Episódio #22: D de David

Collage com imagens do video 'Jump They Say' e com fotos do filme 'La Jetée' mostrando suas semelhanças.
Capa do episódio ‘D de David’

Episódio com mais músicas ‘lado B’ de Bowie QUE VOCÊ SÓ OUVE AQUI e curiosidades dos álbuns e suas motivações.

Contém gatilho (tem aviso no episódio com minutos a pular).

Filme citado no episódio: “La Jetée”, de Chris Marker (1962) , completo e legendado no YouTube : https://www.youtube.com/watch?v=U_hX_iFQu8Y

Comentários sobre o video oficial de “Jump they say” por Leandro Pereira dos podcasts Fermata, Ergo e Esculhamados.

A transcrição do episódio está aqui.

Transcrição do episódio #22: D de David

D de David

 

Começando com uma advertência de não gatilho let’s dance with david bowie.

Sabe aquele disco famoso de David Bowie ‘Let’s dance’ ?

Então…

Não vou falar dele aqui porque esse é o lado de David Bowie que todos conhecem, além do álbum do Bowie que é o menos David.

Let’s dance” é o álbum com mais versões, menos autoral, onde menos se meteu nas melodias. Ele se preocupou mais com a sua imagem, com os vídeos promocionais, com a estética das capas, a estética da gira mundial, mas acredito que não é seu ponto alto em termos de composição, e nem era para ser, foi lançado para que os hits fizessem Bowie famoso no mainstream (esse era o seu objetivo, e o conseguiu).

E por isso não pretendo citar `Heroes` nem Ziggy Stardust.

E o propósito aqui neste minúsculo podcast é falar de momentos brilhantes de David que são pouco ou nada conhecidos. 

Já fiz um episódio B de Bowie, e seguindo a tradição agora apresento a vocês olhem o momento brilhante de inspiração deste podcast :

Depois de B de Bowie

D de David

‘All the Madmen’

Jerry, o irmão mais velho de David, foi seu ídolo da pré-adolescência e quem lhe mostrou muita música que seria futuramente a sua referência. Só que já na juventude, as crises cada vez mais severas deixaram claro que a esquizofrenia de Jerry só piorava. Foi internado para sair poucas vezes e de forma monitorada. O ambiente da clínica, a situação do irmão, de ídolo a louco que precisa ser internado, servem de pano de fundo para “All the Madmen” que já estava escrita fazia tempo mas aparece por primeira vez em ‘The man who sold the world’, assim como é inspiração para muitas das músicas do álbum.

‘All the Madmen’ faz referência ao mundo dos sãos que encarceram os doidos. O violão de Bowie acompanha sua voz melancólica narrando em primeira pessoa sobre como os sãos tratam aqueles que decretam loucos, os amigos são levados para longe, o deixa numa redoma de aparente felicidade, mas como suspenso para sempre nessa prisão controlada.

Compara as insanidades das nações, a música se transforma de um violão solitário com Rick Ronson para liderar a procissão da loucura.

E ainda há um poema declamado no meio da canção acompanhado de algumas vozes diferentes, mostrando a dualidade de toda experiência -ou talvez uma referência à esquizofrenia.

A música passeia entre o delírio e a cantiga infantil com uma orquestração de forma inteligente construída para não sentirmos a dicotomia.

E no final faz um coda numa forma de uma cantiga infantil -um recurso que irá reproduzir novamente mais tarde em ‘Ashes to Ashes’.

“Zane, Zane, Zane, ouvre le chien’ ‘solta o cachorro’ em francês.

Há como sempre várias teorias sobre ‘Zane, Zane Zane’ que vão desde as montanhas remotas da India até deuses esquecidos do Oriente Médio comparando outra obra posterior de Bowie, The buddha of Suburbia, mas eu acho que há uma solução mais simples: usando da repetição, não sabemos se diz ‘são’ (sane) ou louco (insane). Este efeito é aumentado colocando cada ‘Zane’ numa área dos canais, passeando da esquerda para a direita. ‘Ouvre le chien’ deve ser referência ao filme surrealista ‘Um cão andaluz’ (Un chien andalou), de Luis Buñuel -se não viu, veja.

https://www.youtube.com/watch?v=W8yKT7H_KJ0

Jump They Say

David foi juntando personas e criando conversas entre elas ao longo de sua carreira, e assim como em Ashes to Ashes onde é narrado de alguma maneira o fim ou a morte ou a página virada para o Major Tom, também é uma referência à esquizofrenia no sentido de que é como se os seus personagens estivessem sempre com ele, terminados ou não, ele os carrega para sempre, e por isso ressurgem ou se reinventam ao longo de sua carreira.

Agora imagino que você deve entender pq ele odiava esse lugar comum do camaleão do rock.

No falecimento de Jerry, David não quis comentar nada publicamente, mas alguns anos depois, na época de ‘Black Tie White Noise’ lançou ‘Jump they say’.

E agora sim um aviso de gatilho porque vamos falar da relação pesada com o irmão que teve um final violento.

‘Jump they say’ é também inspirada no Jerry, ou basicamente no fato de ter tirado sua vida. Mas também na opressão de se sentir incompreendido que unia o David artista do irmão que não agüenta, e um dia se joga no trilho de um trem.

Na música mistura essa ideia, com a ideia de uma sociedade que nos empurra a ir cada vez mais alto, ser cada vez mais ousado – olhem como escala, Pule!, eles dizem. A vida no estrelato é uma coleção grotesca de elogios, e de gente querendo que você se dê mal -e quanto mais alta a cima, maior o estrondo ao cair.

O vídeo, muito anos noventa, aparece um Bowie de empresário estiloso de terno e gravata com os outros empresários, misturando as imagens com ele dançando na cornisa, até ficar deitado placidamente sob um carro -uma referência ao chamado ‘suicídio mais belo’, a Evelyn McHale, uma garota que se jogou do Empire State Building, en New York e destroçou o seu corpo sobre um carro, ficando numa posse bizarramente placida que foi imortalizada por um fotógrafo. 

‘Suicidio mais belo’, que ideia bizarra.

Eles dizem ‘ei, isto é realmente algo importante’

eles sentem que deveria se perder um tempo nisso,

eu digo cuidado, meu amigo,

não ouça a multidão

que diz ‘pule!’

‘Jump they say’ não fez tanto barulho na época, mas mesmo assim foi criticado pela família por fazer dinheiro com a morte de Jerry quando na verdade é uma homenagem a tudo que Jerry significou para David.

‘1984’ e ‘Scream Like a Baby’

David como clubber desde os anos sessenta e setenta deve ter visto muita batida policial, muito amigo de cores erradas espancado, muita amiga gay apanhando, e talvez por isso tinha uma forte empatia pela descrição vívida de um estado policial como descrito em 1984. O livro de Orwell já tinha inspirado Diamond Dogs e como já contei anos atŕas, perdeu muito dinheiro tentando criar um musical  baseado nele. Mas além de Diamond Dogs ele se permitiu uma descrição em primeira pessoa da perseguição a um tal Sam na música ‘Scream like a Baby’, escondido no nada valorizado álbum ‘Scary Monsters’ , bradando ao som de tambores que nos dizem que precisamos fugir.

Se escondem abaixo de cobertores, nem se lembrando a última vez que viram a luz do dia. Sam encarna o líder de uma revolução que não vai acontecer :

Grita como um bebê

Sam era uma arma

e nunca soube o seu sobrenome

e nunca tivemos um momento de diversão

Um dia vão contra as bichas, descem as ruas colocando todos no camburão, sofrem torturas quebrando de vez sua mente tentando que se adeque à so… socie…socied…

Repare como a música termina com alguém apanhando a golpes de cassetetes que parecem uma bateria (ou o contrário?)

Sons of the silent age

O álbum ‘Heroes’ quase foi chamado como a música que Bowie acreditava que seria o hit do álbum: “Sons of the silent age”. Era uma das composições que estavam prontas quando decidiu começar o projeto.

‘Sons of the silent age’ é uma referência aos anos do cinema mudo, mas a partir dessa referência, David constrói um ambiente (sim, é ele no saxofone) ajudado por um Brian Eno sempre atento aos anseios de David com sintetizadores espaciais e coros com Tony Visconti trazendo a idéia desses quase elfos que não agem porque percebem que não pode ser feito, passam pela vida em silêncio e não morrem, somente um dia deitam a dormir.

Mas a música nunca foi um hit e ele até não a tocou muitas vezes ao vivo, embora já tenha falado que era uma das músicas das que mais se orgulhava de ter composto.

Por outro lado o clima das gravações acabou por criar ‘Heroes’ que mudou por completo o projeto -e a música mundial também.

A geração dos anos 20 do cinema mudo também como diz David:

 ‘Rise for a year or two then make war

Search through their one inch thoughts

Then decide it couldn’t be done

(‘ressurgem por um ano ou dois daí fazem a guerra, procuram nos seus pequeninos pensamentos e então decidem que não tem como fazê-lo.’)

É uma música que fala também de pessoas que vivem sua vida perfeita como elfos, sem questionar crenças nem preconceitos 

All I see is all I know’

(‘Tudo o que vejo é o tudo o que sei’)

‘New angels of Promise’

Na porta dos anos 2000 Bowie grava seu álbum ‘Hours’ com referências a um novo mundo guiado, roteirizado e dirigido pela tecnologia, principalmente a internet e os jogos eletrônicos.

Na capa de Hours David brinca novamente com suas personas: há um Bowie de cabelo longo confortando um Bowie do estilo anterior dos anos 90 ‘morto’, deitado no seu colo como La Pietá de Michelangelo.

Nessa capa ele usa propositadamente um estilo de letra bem cafona, mas popular nos primeiros anos da internet, e ainda um pseudo-código de barras onde se lê ‘hours’ e ‘bowie’ com números por letras alternados. O sub-tema do álbum é um tipo de aceitação à tecnologia à qual foi primeiro resistente, e depois entusiasta, mas que ainda acha bizarra.

A persona de Bowie dos anos 90 resistente à tecnologia morre e renasce um novo Bowie de cabelo longo, moderno, descolado.

Era 1998 e Bowie tinha um portal chamado bowienet que funcionava até como provedor de internet por um tempo, e se manteve depois como um fórum.

É nessa época que David criou um concurso para criar a letra de ‘What’s Really Happening?’, prometendo os créditos, um prêmio em dinheiro, uma assinatura anual da Rolling Stone, e a oportunidade de visitá-los no estúdio. Quem ganhou foi um fã chamado Alex Grant -ganhando de milhares de outros fãs, incluindo membros do The Cure. Alex Grant gravou os coros junto com um amigo num estúdio em NY.

Em ‘Hours’ há também algumas músicas que foram gravadas para o lançamento do game Omikron em cuja produção David se envolveu. Entre as músicas há uma quase continuação da Sons of the silent age chamada ‘New angels of promise’ (na letra até menciona ‘somos aqueles silenciosos’).

‘A Small Plot of Land’

E como era esse Bowie desconfiado desse novo mundo da tecnologia ?

Em meados dos 90 Bowie parte desde uma vaga ideia de um assassinato de uma jovem (uma estória vagamente inspirada em Twin Peaks) para montar um disco conceitual com o nome provisõrio de ‘Leon takes Outside’. O conceito seria em torno da tecnologia e as mesmas sociedades disfuncionais que ele cantava nos anos 70, mas agora nos 90.

Após as sessões de gravação, chama novamente o seu já velho colaborador Brian Eno para ajudá-lo a transformar as gravações acústicas em algo mais eletrônico, mais impessoal, as distorções ajudando numa visão de um mundo distópico e menos familiar.

O resultado é um disco bem inovador chamado ‘Outside’. É todo um álbum com muita experimentação em overdubbing, um toque de rock inndustrial e com muitas distorções em todos e cada um dos instrumentos e na voz de David declamando poesias do submundo em que o investigador Nathan Adler se mete investigando o assassinato de uma menina de 14 anos. As letras sugerem essa disfunção, violência, sanidade versus loucura e outras inquietações da vida moderna.

A música mais divulgada do álbum foi ‘Hallo Spaceboy’ com uma nova interpretação do mesmo Major Tom, space Boy tendo que enfrentar os anos 90 com esse caos o matando, mas a poeira da lua irá cobri-lo. Também pode ser interpretada como um investigador interpelando o assassino-protagonista da trama (você quer ser livre, não quer? vc gosta de meninas ou meninos? É confuso em hoje dia), sim, como tudo tem camadas, algumas delas nos levam muito longe…

Eu tenho certeza de que esses críticos urubus que aparecem após a morte de grandes artistas para se deliciar da carniça que resta e que se deliciaram na morte de David, jamais ouviram 10% de sua obra. Vários comentaram Blackstar dizendo que era a primeira vez que Bowie experimentava o jazz, e, é triste saber como estavam errados, e é triste porque nunca ouviram o tão brilhante quanto subvalorizado Outside e nem mesmo sua mais cabal prova de como o jazz nadava livre nas veias de David, e a prova se chama: A Small Plot of Land.

Uma peça tensa de um piano brincando com a melodia como um assassino espreita a presa enquanto David nos avisa como nossa alma está empobrecida, pobre alma idiota… 

O fabuloso solo de Reeves Gabrels denuncia esse jazz infernal e de um mundo distópico que não queremos olhar, o de um assassino que já sentenciou sua vítima e que lentamente nos leva até ela como uma procissão infame.

Dollar Days – I can’t give everything away

É demais dizer que foi a última persona, mas no começo dos anos 2000 David usou um desenho como avatar, de grandes olhos azuis, gravata e terno preto e camisa branca, um gibi do mini thin white duke, e usou ele para promover seu álbum Reality. Há muitas impressões do disco sobre como a realidade esbofeteou os americanos nos ataques de 11 de setembro, e outras ilusões que caíram nesses primeiros anos do novo século.

A música ‘New killer star’ levou essa bandeira, mas a música principal foi ‘Reality’.

A baixista Gail Ann Dorsey contou que estavam no palco performando ‘Reality’, no Reality Tour a música central do novo álbum ‘Reality’. Realidade demais de uma vez, David cantando sobre sua fragilidade, na letra fazendo trocadilho sobre sua morte e sua música ‘My Death’ ser só uma nota melancólica. 

Estava muito quente no cenário, e ela percebeu que David não estava mais cantando e sim arfando, não conseguindo respirar direito. Frases antes do final da música, David se agachou, coberto em suor, virou e voltou para dentro do palco. David quis rir da realidade, e a realidade esbofeteou seu rosto. Nunca vencemos da maldita ceifadora implacável.

Os músicos terminaram ainda sem saber, mas David acabava de sofrer uma arritmia forte, fora medicado e pouco tempo depois já ia direto pro hospital. Sofrera um pré-infarto. O show foi cancelado, a gira também. Abruptamente, David saiu dos cenários e oficialmente nunca mais voltou.

Talvez os seus 57 anos pesavam como nunca, então decidiu se retrair à vida doméstica que tanto desejava e amava de verdade. Sua filha Zahra nascida em 2000 engatinhava pela casa, sua esposa Iman continuava o protegendo e trabalhando como modelo , desfrutando de uma vida de uma familia rica em Nova Iorque.

A sorte de David foi perceber quando parar, olhar, repensar, desacelerar. E planejar quando e como iria enfrentar a velha ceifadora.

O resto da historia é mais conhecida: 10 anos depois ainda gravou 2 álbuns que preparou no mais absoluto sigilo. O último, Blackstar, estreou no seu aniversário, como tinha feito outras vezes, porém desta vez como a peça final de sua morte iminente, que tinha escondido de todos e ocorreu quase horas depois do lançamento.

O final do álbum BlackStar é um resumo dessa longa despedida, com ‘Dollar Days’ falando da pequenez de nossa existência e fazendo um trocadilho entre ‘queria muito’ e ‘estou morrendo’ (I’m dying too). A continuação e grand finale é ‘I can’t give everything away’, onde abre o seu coração em todos os sentidos. Mas consegue como confissão final nos avisar que não pode nos dar tudo mastigadinho. Há uma série de trocadilhos na letra mas a música conseguiu ser uma despedida à altura mostrando como nos brindou todo o que podia e que conseguiu se despedir da forma que desejava, jogando pérolas. E a música é nostálgica e positiva ao mesmo tempo, primeiro o sax depois a guitarra se dedicando a malabarismos, como a nossa vida, tentando entender tudo, se agarrar a tudo, na tentativa de segurar cada minuto como areia se escorrendo pelos dedos, porque a vida tem dissabores e talvez por isso vale ainda mais a pena ser vivida o mais plenamente que possamos conseguir.

 

Episódio #02: B de Bowie – Transcrição do episódio

David Robert Jones (David Bowie) tem quase 700 músicas originais ao longo de 50 anos de produção musical.

Além de um compositor prolífico, obsessivo e complexo, namorava como ninguém o glamour da fama de um rock star, e alcançou o estrelato quando quis e como quis.

Mas, por outro lado, foi um compositor muito consciente do seu tempo, que navegou em todas as tendências da música contemporânea, e em cada uma delas tem pérolas muitas vezes desconhecidas por não estarem em álbuns famosos, ou por não virarem hits conhecidos. Também formou bandas com músicos consagrados aos quais influenciou, e pelos quais se deixou influenciar, o que era uma honra para o músico e para Bowie era mais uma oportunidade de expandir e ampliar seus próprios horizontes musicais.

Não vamos falar dos grandes sucessos de Bowie -do Major Tom do Space Oddity, ou de Changes, Life on Mars, Rebel Rebel, Ashes to Ashes, ou Let’s Dance, que também gosto demais!- mas hoje o foco é o lado B de Bowie, um Bowie tão brilhante quanto excêntrico e desconhecido e que merece muito ser ouvido.

É bem provável que você conheça a persona mais famosa de Bowie , Ziggy Stardust. Afinal ele inspirou do glam até o punk rock, um personagem que associou de forma magistral o imaginário da exploração espacial com o distanciamento e isolamento que os jovens sentiam diante uma geração de velhos repressores, jovens que preferiram se esconder nas viagens psicodélicas e que encontraram um ser humano menos racista, menos sexista, menos retrógrado.

Ele acabou com as apresentações do Ziggy subitamente, perto de 74, mandou embora os músicos da banda e começou uma nova banda do zero. Também estava lendo muita coisa, e musicalmente se sentia atraído pela música americana. As leituras o levaram para escrever as músicas de Diamond Dogs, especialmente a leitura de 1984 de George Orwell. É nessa época que escreve ‘Big Brother’, uma descrição do grande irmão como a faria John Winston, o protagonista da novela, já depois de uma lavagem cerebral, onde Bowie usa uma orquestração magnífica com um refrão inflamado como a devoção ao Grande Irmão.

Vamos ouvir então “Big Brother” do disco Diamond Dogs de ’74, junto com “Chant of the ever circling skeletal family“, a continuação que é um coda psicodélico de coros com gritos ‘brother!’ , uma guitarra hipnótica e um final inesperado.

Não, a memória do seu celular está ok, o seu player não quebrou, não é vitrola, é só Bowie que te trola e repete ‘Bro’,’Bro’ em loop !

Bowie faz uma nova viagem para os Estados Unidos e fica fascinado por tudo, pela cultura, pelas roupas, pelo soul, RnB, música toda regada a quilos de cocaína em que chafurdava a Los Angeles dos anos setenta. Mesmo com a aura hippie invadindo San Francisco, Ziggy Stardust tinha desaparecido e uma nova persona começava a emergir do seu interior.

Carlos Alomar o apresenta aos melhores inferninhos e companhias musicais, iniciando uma das grandes parcerias de Bowie. Alomar contou uma anedota da época na qual certa vez depois de uma noitada daquelas, chegou com Bowie na sua casa já entrada a manhã, e sua mãe, preocupada com tal figura pálida e magérrima, preparou um almoço latino-afro-americano reforçado (imagino que foi frango caipira, arroz, feijão, salada) e como Bowie sempre foi um gentleman, sentou à mesa, almoçou e agradeceu, claro, para voltar depois a sua vida de vampiro londrino admirador do real american way of life.

Nessa época já em ’75 grava ‘Young americans‘ como uma homenagem a esse Rhythm & Blues que tinha acordado o jovem Bowie para a música, que ele sempre tinha admirado e que agora tinha conseguido ouvir de primeira mão. Desse álbum são famosos a música título ‘Young Americans’ como também a música ‘Fame’ que gravou com John Lennon, mas vamos ouvir uma obra prima pouco conhecida, composta por Bowie e perfeitamente executada por Luther Vandross e sua banda, com um coro maravilhoso envolvendo um cânone dificílimo de cantar, contrapondo as vozes e o sax, a música Right.

Bowie nas gravações de Young Americans

Nessa época já crescia em Bowie uma nova persona, uma personagem de um homem pálido, distante, um último romântico num mundo frio e ausente: o Thin White Duke.

Bowie decidiu que deveria apresentá-lo, e compôs uma apresentação dentro da música “Station to Station“, faixa título de seu próximo álbum.

Station to Station” é uma peça operística de dez minutos que junta os vagões de um trem com os devaneios bowísticos de um ser romântico com as idas e vindas de alguém que não poderá ser freado (e por algum motivo Bowie confessou não lembrar como as gravações aconteceram, provavelmente por estar totalmente focado na composição num céu de champagne e cocaína, e assim Bowie canta que é tarde demais, é tarde demais).

Mas outra música que reflete muito bem o espírito do Thin White Duke é “Stay“, ainda influenciado pelo soul e partindo de um ritmo na guitarra de Carlos Alomar onde Bowie divaga e implora que fique com ele uma figura idealizada, ou talvez sua esposa Angie com a qual se amavam e se odiavam tanto, numa letra melancólica que reflete uma dificuldade de sincronizar os sentimentos com a pessoa amada.

Bowie fica mais introspectivo, começa a ler vorazmente sobre ocultismo, a admirar a nova cena eletrônica principalmente alemã, e acaba por conhecer uma outra figura do glam rock que também tinha musicalmente se reinventado: Brian Eno. 

Eno fazia parte com Brian Ferry, Phil Manzanera e outros de uma das incompreendidas bandas do glam rock no início dos setenta: Roxy Music. Nessa época Eno se vestia com roupas brilhantes, com penas, salto alto, e fazia loucuras psicodélicas no sintetizador. 

Brian Eno con Roxy Music, no sintetizador

Depois teve desentendimentos musicais com Brian Ferry, saiu da banda, fez outra banda breve chamada 801, porém na turnê se acidentou gravemente de carro e ficou hospitalizado mais de 6 meses . As suas buscas o levaram para uma música mais contemplativa, e era essa virada na qual Bowie estava interessado.

Com Brian Eno, Bowie irá ter o que para mim é sua época mais brilhante, a chamada trilogia Berlin: os álbuns Low, Heroes e Lodger.

Low é um álbum profundo, rico em ambientes numa contemplação e desprovido da vontade de criar hits ou impressionar multidões, completamente diferente de tudo que Bowie já tinha feito: eles dois compõem em parceria, usando e abusando de teclados e sintetizadores. E destas longas sessões de composição e edição que nascem sucessos como “Speed of life” ou “Sound and Vision” e “Warsawa, uma peça inspirada numa música tradicional polonesa, mas também uma música melancólica onde Bowie alcança esses raros momentos de iluminação que temos na contemplação da vida, que lembra de como às vezes parece que sempre erramos do mesmo jeito, como se andássemos em círculos repetindo os erros e cujo título é quase uma crítica risonha disso: “Always crashing on the same car“.

Low foi gravado nos alpes suíços, mas em Heroes, David Bowie, Brian Eno e a banda estavam em Berlin, respirando o ar dos habitantes do muro da vergonha, sentindo a opressão da guerra fria, ouvindo os primeiros punks ainda cibernéticos ou eletrônicos, ou crus como os Pixies de Iggy Pop, que Bowie estava ajudando e produzindo, até tocando timidamente como mais um músico, deixando Iggy ser a figura do palco.

Desta época de Heroes começa a parceria com Robert Fripp e surgem além da música tema do álbum outras obras como Beauty and The Beast e Joe The Lion.

Brian Eno, Robert Fripp e David Bowie durante as gravações de 'Heroes'

Mas deixem apresentar para vocês uma outra obra prima desconhecida, inspirada na força motriz alemã que estava reerguendo a nação, simbolizada nos seus antigos foguetes V2, e em Florian Schneider, o genial fundador do Kraftwerk e é com essa inspiração que nasce V2-Schneider.

Brian Eno tinha produzido pouco tempo atrás uma banda promissora ainda desconhecida chamada ‘Talking Heads’ onde tinha conhecido um dos jovens guitarristas que agora estava na banda de Frank Zappa, um tal de Adrian Belew.

Ainda na Alemanha, Bowie soube que Zappa estava de turnê.

Por recomendação de Eno, Iggy Pop e Bowie foram ao concerto, e num momento em que Zappa solava, Belew aproveitou para se aproximar e tietar Bowie, dizer quanto o admirava. “Ah, é?”, disse Bowie. “E você gostaria de tocar na minha banda ?”, e assim à queima-roupa Bowie roubou o guitarrista de Zappa, que tinha o espírito perfeito para o próximo álbum: “Lodger”, um álbum totalmente inspirado nos assuntos randômicos, aleatórios, que dominam nossa vida. Bowie até se negou a dar dicas sobre as músicas para assim inspirar improvisações libertárias de Belew.

David Bowie e banda no Musikladen, 1978 (Carlos Alomar e Adrian Belew entre outros)

Neste disco tem outra obra excelente e desconhecida chamada “Boys Keep Swinging” onde um cínico Bowie brinca com a construção de gênero social e sem sentido num mundo conservador e machista (inclusive onde no vídeo promocional Bowie se caracteriza em tres personagens mulheres). Se repararem no solo nesta música poderão ver que foi construído a partir de vários takes de improvisos separados na guitarra.

Depois desta trilogia Bowie começa a tentar a fama.

Nas gravações de ‘Heroes‘ , Bowie tinha conhecido Robert Fripp que passa a ser a guitarra líder no seu disco ‘Scary Monsters‘. Essa faixa título é uma associação entre zombies e a forte adicção às drogas, mas que foi um fracasso de público, porém pavimentando o caminho ao estrelato que depois conseguiu com “Let’s Dance“.

A música que ficou um ícone dos anos 80 e que está neste álbum é ‘Ashes to Ashes‘, e também está a famosa ‘Fashion‘, porém vamos ouvir um outra obra desconhecida que talvez descreva os relacionamentos passageiros de Bowie dessa época, se sentindo um pouco usado ou em relacionamentos pouco maduros, adolescentes, música que tem um contraponto e um solo maravilhoso de Fripp: “Teenage Wildlife“.

(Os músicos dos anos sessenta e setenta se perderam completamente nos anos 80 e muitos nos 90 também. Vamos pular… mais… mais um pouco … mais… Tá bom!)

Na metade dos noventa já tem um Bowie repaginado, antenado com novos tempos. Além de dois enigmáticos, inovadores e densos álbuns como Outside e Earthling, um Bowie assumidamente cyberpunk monta Bowienet, uma rede que foi portal, discador e provedor de internet, a última novidade de um mundo novo.

Earthling tem aquela foto icônica com fundo teletubbies com Bowie de costas vestindo uma union jack rasgada. Mais uma vez pioneiro, nesse álbum está ‘Telling Lies’ que foi lançada previamente na rede, chegando a 300 000 downloads em ’96 quando a lançou -e não se engane, são números astronômicos para a época e o primeiro single lançado na rede por um grande artista.

Capa de Earthling

Mas essa velocidade toda para repentinamente em 2002 quando um malestar na turnê de Reality faz Bowie interromper turnê, aparições públicas, faz uma cirurgia cardíaca, e depois passa a viver mais recluso, a se dedicar a sua esposa Iman – Zara Abdulmajid e sua recém nascida filha Alexandria.

David e Zara (Iman) festejando aniversário de casamento

O hiato acabou subitamente em 2013, e Bowie estava no seu segundo álbum de músicas inéditas desde a sua volta quando a morte exigiu o seu corpo finalmente e de uma vez por todas, talvez tentando completar o que seria sua última trilogia, nunca saberemos.

Para fechar então vamos ouvir do seu penúltimo álbum The Next Day uma composição desta última fase mas pouco conhecida, com uma letra forte sugerindo um demônio ou assassino serial tirando o pior de nós nesses tempos estranhos: “If you can see me, I can see you”.