-la a achar que sua única saída é se matar. Nem justifica tratar os seus filhos como uma experiência do homem branco na selva, nem outros abusos constantes na sua vida, como a tendência a se apaixonar por mulheres jovens e tentar arrastá-las para a sua casa na selva.

Foi assim que, já em Buenos Aires com os seus filhos, compila os contos que publicava em revistas e os vende em livros. ‘Cuentos de la selva‘ é um sucesso, e até hoje usado nas aulas de literatura infantil. ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte‘ não vende no início, embora hoje seja um clássico. Mas outros escritores da época o reconhecem como grande contista, e frequenta o grupo literário ‘A anaconda’, onde faz amigos, inimigos, e conhece a poetisa Alfonsina Storni. Se apaixonam, ele tenta arrastá-la para a selva, e ante a negativa, ele para o seu assédio para algo platônico, o seu amor se transforma numa admiração mútua como escritores, confidenciando sentimentos e experiências por cartas.

Depois se apaixona por outra jovem, mas a família proibe o namoro e a afasta dele.

A forte personalidade e presença do homem dominador sempre aparece. E é assim que novamente Quiroga se apaixona por outra mulher bem mais nova, companheira de escola de sua filha Eglé. Depois de cortejá-la e começar a namorar, a pressiona para que viva com ele na selva. María Elena Bravo casa com Horacio Quiroga, eles se mudam para Misiones, começo idílico, nasce a filha María Elena “Pitoca”, Quiroga nadando na popularidade de sua personalidade do conquistador das selvas, do intrigante contador de histórias de serpentes, tigres e jacarés. Mas aos poucos María se desencanta da dura vida na selva , da personalidade opressiva do Quiroga que faz o que se lhe dá na telha, e começam os problemas conjugais.

Parece cena repetida de filme. Só que María Elena Bravo não é Ana María Cirés: separa do Quiroga e volta para Buenos Aires. Quiroga a pressiona, escreve cartas, tudo em vão. É a doença que faz María Elena não sumir da vida dele: Quiroga se queixa de dores abdominais, tenta se curar com plantas, nada resulta, e cabe a ela acompanhá-lo nos exames e visitas a hospitais. Primeiro em Posadas, capital de Misiones, depois em Buenos Aires.

E assim alguns conhecidos influentes conseguem que seja atendido no Hospital das Clínicas em Buenos Aires já no final de 1936. Enquanto faz exames e responde a tratamentos, fica sabendo da estória de um ‘fantasma’ que mora nos porões do hospital. Na verdade, mora no sótão por vergonha e o hospital faz vista grossa.

Quiroga se informa e vai a sua procura. É o Quiroga investigativo que não hesita em desvendar mistérios e cuja humanidade o faz ver através do olhar frio da sociedade.

O ‘fantasma’ é Vicente Batistessa, um envergonhado antigo paciente, portador de síndrome de Proteus, ou elefantíase. As suas deformidades o levam a se esconder mas após as conversas com ele, embora a fria navalha da ciência explique que não tem prognóstico e por isso não tem leito, Quiroga consegue retirar algo da humanidade que ainda resta em alguns responsáveis no hospital e Batistessa se instala num leito junto a ele.

Viram confidentes. De um lado o Quiroga reconhecido pela sociedade mas lastimado pela sua própria tempestividade, cansado de lutar contra sua teimosia, longe de sua querida mata misionera e entregue à medicina. Do outro lado o seu nada ilustre companheiro, sem prognóstico e condenado ao julgamento do olhar dos seus pares que não o reconhecem.

Batistessa se admira com Quiroga, que olha diretamente sua alma através do seu corpo irreconhecivelmente humano. Chega então a notícia de que Quiroga tem mesmo câncer de próstata em avançado estado, e que pelo atual estado terminal não será operado. Ele então sai do hospital com o intuito de se despedir de alguns entes queridos e fazer alguma papelada. Mas na verdade compra cianureto. Ele prefere afirmar o seu destino e decidir como e quando a sua vida acaba, um 17 de fevereiro de 1937; sua vida termina com a ajuda do seu inesperado companheiro que o assiste na sua última viagem.

 

Meses depois Alfonsina Storni também receberá o diagnóstico de um avançado estado de câncer de mama, e também irá escolher como e quando sua vida acaba: se joga no mar em Mar del Plata no início de 1938.

 

Lugones, que na época da viagem com Quiroga flertava com as ideias socialistas de começo de século, vai aos poucos se transformando num conservador admirador de heróis do passado, vai escrever um discurso fascista nos anos 30 falando em `hora da espada` e vai apoiar o golpe contra Hipólito Yrigoyen. Mais tarde, arrependido, abandonado pelos antigos amigos e desiludido por um amor não correspondido, irá tirar a própria vida com cianureto, aproximadamente um ano depois da decisão de Quiroga.

Assim é que tres integrantes do antigo grupo literário tiraram a própria vida num intervalo de menos de um ano, embora em circunstâncias bem diferentes.

Não posso julgar a vida e muito menos a decisão da morte de uma ratazana, quem dirá costurar opiniões sobre tres grandes nomes da literatura moderna argentina. Parece haver um senso de controle da própria vida no fato de escolher como dar fim a ela. Mas me atrevo a dizer que é um equívoco tentar igualá-las só porque tiraram a vida num intervalo próximo.

Alfonsina foi sempre uma lutadora que precisou abrir espaço num mundo machista e que fez seu nome nas letras sem nem mesmo um berço privilegiado. Tinha que trabalhar dupla jornada e escrever à noite, fez de tudo para ajudar a mãe e pagou a edição de seus primeiros livros com suas parcas economias. Ela decidiu `se vestir de mar` para poupar o tempo de um fim inevitável, que adiou tudo o que podia, só para estar mais tempo com o seu filho.

Lugones traiu seus próprios ideais e acabou por se encurralar emocionalmente ao ver que tinha ajudado a destruir o mundo ao seu redor.

Quiroga teve sempre amigos influentes que o ajudaram nos momentos difíceis. Mas tinha muitas culpas nos ombros, muitas dores no corpo e a monstruosidade de sua alma preferiu escolher o seu final, sendo acolhido curiosamente por quem era visto como um monstro mas que tinha mais humanidade do que médicos, escritores ou heróis de espadas.

Referências : 

Los pueblos indígenas que viven en Argentina, PROINDER, Secretaría de Agricultura, Ganadería , Pesca y Alimentos, 2008

América en diásporas. Esclavitudes y migraciones forzadas en Chile y otras regiones americanas (siglos xvixix)/ Editor: Jaime Valenzuela Márquez. Instituto de Historia, Pontificia Universidad Católica de Chile, 2017.

Los desterrados“, Horacio Quiroga, 1926

Cuentos de Horacio Quiroga (contos digitalizados): https://ciudadseva.com/autor/horacio-quiroga/cuentos/

 

Episódio #18: Todo aquel fulgor

Capa de 'Artaud'de Pescado Rabioso

 

Uma breve estória sobre a construção de um dos álbuns mais aclamados do rock latinoamericano, primeiro na lista de melhores de rock latino para a revista Rolling Stone, “Artaud” de Pescado Rabioso.

Roteiro: Julián Catino

Trechos do ensaio “Van Gogh, suicidado pela sociedade” de Antonin Artaud narrados por Henrique Oliveira dos podcasts “Errado Não Tá” e “Kit de Releituras Musicais“.

A transcrição do episódio está aqui.

A lista de músicas no episódio estão na íntegra e na ordem na playlist aqui.

‘Todo aquel fulgor’ é uma frase de ‘Cantata de puentes amarillos’ que traduzi mal e porcamente como ‘todo aquele brilho’ que é o que Spinetta pede que temos que trazer do exterior para a nossa comunidade:

En un momento vas a ver que ya es la hora de volver
pero trayendo a casa todo aquél fulgor, ¿y para quién?
las almas repudian todo encierro
las cruces dejaron de llover.

Traduzindo mal e porcamente:

“Num momento verás que é hora de voltar,

mas trazendo a casa todo aquele brilho , e para quem ?

as almas rejeitam toda reclusão

as cruzes pararam de chover”

 

Spinetta nos trouxe sempre todo aquele brilho em forma de musica, e por isso essa é a nossa homenagem a ele.

 

Transcrição do Episódio #18: Todo aquel fulgor

 

Estudios Phonalex. Rua Dragones 2250, Bajo Belgrano, Buenos Aires. Essa parte baixa do bairro de Belgrano fica entre o aeroporto para vôos domésticos, o aeroparque Jorge Newbery, e o maior campus universitário da cidade, a UBA, bem encostado ao Rio de La Plata que banha a cidade. Os estúdios Phonalex foram a casa de vários nomes importantes da música regional argentina, como Atahualpa Yupanqui, e do início do rock. Lá gravaram La Pesada del Rock & Roll, Sui Generis, Pappo’s Blues e também bandas del Flaco, Almendra e Pescado Rabioso. E no final de 1972 El Flaco está novamente nos estúdios Phonalex para gravar o terceiro álbum de Pescado Rabioso.

 

Luis Alberto Spinetta, El Flaco, fundou Pescado Rabioso assim que saiu de Almendra, uma banda mais para um rock hippie light e bucólico, um rock mais próximo de um Dylan, o primeiro herói do Spinetta. 

Logo de almendra, um jovem de verstido roxo com uma lágrima caindo e uma flecha de borracha na cabeça, representando a idiotice humana

Quem inadvertidamente descreve esta passagem de Almendra para Pescado Rabioso a partir das composições que inspirou é Cristina Bustamante, a primeira musa de Spinetta.

 

Cristina era a filha do segurança do prédio onde morava Emilio del Guercio, outro dos membros de Almendra. Passou a frequentar os ensaios da banda, a participar do redemoinho criativo de desenhos, leituras, conversas e muita música. Luis e ela se apaixonaram nessa época. A primeira composição dedicada a ela é um hino ao mais pleno amor adolescente que virou um hit quase instantâneo: “Muchacha ojos de papel”.

 

fotografia de Luis Alberto Spinetta quando jovem

Muchacha’ é uma das grandes construções poéticas do Luís, só sua voz e o violão. Suas letras acariciam ideias entre a visão idílica da menina entre a adolescência e o tempo de colégio, descobrindo sua liberdade, através de uma linha poética tão pura que parece uma canção de ninar.

Os membros de Almendra disseram que ele levou a letra já pronta e só fizeram arranjos e coros.

Muchacha’ foi um sucesso imediato e levou Almendra para a fama precocemente, algo que nem o Luis esperava.

Almendra irá fazer as primeiras ‘aventuras do rock’, encontros com a poesia beatnik, com o rock e blues americano, e sua latinização. Spinetta já tinha uma ‘queda’ por acordes diferentes dos clássicos do rock, e também ‘latiniza’ o rock de fora cantando em castelhano, uma novidade para a época, como faziam alguns outros, como ‘Manal’. O ‘baby’ nestes anos é traduzido como ‘Nena’ e por isso muitas músicas tem esse adjetivo nas letras.

Só que El Flaco foi se distanciando dessa sonoridade da banda e se aproximando do blues-rock e de solos mais longos, mais próximo do psicodélico, e termina por deixar Almendra.

Lá pelos 70 ele virou a chave para um rock mais para o blues provavelmente pela influência de um hard rock argentino da primeira hora, Pappo, do Pappo’s Blues. No início do Pescado eles se apresentavam juntos com o Pappo’s Blues, os dois tem muitos blues e riffs mais rockeiros. Enquanto Pastoral, Manal, o próprio Almendra estavam para o folk, Charly García estava para o progressivo mais sinfônico do outro lado, e Pappo num terceiro lado num blues mais cru, Spinetta decidiu explorar esse blues, mas com uma maior profundidade sonora.

É assim que começa Pescado Rabioso, com Amaya na batera e Osvaldo Frascino no baixo, que depois será substituído por David Lebón no baixo e esse power trio se junta depois Carlos Cutaia, que era convidado nos shows para completar com os teclados.

Pescado Rabioso se torna também um local para experimentar todas as ideias possíveis: um blues rasgado, um riff avassalador, um progressivo mais reflexivo, algo mais psicodélico, às vezes tudo isso na mesma canção. Há um fervilhar de ideias novas em todos na banda onde um puxa a criatividade do outro, e essa combinação ora é puxada pela poesia spinetteana, ora pela linha de baixo de Lebón, ora pelos teclados moog de Cutaia, …

Pescado Rabioso foi o grito musical de raiva no meio da loucura da realidade, atual até hoje, já que recentemente Eminem usou ‘Ámame Peteribí’ como base para o seu rap ‘Stepdad’ (eu acho que ele estragou um pouquinho colocando a letra dizendo que odeia o padrasto, mas enfim…).

Também tem belos momentos de puro encantamento, como no Rock da Selva Mãe (Rock de la Selva Madre) um hino hippie que tem todos os componentes do progressivo na sua mais alta expressão.

Seguindo a linha de músicas inspiradas pela primeira grande musa de Spinetta, a segunda música influenciada por Cristina Bustamante abre o primeiro álbum Desatormentándonos, que já tem um Spinetta completamente diferente.

Blues de Cris’, um blues forte com El Flaco confessando que está ‘cansado de falar com Cris’ e sua mente está, como diríamos hoje, com um duplex da Cris na cabeça. Da mesma forma que confessa que ‘seus olhos esquecerei’ diz que tem que respeitar o seu silêncio. Já confessa o fim da relação com um rock pesado mas com um lirismo único.

Atado ao meu destino, no limiar do meu caminho voltarei’. Assim como reconhece que não faz mais parte de sua vida, irá influenciá-lo ainda.

Essa época de Pescado Rabioso eles tem a ousadia de simplesmente anunciar o lugar onde irão tocar, e o lugar lota. Era a comunicação boca a boca do início do rock que sem redes sociais nem internet conseguia levar milhares de adolescentes aos eventos onde quiser que eles tocassem.

As composições de Pescado Rabioso tem arpegios complexos, terças e quintas em acordes inesperados, riffs contundentes e uma sincronia melódica única para aquela época. As letras tem influências do Spinetta da poesia dos franceses como Rimbaud e Baudelaire, assim como influência dos beatnik a Carlos Castaneda. Pescado Rabioso é um trem cuja caldeira arde de rock, seu trilho é o blues e o maquinista nos leva a países da poesia. Provavelmente havia uma pesada experimentação psicotrópica, mas também um trabalho musical exaustivo para criar músicas que são clássicos até hoje.

 

Um grande exemplo desta veia de Pescado Rabioso é a última música desse álbum, ‘Serpiente (Viaja por la sal)’. Nesta época as letras de Spinetta passeiam pelo surrealismo, misturando impressões do dia com visões do mundo tirados de uma imaginação quase cinematográfica. É um rock com um pé no progressivo, mais heavy com uma potência sonora que nenhuma outra banda tinha.

 

É claro que os tempos na Argentina eram terríveis, a volta de Perón do exilio e sua subida ao poder com a sua nova esposa Isabelita foi midiática mas em termos práticos, efêmera. Pouco depois de um ano depois da posse, Perón irá morrer deixando um governo fraco que deixava para trás os sonhos da justiça social. Ele mesmo tinha enterrado esse sonho no retorno ao seu país, quando deixou a ala direita do partido abrir fogo contra membros da esquerda no que seria a sua festa de volta do exílio. Nos meses seguintes, depois da carta branca de Perón para a ultra direita, enquanto as facções disputavam o poder dentro do mesmo partido, a direita fica cada vez mais violenta e passa a realizar o seu plano de eliminação de inimigos. Ante a violência da ultra direita do partido peronista que passou a eliminar membros da esquerda, que respondiam com sequestros e atentados, em 24 de março de 1976 os militares irão destituir o governo peronista e protagonizar um dos governos mais brutais da história moderna do continente.

A banda nesta época está num momento de intensa criatividade e é por isso que o segundo álbum é duplo, o que provoca inclusive problemas com a gravadora, que queria mais um terceiro álbum, mesmo que este ‘valia por dois’, tanto pela quantidade como pela qualidade sonora.

E como demonstração da importância da relação do Spinetta com Cristina, no segundo álbum há outro rock/blues dedicado ao fim da relação : ‘Como el viento voy a ver’, um rock que começa acelerado para depois parar e passar a um blues lento e melancólico. Porém mais complexo e com uma cadência que o rock argentino desconhecia. E era isto que Almendra nunca lhe iria dar e que é o ápice de Pescado, essa revolta de um rock blusero mas onde é possível improvisar, encontrar novos acordes, novas possibilidades dentro de um rock rasgado e sentido. A letra é bastante clara em confessar que cada um deles, Luis e Cristina, abandonaram a relação (você não me deixou, eu também não te deixei).

Mas os outros integrantes estavam frustrados de viverem numa época prolífica, criativa, mas terem pouca influência nas ideias da banda.

 

Para o terceiro álbum, Cutaia e Lebón queriam colocar suas ideias em pauta, mas Spinetta já tinha muitas composições em mente e não pensava abrir mão delas. Foi assim que El Flaco chegou nos estúdios Phonalex, no Bajo Belgrano, para gravar o terceiro álbum da banda Pescado Rabioso.

 

As discussões entre eles se tornaram silêncios, que depois viraram ausências. Primeiro um, depois outro, cada um deles foi abandonando o projeto. E Spinetta ficou só.

 

El Flaco ia ficar sozinho esperando em Dragones 2250. Mais ninguém ia aparecer, e as gravações foram canceladas.

 

Talvez dominado pela raiva de ter sido abandonado, ou talvez porque tinha um propósito muito firme, decidiu que seguiria com seu plano de um próximo álbum. E eram os outros integrantes que tinham abandonado o projeto e por isso seria o último álbum de ‘Pescado Rabioso’. Ele era ‘Pescado Rabioso’ agora e faria o que achava melhor. E sua ideia era um álbum que aos poucos tomou forma com a ajuda do seu irmão Carlos Gustavo* e um ou outro colaborador, sendo o resto inteiramente composto e interpretado por El Flaco. Era um álbum que passou a chamar ‘Artaud’.

Antonin Artaud influenciou as artes na França no início do século XX. Sua conexão com o dadaísmo e com o surrealismo, aliado a mal estares físicos reais nunca bem diagnosticados (talvez associados a uma meningite que sofreu de jovem), o fizeram ter o estigma de ‘louco’, que o forçou a padecer uma longa caminhada  por manicômios durante boa parte de sua vida. Houve diversas tentativas de tratamento. Artaud foi, como outros casos precoces do início de século, uma vítima do sistema manicomial, sistema este que não sabia bem o que fazer para protegê-lo de suas crises e o utilizou como cobaia para os tratamentos mais macabros, desde eletrochoques a tratamento com láudano, que o levou a uma adicção a opiáceos.

 

Artaud foi escritor, dramaturgo, poeta, mas sempre se considerou primeiramente ator. Um ator do maldito que tentava captar os sentimentos mais primitivos. Escreveu o manifesto ‘teatro da crueldade’ expondo sua ideia ser necessário entregar o público aos seus maiores conflitos da forma mais visceral possível. Seus escritos tinham uma poesia incomum que valorizava o ritmo das palavras e um certo non-sense que herdou dos dadaístas, mas também escreveu muitas cartas e manifestos expondo a falência do sistema manicomial e da própria vida moderna que se esconde atrás de uma pretensa sanidade. A loucura e a razão são temas que aparecem nos seus escritos, sua única e mais clara forma de protestar para médicos que o usavam de cobaia sustentados numa razão bem questionável.

 

Spinetta leu Artaud desde muito cedo. Seu sentimento sobre a miséria humana, seus questionamentos sobre a arte, a loucura e a suposta razão dos homens o surpreendia e inspirava. 

Retrato de Antonin Artaud numa de suas repsetntações, de boina e cachecol

O inspirava sim, mas principalmente empurrando-o a responder que a poesia e o amor tinham que vencer, mas que sim havia dissabores. Era necessária uma resposta para Artaud. Ele estava com várias delas em forma de música, e essa música era somente o pano de fundo para uma profunda poesia.

 

Então quando Spinetta ficou só, conseguiu ter tempo para se afastar de suas influências musicais como Deep Purple, Led Zeppelin, Pink Floyd e das letras como Rimbaud ou dos sinfônicos como Genesis. Spinetta queria soar como Spinetta do começo ao fim, não se parecer a mais ninguém do que ele próprio.

 

Essa viagem toma como inspiração alguns dos ensaios de Artaud, mas é somente um ponto de partida a partir do qual Spinetta começa suas reflexões.

 

O álbum começa com uma balada que nasceu a partir, ora quem diria, de uma conversa com Cristina Bustamante, agora como amigos que confidenciam seus problemas terrenos. Cristina tinha acabado um relacionamento e estava grávida. A partir das conversas entre eles, onde Luis se viu apoiando que não abortasse porém sabendo que criar um novo ser vivo requer responsabilidade e em definitiva é um ser que deve ser criado com cuidado mas para que seja livre, nasce um dos seus maiores hinos: “Todas as folhas são do vento” (Todas las hojas son del viento).

Spinetta depois também comentou que ficava preocupado vendo pessoas do seu meio que precisavam mudar sua postura ao terem filhos e sair da balada eterna das noitadas -por isso ‘cuida ele das drogas, nunca o reprimas’, ou seja tomar conta mas criar uma pessoa com a liberdade que ela merece.

Porém as folhas são do vento, todos afinal avançamos de forma inexorável para a morte. Essa poesia crua e direta evoca as feridas que Artaud tocava sem medo.

Essa menção à morte segue para mais um (quem diria) blues rasgado ‘cemitério clube’.

Há várias interpretações possíveis: sobre a morte de um relacionamento e o rancor que fica (‘que calor fará sem você no verão, ou seja, como você é fria!’, ou ‘assim que pensei em você, caí morto’), mas também pode significar a desolação de um governo perverso que deixa como legado uma legião que cultua cemitérios, onde Spinetta canta como uma alma penada ‘Quem deu ao pequeno deus o cetro cinza do abismo ?’.

Musicalmente Spinetta aquí parece se apoiar da suposta simplicidade do blues para criar uma harmonia inusual e um clima único que nos fazem até duvidar dessa simplicidade.

A próxima música é uma poesia concreta jogada na cara, do nada, e cantada somente com o violão. As palavras se concatenam de forma quase surrealista, pintando ideias num filme que só acontece na nossa mente através dos conceitos que as palavras significam ou que trazem à tona somente pela sua sonoridade.

Já no meio do álbum a diversidade de assuntos se concatena à diversidade de tipos de poesia e ritmos diferentes, sabemos que vamos numa viagem a suas próprias entranhas. Há poucos instrumentos, para que a poesia tome lugar de um instrumento e para que cada acorde tenha um lugar, de uma forma quase minimalista.

Porém não somos meros espectadores. Em certos momentos a melodia vai nos falar mais da letra do que a letra, onde há somente uma palavra.

Superstições nos amarram, o medo nos paralisa (‘sempre tremer, nunca crescer, isso é o que mata o teu amor’).

O título da música (supercherías, ou seja fraudes) nos dá uma dica: a superstição nos dá falsas verdades como bijuterias baratas.

Já estando no meio das entranhas del Flaco teremos que enfrentar as verdadeiras perguntas a considerar.

Do que temos sede ? O que somos diante da imensidão ? Spinetta canta acompanhado de violão sobre a sede verdadeira, quebrando a parede e falando diretamente ao ouvinte sobre as ansiedades do artista e o que o público espera dele como artista e como indivíduo.

Através de mim não irás achar a paz,

se não é em ti mesmo, nunca irás encontrá-la

Pintura 'Ponte de Langois com alvadeiras' de Vincent Van Gogh

Em ‘Cantata de pontes amarelas’ (Cantata de puentes amarillos) estamos no ponto central da resposta spinetteana a Artaud.

 

A inspiração foi o ensaio ‘Van Gogh, suicidado pela sociedade’ que Artaud escreve no final de sua vida, mostrando Van Gogh como uma alma pura caminhando num mundo pútrido e sombrio. Responde de forma ácida sobre a suposta ‘normalidade’ argumentando com base no sadismo dos médicos psiquiátricos das instituições por onde passou. No ensaio há trechos que expõem o sofrimento que os supostos tratamentos lhe causaram, o que põe em questionamento tanto o tratamento quanto o sistema que o justifica:

 

Agora estamos no cerne do meio do centro da alma spinetteana. Já nos confessou sua humanidade e que não tem a intenção de ser idolatrado. Spinetta agora quer nos mostrar que até Artaud tem conserto, que seu pessimismo é real mas pode ser curado, mas que a participação do ouvinte para manter esse fogo é vital para que a troca com o artista continue.

Antonin Artaud na velhice

Spinetta nos convida a andar com ele através da pintura de Van Gogh, aquele que Artaud chamou de ‘suicidado pela sociedade’. Artaud carregava a dor de ter sido um gênio não só incompreendido como desprezado como louco, e assim como Van Gogh, afastado da sociedade normal, forçado a ser eletrocutado para manter a calma -seu cérebro precisava ser fritado em nome da racionalidade. Spinetta reflete sobre a jornada do artista que traz as reflexões da sua experiência e a entrega ao seu público, e que isso não pode ser cerceado. A sociedade precisa entender essa jornada e não cercear, encaixotar.

 

As pontes amarelas devem nos libertar da visão errônea do ser e através das possibilidades dessas paisagens nos fazer ver o mundo de uma forma diferente, e é essa a missão do artista. A música combina momentos de imagens surrealistas que nos atingem como raios de luz, seguidos de momentos de reflexão. É uma pequena peça de rock progressivo construída com violão, algumas guitarras, poucos acompanhamentos, e sua voz.

 

Cada estrofe é uma seção diferente: primeiro convida a acompanhá-lo na viagem (‘tudo pode andar’), apresenta o problema dos dirigentes de homens que não tem compaixão (‘sujem suas mãos como sempre’). Depois aborda o conflito entre aprender com as experiências da vida mas sem se perder no caminho (‘é hora de voltar , mas trazendo para casa todo aquele brilho’, ou ‘todas aquelas bonecas estão sangrando de tanto chorar‘), do conflito de viver em comunidade mas respeitando a individualidade (“olha o pássaro, morre na sua jaula”), e no fim termina na volta dessa jornada, de manhã.

Os poucos instrumentos deixam a poesia brilhar como a verdadeira protagonista.

Existem milhares de interpretações e a minha é somente mais uma dentro da quantidade imensa de referências através do surrealismo e os poucos mas certeiros golpes de violão. 

 

Spinetta sem dó nos leva a outro ponto da sua montanha russa num rock que virou um clássico: Bajan, a descrição dos conselhos para que o ocaso não vire um pesadelo.

O dia deita para morrer, a lua vira névoa sem fim, mas tomara que os seus olhos ainda me amem. A poesia é de uma simplicidade direta que nos atravessa mas de uma forma boa, não como uma espada que nos quer tirar a vida e sim como uma revelação na forma de um rock como só Spinetta podia fazer.

O final de Artaud é primeiro a revelação dessa mesma idiotice da humanidade que se acha  racional e sábio mas que irá perder sua vida olhando o vazio, ‘queimando enquanto olha o sol, e esta é a estória de quem espera para acordar, … vamos embora!’.

 

Já fugindo e no final da viagem El Flaco nos relembra que nossa liberdade precisa ser conquistada. E não, ela não vale mais do que a vida, liberdade é o caminho de respeitar os outros, cuidar dos pequenos, amar até a medula, nunca reprimir, ter responsabilidade consigo e com os outros, e principalmente que o que disserem de você, é falso.

 

Artaud’ tem tudo: é rock, blues, rock progressivo, reflexão, muita poesia, um disco redondo. Um importante detalhe é que o encarte foi construído de forma a não encaixar em nenhuma prateleira, é uma pintura desenhada num octógono, que também lembra uma página aberta, um fundo verde com um brilho amarelo como uma luz surgindo dele. Anos depois foi adaptada ao quadrado do CD, mas ‘Artaud’, além de figurar como melhor disco de rock latino, foi uma proeza jamais repetida, e jamais irá encaixar em nenhuma prateleira.

 

 

*Alteração posterior corrigindo o nome do irmão de Spinetta (fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Gustavo_Spinetta), foi o meu amigo Nicko que me avisou deste erro.

Episódio #17: Quando o PMRC enfiou o PAL

Quando o PMRC enfiou o PAL
Letreiro simulando etiqueta de aviso parental “Quando o PMRC enfiou o PAL”

 

A implementação de selos de aviso parental e a discussão da censura na música nos EUA dos anos 80.

Participaram neste episódio (la creme de la creme do mundo podcastal independente hein?) :

Constituição americana: Shi (80 Watts)

The PMRC Filthy Fifteen: Leandro Pereira (Fermata) / Cafeína (Papo Delas) – Julián / Cris

Frank Zappa : Rodrigo Hipólito (NaoPodTocar / MIDCast)

John  Lofton : Julián

Tom Braden : Julián

Dee Snider : Danilo de Almeida (DoubleCast / Já Ouviu esse disco?)

John Denver : Pedro Janczur (Semibreves)

Ice-T : Bergs (Confábulas)

A transcrição do episódio está aqui.

Músicas incluídas no episódio em ordem cronológica na playlist aqui.

O Shi tem também um episódio no 80 Watts sobre a lista das ’15 indecentes’ , confira aqui.

 

Ouça aqui: