Transcrição do episódio #19: Quiroga e a selva

O rio Paraná nasce fatiando Mato Grosso e São Paulo. Serpenteia o pantanal dividindo os países do Paraguay e o Brasil. Depois ele teima em descer ao sul, tem um encontro épico com o rio que dá nome às cataratas do Iguaçu, e daí ruma oeste, separando Paraguay do nordeste da Argentina, indo depois para o sul novamente, desta vez até a bacia do Rio de La Plata e aí ele é liberto das terras, ganhando o oceano.

Essa parte do rio onde Paraguay fica ao norte é chamada de Alto Paraná. No trecho do Alto Paraná o lado argentino é a província de Misiones, nome dado por ter sido a região onde estavam os assentamentos montados pelos jesuítas, construídos e povoados por povos originários da região, principalmente de nações guaranis -chiriguanos, e talvez antepassados dos atuais mbya. No atual Brasil, guaranis nessa época tinham assentamentos na República de Guayrá, que hoje é praticamente o mesmo território do estado do Paraná. Na divisão territorial das nações ibéricas, esse lado ficou com os portugueses, os jesuítas foram empurrados para o oeste, os guaranis os seguiram porque valia mais a pena imitar a Jesus do que ser escravizado para construir o maravilhoso e rico estado de São Paulo, ao norte dessas terras. Mais tarde os jesuítas foram definitivamente expulsos, a fachada espiritual caiu, as missões abandonadas, e os guaranis caçados, sequestrados, escravizados ou mortos, e cada vez mais reduzidos a pequenos focos rebeldes que resistem até hoje. Eu deveria dizer que hoje fazem parte das nações democráticas do continente, votam e são votados, e seria até verdade, mas a proporção na qual isso acontece, o desrespeito e desprezo em que ainda vivem, diante das nações que já foram, não me permite ter esse otimismo todo.

Uma das missões jesuíticas que mais perduraram foi San Ignacio, no Alto Paraná. No começo do século XX, o governo argentino encomendou para Leopoldo Lugones um trabalho de levantamento das que na época já eram Ruinas de San Ignacio. Lugones era já um importante nome da literatura argentina e a ideia era construir um ensaio histórico, e para isso Lugones se propôs viajar até as ruínas das missões, e um dos seus amigos insistiu muito para acompanhá-lo. Era professor de letras no Colegio Británico em Buenos Aires e escritor promissor, mas ia como fotógrafo, um hobby que já dominava e prometia ser útil na viagem. Era Horacio Quiroga.

 

Horacio QUiroga jovem sentado numa cadeira

Horacio Quiroga nasceu no final (no final mesmo, em 31 de dezembro) do ano de 1878 em Salto, cidade uruguaia na fronteira com a cidade argentina de Concordia, separadas pelo rio Uruguai, no meio do caminho entre Buenos Aires e Misiones.

Embora tenha nascido no Uruguai, a família dele tinha laços com a Argentina. O seu tio-avô foi o famoso líder Facundo Quiroga que no início da república governou a província de La Rioja, no pé dos Andes, e foi um dos mais ferrenhos federalistas, opositores aos líderes conservadores de Buenos Aires.

Talvez por essa oposição e também pelo que Facundo representava, foi utilizado como contraposição entre civilização e barbárie, plasmada no livro do Sarmiento “Facundo o civilización y barbarie en las pampas argentinas”.

Facundo usava umas famosas costeletas praticamente unidas aos bigodes. Menem, presidente peronista dos anos 90 e também da mesma província de La Rioja, vai imitar essa moda 100 anos depois só para invocar a lembrança do Facundo … sendo ridículo, porque não tinha nenhum outro traço de Facundo -só as costeletas mesmo.

Horacio Quiroga estava em Buenos Aires depois de passar pelas primeiras tragédias de sua vida, algumas fortuitas, outras que parecem auto infligidas, a maioria delas envolvendo armas de fogo.

O pai de Horacio Quiroga morre num tiro acidental de espingarda com ele ainda bebê nos braços de sua mãe. A familia muda para Córdoba, Argentina. Sua mãe casa de novo, e seu companheiro vai criar os filhos. Mas irá tirar a própria vida depois de um AVC que o deixa com movimentos comprometidos e sem fala. A familia volta a Salto, Horacio termina os estudos, vai para a faculdade na capital Montevidéu, e mata acidentalmente o seu amigo Federico Ferrando (sim, era o nome dele) na tentativa de preparar uma arma para o duelo em que Federico tinha se metido. Horacio chegou a ficar preso uma semana pela estória ser tão bizarra, mas no fim foi absolvido.

Com a morte do pai ele usa o dinheiro da herança para fazer a viagem dos seus sonhos a Paris. Quiroga idealizava Europa como todos fazemos no cone sul. A sua viagem ao Velho Mundo foi decepcionante. Achou tudo caro, sobrevalorizado, frio, asséptico, gostando somente de paisagens para fotografar. Dono de um corpo magro e esguio, depois da decepção de Paris, Horacio Quiroga irá utilizar longas barbas mal cortadas que junto com penetrantes olhos azuis e olhar profundo sempre cativou as pessoas. A sua admiração aos poetas franceses continuou mas algo no seu espírito os tirou daquele pedestal.

Nessas épocas da faculdade, Quiroga começa seu tortuoso porém brilhante caminho de contista. Leitor dos franceses e admirador de Edgar A. Poe, terá seus primeiros contos publicados, alguns sobre o amor não correspondido, outros sobre estórias trágicas e o horror desvendado na última frase.

Funda um grupo literário, escreve para revistas e depois do episódio trágico com o seu amigo acaba por se mudar para Buenos Aires, conhecer o seu ídolo Leopoldo Lugones, o que os leva para a selva misionera.

Lugones, Quiroga e comitiva partiram em 1903 e conheceram principalmente San Ignacio, no Alto Paraná, a uns 100km da capital de Misiones, Posadas. Depois dessa viagem Lugones irá escrever o ensaio histórico ‘O império jesuítico‘.

A experiência de conhecer a selva no seu estado mais puro mudou Quiroga para sempre. Ficou maravilhado pelo bestial e arrebatador contraste dos restos de muralhas e salas de pedra com o inexorável passo da natureza, os peteribís, os guatambus e timbós atravessando pedra e muro.

Essa ocupação progressiva, inexorável e não violenta da mata selvática foi o que primeiro impressionou o jovem Quiroga.  Também foi seduzido talvez pelo sentimento de participar de um lugar isolado onde podia viver sem estar rodeado de humanos. Já sabia que não pertencia a lugar nenhum, mas aqui podia ser ele mesmo sem interferências humanas.

Quiroga volta para Buenos Aires, mas daí em diante irá alternar entre anos indo na selva e anos vivendo em Buenos Aires, mas mesmo na cidade sempre sonha em voltar à selva.

Primeiro tentou gerir uma fazenda de erva mate no Chaco, no noroeste de Misiones, mas foi um fracasso. Seus primeiros contos eram descrições melancólicas de amor ou descrições do terror como Edgar A. Poe fazia, criando um ambiente onde sabemos o que vai acontecer, mas a descrição visceral nos revela o horror nas últimas linhas.

Assim é “O travesseiro de penas” ou “Mel silvestre”. 

 

Em Buenos Aires ele leciona literatura, publica seus contos em revistas como Caras y Caretas, tem encontros literários com outros escritores, mas com os pensamentos em Misiones.

 

A primeira experiência real em Misiones foi o encontro com a vida na selva de um Horacio recém casado com uma de suas alunas, Ana María Cirés. Desse casamento nascem dois filhos, Eglé e depois Darío.

 

Ele constrói sua própria casa. Participa de tudo, desde o plano, passando pelo nivelamento do terreno, a construção dos jardins e da fundação em madeira da ampla casa perto do río Paraná. 

Mas como dissemos tudo em Quiroga tem o toque maldito da tragédia, fortuita ou auto inflingida: o que começou um casamento romântico cujos anos felizes lhe dão muita inspiração em contos como ‘Sublime Amor’, ‘Pasado Amor’ e ‘El amor turbio’, logo vira discussão todo dia onde as suas manias, sua obssessão pela vida na selva, a imposição a uma vida afastada do resto do mundo, faz Ana Maria odiar o lugar. Mesmo que tenham construído uma casa apartada perto onde moravam os pais dela, a educação orientada à vida na selva que ele dá aos filhos, com tudo sempre girando em torno a essa vida de ermitão, a pressão do marido fica insuportável.

Não conhecemos as circunstâncias, mas podemos deduzir que essa atitude opressiva de Quiroga, quase 20 anos mais velho do que ela, sedutor e autoritário, culto mas impaciente, deve ter feito com que ela fique nessa prisão. O que aparentemente aconteceu é que, após uma discussão, ela bebe um dos líquidos usados para a revelação fotográfica, que a deixa se contorcendo de dor, até morrer sete dias depois. As circunstâncias da morte são pouco claras; deduzimos essa atitude opressiva do que conhecemos hoje mas a culpabilidade do Horacio Quiroga não é citada explicitamente em lugar algum, inclusive às vezes é sugerido algum problema de ordem psicológica com Ana Maria. Quiroga ainda estava exercendo como juiz de paz. Era um juiz de paz bem relapso que escrevia os nascimentos, casamentos e falecimentos não no livro de atas e sim em papeizinhos que deixava numa lata de bolachas. À época da morte da esposa não consegue exercer suas funções que são assumidas por um amigo. Num arrebato de ódio dias após o falecimento dela, ele até queimou os pertences dela.

Viúvo, muito provavelmente se sentindo culpado, mal da cabeça e com pouco dinheiro, ele volta para Buenos Aires. Se concentra em criar os filhos e escreve contos para distraí-los, resgatando sua imaginação misturada com sua experiência na selva. É sem dúvidas sua época mais prolífica em termos de escrita. Os contos quase de fábulas para crianças são publicados em 1918 num livro chamado ‘Cuentos de la selva’, que até hoje é um clássico da literatura infanto juvenil.

Há a descrição de arraias de água doce que defendem um homem contra os tigres da selva, em vários deles os animais são os protagonistas, tartarugas, jacarés, flamingos e tigres, mas em vários deles há uma contraposição entre animais e humanos. Humanos contra tigres, filhos de quati e filhos humanos ou arraias e homens contra tigres. São contos não preocupados com uma moral, mas em geral mostram a supremacia e em certos casos ignorância humana, em contraposição ou em comparação com a riqueza animal, a riqueza poética, intelectual e diversidade animal sejam serpentes, quatis, arraias, formigas ou tigres.

Quando ele diz tigre não é o tigre asiático, refere-se à onça ou jaguaretê, o nome que os guaranis usavam, mas prefere colocar tigre provavelmente porque o seu público da cidade não está familiarizado com os outros termos.

Ele também cria seu contos dentro de uma lógica menos centrada em Buenos Aires, menos focada em interações humanas e com animais como personagens e a selva como pano de fundo.

Ele também cria, ou destila, ou se lhe escapam outros contos não para os seus filhos ou esse público infanto juvenil, e sim tentativas de revelar os seus próprios fantasmas, mais tarde compilados com o título certeiro de ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte’, entregando toda a sua alma em contos de terror ambientados na selva: o padre que fica louco bebendo um vinho feito de laranjas e que vê a filha transformada num enorme rato, que mata a machadadas. 

Há outro bem peculiar: um casal jovem e feliz, Berta e Mazzini, que tem um filho que após 18 meses perde as suas capacidades mentais : 

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; mas a

inteligência, a alma, e até o instinto, tinham desaparecido totalmente; tinha ficado

profundamente idiota, babão, molenga, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.

– Filho, meu filho querido! – soluçava a mãe, sobre aquela terrível desgraça de seu

primogênito.

Eles tem mais outro filho que também sofre convulsões aos 18 meses e tem o mesmo destino. E depois eles tem gêmeos, com o mesmo destino, quatro meninos `idiotas`.

Não sabiam engolir, mudar de lugar, ou sequer se sentar. Por fim aprenderam a caminhar, mas esbarravam em tudo, por não se dar conta dos obstáculos. Quando eram lavados, mugiam até ficar com o rosto em chamas. Somente se animavam com comida, quando viam cores brilhantes ou quando escutavam trovões. Então riam, pondo para fora a língua e rios de baba, radiantes em um frenesi bestial. Por outro lado, tinham alguma habilidade imitativa.

E mais nada.

Mas depois vem a única filha mulher, e ela cresce saudável, e após brigas do casal da tensão normal de criar 4 filhos com necessidades, ter a caçula iluminar a casa é uma bênção, fazendo-os esquecer de suas… aberrações.

Se nos últimos tempos Berta sempre cuidara de seus filhos, com o nascimento de Bertinha, ela praticamente tinha se esquecido dos outros. A simples lembrança deles a horrorizava, como uma atrocidade que a tivessem obrigado a cometer. O mesmo acontecia com Mazzini, embora em menor grau. Nem por isso a paz havia chegado às suas almas. A menor indisposição de sua filha fazia brotar o pavor de perdê-la e o rancor da sua descendência podre.

  

E um belo dia a mãe e a empregada nos seus afazeres, a empregada preparando uma galinha para o jantar pede para os filhos-aberrações saírem da cozinha. Mas a imagem fica na mente deles, e quando a irmã segura na cerca para ver o pai ir embora trabalhar, não duvidam, … é sua galinha. Prendem cada um segurando um dos seus membros, deixando sua cabeça na ponta da mesa da cozinha.

– Minha filha, minha filha! – correu já desesperado até os fundos. Mas ao passar pela cozinha, viu no piso um mar de sangue. 

Esta é uma rápida resenha e se for ler o conto ‘A galinha degolada‘ verá que há várias outras camadas. As culpas, as acusações mútuas do porquê dos meninos ficarem assim, o amor e o ódio intensos, os `idiotas`, os desejados, os rejeitados pela sociedade, o que as famílias ocultam. Muitas camadas de amor, de loucura e de morte.

 

Também continuam os contos quase fábulas. “A anaconda”, a saga das serpentes que tentam se unir contra os homens que as perseguem, mas as serpentes são eficientes para matar mas não confiam em si mesmas e acabam por trair umas às outras.

Mas quando a estória dos povos originários e a vida de Horacio Quiroga irão se cruzar ? Não irão se cruzar. Embora cite um ou outro personagem, algum cacique ou algum ‘indio’ no meio das matas, a vida de Quiroga estava entre os colonizadores, então não é que não houvessem reservas, mas são invisíveis a menos que nosso olhar seja direcionado para eles. Foi a forma de sobrevivência que estes povos encontraram, se confundir com a paisagem selvática.

O olhar da destruição claramente passa pelo talvez melhor conto de Horacio Quiroga, não muito citado: ‘Os desterrados’. Aqui sim cita um cacique, a destruição da mata para que seja `produtiva`, as plantações de cana de açúcar, erva mate, laranja, e entre eles os bóias fria do lugar chamados “os mensú”, ou seja os trabalhadores itinerantes que trabalham por diárias ou -mensualidades (mensalidades, pagamentos por mes). O protagonista do conto é o brasileiro João Pedro, um mensú, negro falante de portunhol e com ele exemplifica as relações da força de trabalho partir da saída dos jesuítas, transferida dos povos nativos para os imigrantes das tres fronteiras. Mas os métodos não mudaram muito: sua primeira paga é literalmente um tiro na mão. Abre a mão para receber, e recebe bala.

 

A partir daí a saga de João Pedro será vingar sua mão ferida e voltar a sua terra. No caminho encontra outro brasileño desterrado e juntos partem para essa aventura. Quiroga utiliza esse fio condutor para descrever a situação desses trabalhadores, as injustiças, as soluções para conseguir armas, se vingar, fugir. É o que resta aos desterrados.

Como sempre Quiroga usa as analogias para se descrever, desta vez não com animais e sim humanos contra humanos, onde todos perdem, onde a fronteira não significa mais do que cruzar um rio mas significa muito para o mundo dos humanos de papéis, permissões e linguas. O portunhol no conto é mais castelhano, para que o leitor de fala hispana compreenda melhor, mas é impecável nas expressões e expressa essa sensação de estar sempre fora de sua terra, de sua língua, de seu lugar.

Assim como ‘Pasado amor‘ era mais autobiográfico, descrevendo em detalhes como ele mesmo construiu sua casa na selva, esta época tem contos mais alegóricos e poéticos embora ainda autobiográficos de algum modo como Juan Darién, o tigre criado e educado como uma criança na escola, mas que é condenado por ser ‘selvagem’. Juan Darién terá uma saga tentando se encontrar como humano, mas finalmente aceita as rejeições do mundo humano, e se interna na selva.

Juan Darién é um tigre criado pela mãe que perde um filho, e que uma serpente ajuda a que pareça humano para os humanos. Quiroga é um humano que escolheu a vida na selva, se tornar um tigre, e é desprezado pelos humanos das cidades, revelado sempre como um estranho. Juan Darién é Quiroga, e Quiroga é um Juan Darién às avessas mas que sofre o mesmo problema de ser sempre um desterrado, um homem alheio à vida urbana e que acredita que a civilização é somente sua forma de vida e as outras são todas selvagens.

Quiroga foi sempre suficientemente excêntrico como para se preocupar com flertar com a loucura. Sua vida são os seus filhos, seus escritos, as memórias da selva. Sempre foi atacado pela morte trágica e talvez isso tenha afetado para sempre sua forma de ver o mundo, mas ao mesmo tempo nunca fez esforços para impedir ser o algoz de pessoas no seu entorno, mulheres e filhos. Essa tendência destrutiva, aliada com o sentimento de que viver isolado na mata misionera o salvaria, fez com que construísse uma personalidade arisca e abusiva, uma pessoa que fazia o que queria, do jeito dele e no seu tempo, alheio ao fato de arruinar a vida das pessoas ao seu redor.

É assim que constrói uma canoa do zero para navegar o Paraná desde Misiones até Buenos Aires, ou constrói a casa com outros dois pedreiros, ou coloca como meta plantar erva mate, ou construir uma engenhoca para afastar formigas, ou criar seus filhos para viver para sempre no meio da selva.

E como um amante dominador que geralmente seduz mulheres bem mais jovens, vai repetir esse comportamento abusivo mais de uma vez.

Sim, seu pai se matou com uma espingarda, seu padrasto se matou com outra espingarda quando uma doença o deixou preso a uma cadeira de rodas, ele mesmo Quiroga matou acidentalmente o seu amigo com um revólver tentando  limpá-la antes de um duelo, e assim as tragédias se enfileiram uma atrás da outra e é difícil que Quiroga não visse uma certa predestinação à catástrofe nesses fatos. Mas isso não justifica pressionar a mente de uma jovem e levá-la a achar que sua única saída é se matar. Nem justifica tratar os seus filhos como uma experiência do homem branco na selva, nem outros abusos constantes na sua vida, como a tendência a se apaixonar por mulheres jovens e tentar arrastá-las para a sua casa na selva.

Foi assim que, já em Buenos Aires com os seus filhos, compila os contos que publicava em revistas e os vende em livros. ‘Cuentos de la selva‘ é um sucesso, e até hoje usado nas aulas de literatura infantil. ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte‘ não vende no início, embora hoje seja um clássico. Mas outros escritores da época o reconhecem como grande contista, e frequenta o grupo literário ‘A anaconda’, onde faz amigos, inimigos, e conhece a poetisa Alfonsina Storni. Se apaixonam, ele tenta arrastá-la para a selva, e ante a negativa, ele para o seu assédio para algo platônico, o seu amor se transforma numa admiração mútua como escritores, confidenciando sentimentos e experiências por cartas.

Depois se apaixona por outra jovem, mas a família proibe o namoro e a afasta dele.

A forte personalidade e presença do homem dominador sempre aparece. E é assim que novamente Quiroga se apaixona por outra mulher bem mais nova, companheira de escola de sua filha Eglé. Depois de cortejá-la e começar a namorar, a pressiona para que viva com ele na selva. María Elena Bravo casa com Horacio Quiroga, eles se mudam para Misiones, começo idílico, nasce a filha María Elena “Pitoca”, Quiroga nadando na popularidade de sua personalidade do conquistador das selvas, do intrigante contador de histórias de serpentes, tigres e jacarés. Mas aos poucos María se desencanta da dura vida na selva , da personalidade opressiva do Quiroga que faz o que se lhe dá na telha, e começam os problemas conjugais.

Parece cena repetida de filme. Só que María Elena Bravo não é Ana María Cirés: separa do Quiroga e volta para Buenos Aires. Quiroga a pressiona, escreve cartas, tudo em vão. É a doença que faz María Elena não sumir da vida dele: Quiroga se queixa de dores abdominais, tenta se curar com plantas, nada resulta, e cabe a ela acompanhá-lo nos exames e visitas a hospitais. Primeiro em Posadas, capital de Misiones, depois em Buenos Aires.

E assim alguns conhecidos influentes conseguem que seja atendido no Hospital das Clínicas em Buenos Aires já no final de 1936. Enquanto faz exames e responde a tratamentos, fica sabendo da estória de um ‘fantasma’ que mora nos porões do hospital. Na verdade, mora no sótão por vergonha e o hospital faz vista grossa.

Quiroga se informa e vai a sua procura. É o Quiroga investigativo que não hesita em desvendar mistérios e cuja humanidade o faz ver através do olhar frio da sociedade.

O ‘fantasma’ é Vicente Batistessa, um envergonhado antigo paciente, portador de síndrome de Proteus, ou elefantíase. As suas deformidades o levam a se esconder mas após as conversas com ele, embora a fria navalha da ciência explique que não tem prognóstico e por isso não tem leito, Quiroga consegue retirar algo da humanidade que ainda resta em alguns responsáveis no hospital e Batistessa se instala num leito junto a ele.

Viram confidentes. De um lado o Quiroga reconhecido pela sociedade mas lastimado pela sua própria tempestividade, cansado de lutar contra sua teimosia, longe de sua querida mata misionera e entregue à medicina. Do outro lado o seu nada ilustre companheiro, sem prognóstico e condenado ao julgamento do olhar dos seus pares que não o reconhecem.

Batistessa se admira com Quiroga, que olha diretamente sua alma através do seu corpo irreconhecivelmente humano. Chega então a notícia de que Quiroga tem mesmo câncer de próstata em avançado estado, e que pelo atual estado terminal não será operado. Ele então sai do hospital com o intuito de se despedir de alguns entes queridos e fazer alguma papelada. Mas na verdade compra cianureto. Ele prefere afirmar o seu destino e decidir como e quando a sua vida acaba, um 17 de fevereiro de 1937; sua vida termina com a ajuda do seu inesperado companheiro que o assiste na sua última viagem.

 

Meses depois Alfonsina Storni também receberá o diagnóstico de um avançado estado de câncer de mama, e também irá escolher como e quando sua vida acaba: se joga no mar em Mar del Plata no início de 1938.

 

Lugones, que na época da viagem com Quiroga flertava com as ideias socialistas de começo de século, vai aos poucos se transformando num conservador admirador de heróis do passado, vai escrever um discurso fascista nos anos 30 falando em `hora da espada` e vai apoiar o golpe contra Hipólito Yrigoyen. Mais tarde, arrependido, abandonado pelos antigos amigos e desiludido por um amor não correspondido, irá tirar a própria vida com cianureto, aproximadamente um ano depois da decisão de Quiroga.

Assim é que tres integrantes do antigo grupo literário tiraram a própria vida num intervalo de menos de um ano, embora em circunstâncias bem diferentes.

Não posso julgar a vida e muito menos a decisão da morte de uma ratazana, quem dirá costurar opiniões sobre tres grandes nomes da literatura moderna argentina. Parece haver um senso de controle da própria vida no fato de escolher como dar fim a ela. Mas me atrevo a dizer que é um equívoco tentar igualá-las só porque tiraram a vida num intervalo próximo.

Alfonsina foi sempre uma lutadora que precisou abrir espaço num mundo machista e que fez seu nome nas letras sem nem mesmo um berço privilegiado. Tinha que trabalhar dupla jornada e escrever à noite, fez de tudo para ajudar a mãe e pagou a edição de seus primeiros livros com suas parcas economias. Ela decidiu `se vestir de mar` para poupar o tempo de um fim inevitável, que adiou tudo o que podia, só para estar mais tempo com o seu filho.

Lugones traiu seus próprios ideais e acabou por se encurralar emocionalmente ao ver que tinha ajudado a destruir o mundo ao seu redor.

Quiroga teve sempre amigos influentes que o ajudaram nos momentos difíceis. Mas tinha muitas culpas nos ombros, muitas dores no corpo e a monstruosidade de sua alma preferiu escolher o seu final, sendo acolhido curiosamente por quem era visto como um monstro mas que tinha mais humanidade do que médicos, escritores ou heróis de espadas.

Referências : 

Los pueblos indígenas que viven en Argentina, PROINDER, Secretaría de Agricultura, Ganadería , Pesca y Alimentos, 2008

América en diásporas. Esclavitudes y migraciones forzadas en Chile y otras regiones americanas (siglos xvixix)/ Editor: Jaime Valenzuela Márquez. Instituto de Historia, Pontificia Universidad Católica de Chile, 2017.

Los desterrados“, Horacio Quiroga, 1926

Cuentos de Horacio Quiroga (contos digitalizados): https://ciudadseva.com/autor/horacio-quiroga/cuentos/

 

Published by

Por Outro Lado

Um podcast sobre biografias, papos alternativos e afins