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Episódio #18: Todo aquel fulgor

Capa de 'Artaud'de Pescado Rabioso

 

Uma breve estória sobre a construção de um dos álbuns mais aclamados do rock latinoamericano, primeiro na lista de melhores de rock latino para a revista Rolling Stone, “Artaud” de Pescado Rabioso.

Roteiro: Julián Catino

Trechos do ensaio “Van Gogh, suicidado pela sociedade” de Antonin Artaud narrados por Henrique Oliveira dos podcasts “Errado Não Tá” e “Kit de Releituras Musicais“.

A transcrição do episódio está aqui.

A lista de músicas no episódio estão na íntegra e na ordem na playlist aqui.

‘Todo aquel fulgor’ é uma frase de ‘Cantata de puentes amarillos’ que traduzi mal e porcamente como ‘todo aquele brilho’ que é o que Spinetta pede que temos que trazer do exterior para a nossa comunidade:

En un momento vas a ver que ya es la hora de volver
pero trayendo a casa todo aquél fulgor, ¿y para quién?
las almas repudian todo encierro
las cruces dejaron de llover.

Traduzindo mal e porcamente:

“Num momento verás que é hora de voltar,

mas trazendo a casa todo aquele brilho , e para quem ?

as almas rejeitam toda reclusão

as cruzes pararam de chover”

 

Spinetta nos trouxe sempre todo aquele brilho em forma de musica, e por isso essa é a nossa homenagem a ele.

 

Transcrição do Episódio #18: Todo aquel fulgor

 

Estudios Phonalex. Rua Dragones 2250, Bajo Belgrano, Buenos Aires. Essa parte baixa do bairro de Belgrano fica entre o aeroporto para vôos domésticos, o aeroparque Jorge Newbery, e o maior campus universitário da cidade, a UBA, bem encostado ao Rio de La Plata que banha a cidade. Os estúdios Phonalex foram a casa de vários nomes importantes da música regional argentina, como Atahualpa Yupanqui, e do início do rock. Lá gravaram La Pesada del Rock & Roll, Sui Generis, Pappo’s Blues e também bandas del Flaco, Almendra e Pescado Rabioso. E no final de 1972 El Flaco está novamente nos estúdios Phonalex para gravar o terceiro álbum de Pescado Rabioso.

 

Luis Alberto Spinetta, El Flaco, fundou Pescado Rabioso assim que saiu de Almendra, uma banda mais para um rock hippie light e bucólico, um rock mais próximo de um Dylan, o primeiro herói do Spinetta. 

Logo de almendra, um jovem de verstido roxo com uma lágrima caindo e uma flecha de borracha na cabeça, representando a idiotice humana

Quem inadvertidamente descreve esta passagem de Almendra para Pescado Rabioso a partir das composições que inspirou é Cristina Bustamante, a primeira musa de Spinetta.

 

Cristina era a filha do segurança do prédio onde morava Emilio del Guercio, outro dos membros de Almendra. Passou a frequentar os ensaios da banda, a participar do redemoinho criativo de desenhos, leituras, conversas e muita música. Luis e ela se apaixonaram nessa época. A primeira composição dedicada a ela é um hino ao mais pleno amor adolescente que virou um hit quase instantâneo: “Muchacha ojos de papel”.

 

fotografia de Luis Alberto Spinetta quando jovem

Muchacha’ é uma das grandes construções poéticas do Luís, só sua voz e o violão. Suas letras acariciam ideias entre a visão idílica da menina entre a adolescência e o tempo de colégio, descobrindo sua liberdade, através de uma linha poética tão pura que parece uma canção de ninar.

Os membros de Almendra disseram que ele levou a letra já pronta e só fizeram arranjos e coros.

Muchacha’ foi um sucesso imediato e levou Almendra para a fama precocemente, algo que nem o Luis esperava.

Almendra irá fazer as primeiras ‘aventuras do rock’, encontros com a poesia beatnik, com o rock e blues americano, e sua latinização. Spinetta já tinha uma ‘queda’ por acordes diferentes dos clássicos do rock, e também ‘latiniza’ o rock de fora cantando em castelhano, uma novidade para a época, como faziam alguns outros, como ‘Manal’. O ‘baby’ nestes anos é traduzido como ‘Nena’ e por isso muitas músicas tem esse adjetivo nas letras.

Só que El Flaco foi se distanciando dessa sonoridade da banda e se aproximando do blues-rock e de solos mais longos, mais próximo do psicodélico, e termina por deixar Almendra.

Lá pelos 70 ele virou a chave para um rock mais para o blues provavelmente pela influência de um hard rock argentino da primeira hora, Pappo, do Pappo’s Blues. No início do Pescado eles se apresentavam juntos com o Pappo’s Blues, os dois tem muitos blues e riffs mais rockeiros. Enquanto Pastoral, Manal, o próprio Almendra estavam para o folk, Charly García estava para o progressivo mais sinfônico do outro lado, e Pappo num terceiro lado num blues mais cru, Spinetta decidiu explorar esse blues, mas com uma maior profundidade sonora.

É assim que começa Pescado Rabioso, com Amaya na batera e Osvaldo Frascino no baixo, que depois será substituído por David Lebón no baixo e esse power trio se junta depois Carlos Cutaia, que era convidado nos shows para completar com os teclados.

Pescado Rabioso se torna também um local para experimentar todas as ideias possíveis: um blues rasgado, um riff avassalador, um progressivo mais reflexivo, algo mais psicodélico, às vezes tudo isso na mesma canção. Há um fervilhar de ideias novas em todos na banda onde um puxa a criatividade do outro, e essa combinação ora é puxada pela poesia spinetteana, ora pela linha de baixo de Lebón, ora pelos teclados moog de Cutaia, …

Pescado Rabioso foi o grito musical de raiva no meio da loucura da realidade, atual até hoje, já que recentemente Eminem usou ‘Ámame Peteribí’ como base para o seu rap ‘Stepdad’ (eu acho que ele estragou um pouquinho colocando a letra dizendo que odeia o padrasto, mas enfim…).

Também tem belos momentos de puro encantamento, como no Rock da Selva Mãe (Rock de la Selva Madre) um hino hippie que tem todos os componentes do progressivo na sua mais alta expressão.

Seguindo a linha de músicas inspiradas pela primeira grande musa de Spinetta, a segunda música influenciada por Cristina Bustamante abre o primeiro álbum Desatormentándonos, que já tem um Spinetta completamente diferente.

Blues de Cris’, um blues forte com El Flaco confessando que está ‘cansado de falar com Cris’ e sua mente está, como diríamos hoje, com um duplex da Cris na cabeça. Da mesma forma que confessa que ‘seus olhos esquecerei’ diz que tem que respeitar o seu silêncio. Já confessa o fim da relação com um rock pesado mas com um lirismo único.

Atado ao meu destino, no limiar do meu caminho voltarei’. Assim como reconhece que não faz mais parte de sua vida, irá influenciá-lo ainda.

Essa época de Pescado Rabioso eles tem a ousadia de simplesmente anunciar o lugar onde irão tocar, e o lugar lota. Era a comunicação boca a boca do início do rock que sem redes sociais nem internet conseguia levar milhares de adolescentes aos eventos onde quiser que eles tocassem.

As composições de Pescado Rabioso tem arpegios complexos, terças e quintas em acordes inesperados, riffs contundentes e uma sincronia melódica única para aquela época. As letras tem influências do Spinetta da poesia dos franceses como Rimbaud e Baudelaire, assim como influência dos beatnik a Carlos Castaneda. Pescado Rabioso é um trem cuja caldeira arde de rock, seu trilho é o blues e o maquinista nos leva a países da poesia. Provavelmente havia uma pesada experimentação psicotrópica, mas também um trabalho musical exaustivo para criar músicas que são clássicos até hoje.

 

Um grande exemplo desta veia de Pescado Rabioso é a última música desse álbum, ‘Serpiente (Viaja por la sal)’. Nesta época as letras de Spinetta passeiam pelo surrealismo, misturando impressões do dia com visões do mundo tirados de uma imaginação quase cinematográfica. É um rock com um pé no progressivo, mais heavy com uma potência sonora que nenhuma outra banda tinha.

 

É claro que os tempos na Argentina eram terríveis, a volta de Perón do exilio e sua subida ao poder com a sua nova esposa Isabelita foi midiática mas em termos práticos, efêmera. Pouco depois de um ano depois da posse, Perón irá morrer deixando um governo fraco que deixava para trás os sonhos da justiça social. Ele mesmo tinha enterrado esse sonho no retorno ao seu país, quando deixou a ala direita do partido abrir fogo contra membros da esquerda no que seria a sua festa de volta do exílio. Nos meses seguintes, depois da carta branca de Perón para a ultra direita, enquanto as facções disputavam o poder dentro do mesmo partido, a direita fica cada vez mais violenta e passa a realizar o seu plano de eliminação de inimigos. Ante a violência da ultra direita do partido peronista que passou a eliminar membros da esquerda, que respondiam com sequestros e atentados, em 24 de março de 1976 os militares irão destituir o governo peronista e protagonizar um dos governos mais brutais da história moderna do continente.

A banda nesta época está num momento de intensa criatividade e é por isso que o segundo álbum é duplo, o que provoca inclusive problemas com a gravadora, que queria mais um terceiro álbum, mesmo que este ‘valia por dois’, tanto pela quantidade como pela qualidade sonora.

E como demonstração da importância da relação do Spinetta com Cristina, no segundo álbum há outro rock/blues dedicado ao fim da relação : ‘Como el viento voy a ver’, um rock que começa acelerado para depois parar e passar a um blues lento e melancólico. Porém mais complexo e com uma cadência que o rock argentino desconhecia. E era isto que Almendra nunca lhe iria dar e que é o ápice de Pescado, essa revolta de um rock blusero mas onde é possível improvisar, encontrar novos acordes, novas possibilidades dentro de um rock rasgado e sentido. A letra é bastante clara em confessar que cada um deles, Luis e Cristina, abandonaram a relação (você não me deixou, eu também não te deixei).

Mas os outros integrantes estavam frustrados de viverem numa época prolífica, criativa, mas terem pouca influência nas ideias da banda.

 

Para o terceiro álbum, Cutaia e Lebón queriam colocar suas ideias em pauta, mas Spinetta já tinha muitas composições em mente e não pensava abrir mão delas. Foi assim que El Flaco chegou nos estúdios Phonalex, no Bajo Belgrano, para gravar o terceiro álbum da banda Pescado Rabioso.

 

As discussões entre eles se tornaram silêncios, que depois viraram ausências. Primeiro um, depois outro, cada um deles foi abandonando o projeto. E Spinetta ficou só.

 

El Flaco ia ficar sozinho esperando em Dragones 2250. Mais ninguém ia aparecer, e as gravações foram canceladas.

 

Talvez dominado pela raiva de ter sido abandonado, ou talvez porque tinha um propósito muito firme, decidiu que seguiria com seu plano de um próximo álbum. E eram os outros integrantes que tinham abandonado o projeto e por isso seria o último álbum de ‘Pescado Rabioso’. Ele era ‘Pescado Rabioso’ agora e faria o que achava melhor. E sua ideia era um álbum que aos poucos tomou forma com a ajuda do seu irmão Carlos Gustavo* e um ou outro colaborador, sendo o resto inteiramente composto e interpretado por El Flaco. Era um álbum que passou a chamar ‘Artaud’.

Antonin Artaud influenciou as artes na França no início do século XX. Sua conexão com o dadaísmo e com o surrealismo, aliado a mal estares físicos reais nunca bem diagnosticados (talvez associados a uma meningite que sofreu de jovem), o fizeram ter o estigma de ‘louco’, que o forçou a padecer uma longa caminhada  por manicômios durante boa parte de sua vida. Houve diversas tentativas de tratamento. Artaud foi, como outros casos precoces do início de século, uma vítima do sistema manicomial, sistema este que não sabia bem o que fazer para protegê-lo de suas crises e o utilizou como cobaia para os tratamentos mais macabros, desde eletrochoques a tratamento com láudano, que o levou a uma adicção a opiáceos.

 

Artaud foi escritor, dramaturgo, poeta, mas sempre se considerou primeiramente ator. Um ator do maldito que tentava captar os sentimentos mais primitivos. Escreveu o manifesto ‘teatro da crueldade’ expondo sua ideia ser necessário entregar o público aos seus maiores conflitos da forma mais visceral possível. Seus escritos tinham uma poesia incomum que valorizava o ritmo das palavras e um certo non-sense que herdou dos dadaístas, mas também escreveu muitas cartas e manifestos expondo a falência do sistema manicomial e da própria vida moderna que se esconde atrás de uma pretensa sanidade. A loucura e a razão são temas que aparecem nos seus escritos, sua única e mais clara forma de protestar para médicos que o usavam de cobaia sustentados numa razão bem questionável.

 

Spinetta leu Artaud desde muito cedo. Seu sentimento sobre a miséria humana, seus questionamentos sobre a arte, a loucura e a suposta razão dos homens o surpreendia e inspirava. 

Retrato de Antonin Artaud numa de suas repsetntações, de boina e cachecol

O inspirava sim, mas principalmente empurrando-o a responder que a poesia e o amor tinham que vencer, mas que sim havia dissabores. Era necessária uma resposta para Artaud. Ele estava com várias delas em forma de música, e essa música era somente o pano de fundo para uma profunda poesia.

 

Então quando Spinetta ficou só, conseguiu ter tempo para se afastar de suas influências musicais como Deep Purple, Led Zeppelin, Pink Floyd e das letras como Rimbaud ou dos sinfônicos como Genesis. Spinetta queria soar como Spinetta do começo ao fim, não se parecer a mais ninguém do que ele próprio.

 

Essa viagem toma como inspiração alguns dos ensaios de Artaud, mas é somente um ponto de partida a partir do qual Spinetta começa suas reflexões.

 

O álbum começa com uma balada que nasceu a partir, ora quem diria, de uma conversa com Cristina Bustamante, agora como amigos que confidenciam seus problemas terrenos. Cristina tinha acabado um relacionamento e estava grávida. A partir das conversas entre eles, onde Luis se viu apoiando que não abortasse porém sabendo que criar um novo ser vivo requer responsabilidade e em definitiva é um ser que deve ser criado com cuidado mas para que seja livre, nasce um dos seus maiores hinos: “Todas as folhas são do vento” (Todas las hojas son del viento).

Spinetta depois também comentou que ficava preocupado vendo pessoas do seu meio que precisavam mudar sua postura ao terem filhos e sair da balada eterna das noitadas -por isso ‘cuida ele das drogas, nunca o reprimas’, ou seja tomar conta mas criar uma pessoa com a liberdade que ela merece.

Porém as folhas são do vento, todos afinal avançamos de forma inexorável para a morte. Essa poesia crua e direta evoca as feridas que Artaud tocava sem medo.

Essa menção à morte segue para mais um (quem diria) blues rasgado ‘cemitério clube’.

Há várias interpretações possíveis: sobre a morte de um relacionamento e o rancor que fica (‘que calor fará sem você no verão, ou seja, como você é fria!’, ou ‘assim que pensei em você, caí morto’), mas também pode significar a desolação de um governo perverso que deixa como legado uma legião que cultua cemitérios, onde Spinetta canta como uma alma penada ‘Quem deu ao pequeno deus o cetro cinza do abismo ?’.

Musicalmente Spinetta aquí parece se apoiar da suposta simplicidade do blues para criar uma harmonia inusual e um clima único que nos fazem até duvidar dessa simplicidade.

A próxima música é uma poesia concreta jogada na cara, do nada, e cantada somente com o violão. As palavras se concatenam de forma quase surrealista, pintando ideias num filme que só acontece na nossa mente através dos conceitos que as palavras significam ou que trazem à tona somente pela sua sonoridade.

Já no meio do álbum a diversidade de assuntos se concatena à diversidade de tipos de poesia e ritmos diferentes, sabemos que vamos numa viagem a suas próprias entranhas. Há poucos instrumentos, para que a poesia tome lugar de um instrumento e para que cada acorde tenha um lugar, de uma forma quase minimalista.

Porém não somos meros espectadores. Em certos momentos a melodia vai nos falar mais da letra do que a letra, onde há somente uma palavra.

Superstições nos amarram, o medo nos paralisa (‘sempre tremer, nunca crescer, isso é o que mata o teu amor’).

O título da música (supercherías, ou seja fraudes) nos dá uma dica: a superstição nos dá falsas verdades como bijuterias baratas.

Já estando no meio das entranhas del Flaco teremos que enfrentar as verdadeiras perguntas a considerar.

Do que temos sede ? O que somos diante da imensidão ? Spinetta canta acompanhado de violão sobre a sede verdadeira, quebrando a parede e falando diretamente ao ouvinte sobre as ansiedades do artista e o que o público espera dele como artista e como indivíduo.

Através de mim não irás achar a paz,

se não é em ti mesmo, nunca irás encontrá-la

Pintura 'Ponte de Langois com alvadeiras' de Vincent Van Gogh

Em ‘Cantata de pontes amarelas’ (Cantata de puentes amarillos) estamos no ponto central da resposta spinetteana a Artaud.

 

A inspiração foi o ensaio ‘Van Gogh, suicidado pela sociedade’ que Artaud escreve no final de sua vida, mostrando Van Gogh como uma alma pura caminhando num mundo pútrido e sombrio. Responde de forma ácida sobre a suposta ‘normalidade’ argumentando com base no sadismo dos médicos psiquiátricos das instituições por onde passou. No ensaio há trechos que expõem o sofrimento que os supostos tratamentos lhe causaram, o que põe em questionamento tanto o tratamento quanto o sistema que o justifica:

 

Agora estamos no cerne do meio do centro da alma spinetteana. Já nos confessou sua humanidade e que não tem a intenção de ser idolatrado. Spinetta agora quer nos mostrar que até Artaud tem conserto, que seu pessimismo é real mas pode ser curado, mas que a participação do ouvinte para manter esse fogo é vital para que a troca com o artista continue.

Antonin Artaud na velhice

Spinetta nos convida a andar com ele através da pintura de Van Gogh, aquele que Artaud chamou de ‘suicidado pela sociedade’. Artaud carregava a dor de ter sido um gênio não só incompreendido como desprezado como louco, e assim como Van Gogh, afastado da sociedade normal, forçado a ser eletrocutado para manter a calma -seu cérebro precisava ser fritado em nome da racionalidade. Spinetta reflete sobre a jornada do artista que traz as reflexões da sua experiência e a entrega ao seu público, e que isso não pode ser cerceado. A sociedade precisa entender essa jornada e não cercear, encaixotar.

 

As pontes amarelas devem nos libertar da visão errônea do ser e através das possibilidades dessas paisagens nos fazer ver o mundo de uma forma diferente, e é essa a missão do artista. A música combina momentos de imagens surrealistas que nos atingem como raios de luz, seguidos de momentos de reflexão. É uma pequena peça de rock progressivo construída com violão, algumas guitarras, poucos acompanhamentos, e sua voz.

 

Cada estrofe é uma seção diferente: primeiro convida a acompanhá-lo na viagem (‘tudo pode andar’), apresenta o problema dos dirigentes de homens que não tem compaixão (‘sujem suas mãos como sempre’). Depois aborda o conflito entre aprender com as experiências da vida mas sem se perder no caminho (‘é hora de voltar , mas trazendo para casa todo aquele brilho’, ou ‘todas aquelas bonecas estão sangrando de tanto chorar‘), do conflito de viver em comunidade mas respeitando a individualidade (“olha o pássaro, morre na sua jaula”), e no fim termina na volta dessa jornada, de manhã.

Os poucos instrumentos deixam a poesia brilhar como a verdadeira protagonista.

Existem milhares de interpretações e a minha é somente mais uma dentro da quantidade imensa de referências através do surrealismo e os poucos mas certeiros golpes de violão. 

 

Spinetta sem dó nos leva a outro ponto da sua montanha russa num rock que virou um clássico: Bajan, a descrição dos conselhos para que o ocaso não vire um pesadelo.

O dia deita para morrer, a lua vira névoa sem fim, mas tomara que os seus olhos ainda me amem. A poesia é de uma simplicidade direta que nos atravessa mas de uma forma boa, não como uma espada que nos quer tirar a vida e sim como uma revelação na forma de um rock como só Spinetta podia fazer.

O final de Artaud é primeiro a revelação dessa mesma idiotice da humanidade que se acha  racional e sábio mas que irá perder sua vida olhando o vazio, ‘queimando enquanto olha o sol, e esta é a estória de quem espera para acordar, … vamos embora!’.

 

Já fugindo e no final da viagem El Flaco nos relembra que nossa liberdade precisa ser conquistada. E não, ela não vale mais do que a vida, liberdade é o caminho de respeitar os outros, cuidar dos pequenos, amar até a medula, nunca reprimir, ter responsabilidade consigo e com os outros, e principalmente que o que disserem de você, é falso.

 

Artaud’ tem tudo: é rock, blues, rock progressivo, reflexão, muita poesia, um disco redondo. Um importante detalhe é que o encarte foi construído de forma a não encaixar em nenhuma prateleira, é uma pintura desenhada num octógono, que também lembra uma página aberta, um fundo verde com um brilho amarelo como uma luz surgindo dele. Anos depois foi adaptada ao quadrado do CD, mas ‘Artaud’, além de figurar como melhor disco de rock latino, foi uma proeza jamais repetida, e jamais irá encaixar em nenhuma prateleira.

 

 

*Alteração posterior corrigindo o nome do irmão de Spinetta (fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Gustavo_Spinetta), foi o meu amigo Nicko que me avisou deste erro.

Episódio #17: Quando o PMRC enfiou o PAL

Quando o PMRC enfiou o PAL
Letreiro simulando etiqueta de aviso parental “Quando o PMRC enfiou o PAL”

 

A implementação de selos de aviso parental e a discussão da censura na música nos EUA dos anos 80.

Participaram neste episódio (la creme de la creme do mundo podcastal independente hein?) :

Constituição americana: Shi (80 Watts)

The PMRC Filthy Fifteen: Leandro Pereira (Fermata) / Cafeína (Papo Delas) – Julián / Cris

Frank Zappa : Rodrigo Hipólito (NaoPodTocar / MIDCast)

John  Lofton : Julián

Tom Braden : Julián

Dee Snider : Danilo de Almeida (DoubleCast / Já Ouviu esse disco?)

John Denver : Pedro Janczur (Semibreves)

Ice-T : Bergs (Confábulas)

A transcrição do episódio está aqui.

Músicas incluídas no episódio em ordem cronológica na playlist aqui.

O Shi tem também um episódio no 80 Watts sobre a lista das ’15 indecentes’ , confira aqui.

 

Ouça aqui:

 

Transcrição do Episódio #17: Quando o PMRC enfiou o PAL

 

 

Um dos péssimos atores do western dos anos 40, Ronald Reagan saboreava o seu auge na política no final de 1984.

 

Presidente de 1947 até 1954 do maior sindicato de atores, governador da Califórnia nos anos sessenta pelo partido republicano. Ganha a primeira presidência em 1981 e é reeleito no final de 84.

 

Mas também nesse mesmo final de 84 está também no seu auge um redemoinho dançante de guitarras loucas chamado Prince. Prince sempre teve muita música ao redor. Seus pais eram do mundo do jazz, tinha primos cantores, e desde cedo tocava todos os instrumentos de suas composições. No começo dos oitenta consegue desenvolver um timbre único, e cria uma mistura de R&B, música eletrônica e rock que, na falta de outro rótulo, chamamos de ‘pop minneapolis’, uma das bases do pop dos anos oitenta.

 

Na música ‘Computer Blue’, Wendy ‘fala’ como o computador azul com Lisa.

 

Assim cria a aura de um computador frio dentro de uma música dançante e tensa ao mesmo tempo.

Então em 1984 Prince renova o R&B deixando ele dançante e pop enquanto Reagan governa com apoio da bancada evangélica americana, pelos conservadores no congresso, navegando no sucesso econômico. Ele usa o anticomunismo para impulsionar um aumento do gasto militar baseado no patriotismo e nas ideias conservadoras em voga na época. Batiza a Rússia soviética de  ‘império do mal’ e afirma que deve ser combatido para manter o american way of life. O objetivo era vencer a guerra fria, combatendo por debaixo do pano qualquer força favorável ao bloco soviético que esteja nos domínios ocidentais.

 

No final de 1984 Prince & The Revolution tem seu álbum de estréia “Purple Rain”. Os assuntos das músicas são, entre outros, a busca da personalidade do protagonista (The Kid) numa sexualidade mais livre num mundo onde tudo pode-se comprar ou fabricar. Prince compôs quase todas as músicas e algumas na colaboração das parceiras Wendy Melvoin, Lisa Coleman e Apollonia Kotero.

 

Prince já era um exímio guitarrista, além de se converter num performer único. E tinha uma voz cativante com a que conseguia gritar, cantar e manter notas altíssimas com uma naturalidade ímpar. Ainda em cada música questiona de uma forma muito pessoal nossa relação com familiares, com o sexo, com a tecnologia.

 

Eram muitas novidades para uma música pop: guitarras editadas passadas por sintetizadores, baterias eletrônicas, as letras sensuais, tudo editado de uma forma coesa e num som único, moderno e cativante. Prince insere solos virtuosos de guitarra nos momentos mais inusitados, seus vídeos eram danças elaboradas e sensuais e Purple Rain rendeu ainda um filme. Foi um enorme sucesso entre os jovens e embora o filme nem tanto, o álbum foi um sucesso de crítica e influencia cantores até hoje.

 

Cada música tem uma estrutura onde Prince consegue encaixar um momento de um diálogo instrumental, muitas vezes com performances na guitarra, momentos supremos no sintetizadores ou riffs acompanhados de baterias eletrônicas.

 

Enquanto isso, um Reagan confiante continuava indo cada vez mais longe no seu anticomunismo: no anterior mandato já houveram acusações de apoiar uma guerrilha de direita que tentava derrubar o governo sandinista na Nicarágua, os Contras. Depois de reeleito conseguiu autorizar um valor de 30 milhões para entregar armas para o Irã libertar reféns americanos. A ideia era trocar armas pelos reféns.

 

Só que 18 dos 30 milhões foram utilizados na verdade para financiar os Contras, um comando guerrilheiro de direita que tentava derrubar o governo nicaragüense sandinista. As provas das investigações posteriores mostraram que a CIA os financiou mesmo sabendo que eles usavam também o tráfico de drogas para financiar sua campanha. Na época Reagan negava tudo isso, e estava tudo OK.

 

Na sua bolha de felicidade e progresso, Tipper Gore,  como muitas mães ianques ao redor do país,  comprou Purple Rain para Karenna, sua filha de 11 anos. Era um disco popular. Ouvir Prince era descolado.

Tipper Gore era esposa do Al Gore, nessa época um importante membro da casa legislativa americana pelo Tennessee, e que depois seria o vice do presidente Bill Clinton. Al Gore também era descolado, tivera uma banda de rock na juventude e gostava desse novo rock influenciado pelo pop.

Não sabemos o que aconteceu nos aposentos dos Gore. Eu imagino a Karenna ouvindo no seu quarto e cantando junto com Prince :

 

I knew a girl named Nikki

I guess you could say she was a sex fiend

I met her in a hotel lobby

Masturbating with a magazine

She said how’d you like to waste some time?

And I could not resist when I saw little Nikki grind

 

Talvez sua mãe viu sua filha dançando e começou a prestar atenção na letra. Ou talvez a própria Karenna estivesse cantando com o Prince.

 

  • Que disco legal, mãe, obrigado! O que é se masturbar com uma revista ?
  • Eu quero também masturbar com a revista mãe! – diz a filha Krsitin de 5 anos

 

Tipper não deve ter acreditado nos seus ouvidos. A letra continuava deliciosa descrevendo uma Nikki super desinibida, indecente, provocadora, que abria portas que ela desesperadamente precisava…

 

A Tipper advogada deve ter procurado a noite toda por leis, convenções na mídia e descoberto que nenhuma legislação podia proibir mr Prince de escrever e publicar tal música. Prince ou outro músico podiam escrever letras com essas palavras, e nada podia ser feito. Gol para a primeira emenda que diz :

 

“O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos.”

 

Não importava que a música continha uma estrutura fabulosa de canção e de um redemoinho de baterias eletrônicas, guitarras que pareciam metralhadoras, que um Prince ensandecido cantava dançando entre oitavas com uma facilidade espantosa.

 

Mas existe outra possibilidade: as filhas de Tipper sequer terem se importado com a letra, e toda a sacanagem, balbúrdia e sexo proibido acontecerem somente na sua cabeça conservadora e amedrontada.

 

Ela tinha comprado o álbum para a filha e 

ficou horrorizada 

com uma porcaria de rima

com ‘se masturbar com uma revista’

 

Não ouvi o riff com guitarras dialogando com um sintetizadores, nem seu crescendo com a bateria eletrônica vibrando ?

 

Prince, para concluir o tripé do inferno, acaba a música com uma saudação, porém numa fala ao contrário, provavelmente para que Tipper Gore e outras mães imaginem uma invocação do mal. A saudação ainda é super positiva e diz que “o Senhor está vindo”. Mas porque Prince gravou a mensagem ao contrário? Não seria então o contrário, que o Senhor dele é o Senhor das trevas ?

 

Prince sempre foi evasivo ao explicar as suas letras e se servia de provocações para se promover, então deixou como sempre tudo no ar.

Mas Tipper Gore não podia deixar barato. Os anos 80 precisavam parar essa onda ‘libertina’. Como assim letras de ‘colocar o meu amor em você’ como do AC/DC ? Como assim ‘Me coma vivo’ do Judas Priest ?

 

Então ela e sua legião de mães conservadoras contra a libertinagem do rock fundaram o que seria o PMRC, Parents Music Resource Center ou Centro de Recursos Musicais para Pais. A proposta pública era discutir sobre a qualidade das músicas e teor das letras ouvidas por menores. Por trás disso, o interesse era a de dar ferramentas para proibir, banir ou impedir que essas músicas proliferem.

 

O núcleo duro era composto por quatro mães -e principalmente esposas de homens da política:

 

Além de Tipper Gore formavam parte: Susan Baker, esposa do James Baker, secretário do tesouro; Pam Howar, esposa de um famoso corretor de imóveis de Washington, Raymond Howar; e Sally Nevius, esposa do presidente do Conselho da cidade de Washington John Nevius.

 

Elas eram esposas de parlamentares e ‘gente de bem’ de Washington e ficaram conhecidas como as ‘Washington Wives’. Não era difícil para elas utilizar a influência na sua causa.

 

A primeira ação do ‘movimento’ foi listar 15 músicas ‘sujas’. Várias músicas que ficaram conhecidas como ‘As 15 nojentas’ foram marcadas pelo rótulo de conter ‘sexo’, outras continham ‘violência’ ou ‘mensagens demoníacas’ e outros rótulos como ‘apologia às drogas’.

 

1 Prince – “Darling Nikki” – Sex/masturbation

2 Sheena Easton – “Sugar Walls” – Sex

3 Judas Priest – “Eat Me Alive” – Sex/violence

4 Vanity – “Strap On ‘Robbie Baby'” – Sex

5 Mötley Crüe – “Bastard” – Violence/language

6 AC/DC – “Let Me Put My Love Into You” – Sex

7 Twisted Sister – “We’re Not Gonna Take It” – Violence

8 Madonna “Dress You Up” – Sex

9 W.A.S.P. “Animal (Fuck Like a Beast)” – Sex/language/violence

10 Def Leppard “High ‘n’ Dry (Saturday Night)” – Drug and alcohol use

11 Mercyful Fate “Into the Coven” – Occult

12 Black Sabbath “Trashed” – Drug and alcohol use

13 Mary Jane Girls “In My House” – Sex

14 Venom “Possessed” – Occult

15 Cyndi Lauper “She Bop” – Sex/masturbation

 

Mesmo que não houvesse uma menção clara, é óbvio vendo a lista que o heavy metal e o pop são os únicos alvos.

 

É curioso também que depois do heavy metal o outro alvo das Washington Wives sejam figuras femininas do pop como Madonna, Sheena Easton e Cyndi Lauper. Há um quê de repressão sexual aí. ‘Sugar Walls’ que Easton cantava era abusivo por ser uma referência à vagina, como se não houvesse centenas de músicas que faziam referência ao pênis de todas as formas.

 

O rock sempre foi rebeldia, mesmo quando as Washington Wives eram jovens. O heavy metal dos anos oitenta atraía os jovens com uma mistura de referências satanistas, roupa escura, uma antítese do ideal conservador cristão. A briga estava instalada.

 

Depois de colocar a discussão em pauta, o PMRC passou a pressionar as gravadoras. Assim como o cinema tem faixas de idade recomendando que seja visto por maiores de idade da faixa para o filme, deveria haver algum ‘aviso’ sobre o que ia ser consumido. Como diria mais tarde Frank Zappa “se parece censura, tem cheiro de censura, é censura, não importa a esposa de quem o diga.”

 

Um dos apoiadores que inclusive financiou o grupo foi Mike Love, um dos fundadores do Beach Boys. Embora ele diga ser progressista, as suas ideias o levaram a apoiar republicanos conservadores como Ronald Reagan e Donald Trump.

Prince além de encabeçar a lista conseguia estar em dois títulos, pois além de Darling Nikki Prince é autor da letra de ‘Sugar Walls’. Quem conseguiu a proeza foi o seu produtor David Leonard que também estava na produção de Purple Rain. Ele conseguiu um encontro da Sheena Easton com Prince onde conversaram de tudo. Depois disso ela não foi contratada como achava, mas Prince escreveu a letra de ‘Sugar Walls’ especialmente para o álbum solo dela sob o pseudônimo de Alexander Nevermind.

 

Podia haver centenas de músicas abusivas no folk, mas a preocupação do PMRC era que Easton convidava ao prazer do sexo oral feminino, e isso era um terrível tabu para quem criava meninas pré-adolescentes.

 

Ao contrário do que muita gente pensa, Frank Zappa não tinha nenhuma música  diretamente censurada. E ele tinha muitas músicas antigas com letras que com certeza sofreriam essa nova censura, mas na época tinha liberado a banda e estava compondo e tocando com o Synclavier e outros sintetizadores de forma a poder tocar suas composições humanamente impossíveis de serem tocadas, deixando com os robôs o trabalho pesado. 

 

Seu disco ‘Jazz from Hell’ é instrumental. Só há uma música com mais de um músico nela. Ele teve o selo ‘Parental Advisory’ por somente um par de meses e algumas lojas na California, supostamente pelo ‘Hell’ no título do álbum, mas foi mais uma jogada de marketing do que uma censura.

 

O PMRC avançava desenhando um selo contendo uma categorização de músicas com letras numa classificação especial marcando com o ‘X’ letras que continham sexo, ‘V’ para violência, letras ‘demoníacas’ com ‘O’ de oculto, e ‘D/A’ para menções sobre drogas ou álcool.

 

Houve muito debate sobre o assunto e algumas figuras da música passaram a aparecer nos talk shows para denunciar a censura dessas propostas.

 

Tipper Gore foi a alguns dos debates perdendo educadamente todos eles, mas o que importava era marcar presença.

 

Alguns comentaristas mais moralistas começaram a colocar uma lupa nos autores aumentando a exposição como imorais ou vulgares. Prince já tinha outra letra controversa na música ‘Sister’ onde descreve o incesto de um jovem com a sua irmã, deixando no ar se foi ou não auto biográfico -poderia ser até possível já que Prince conviveu na sua adolescência com as suas tres irmãs depois do divórcio dos pais, mas não há nenhuma certeza sobre isso. Mas o ponto é que passou a se rotular Prince de ‘defensor do incesto’, o que é um salto lógico, um declive escorregadio no argumento, manchando a imagem pública de um performer que menciona incesto em suas letras, em último caso um abuso que teria sofrido.

 

Um dos pontos fortes dos debates foi a entrevista no Crossfire com Frank Zappa. Tom Braden é o apresentador junto com comentaristas como Robert Novak, da casa, e John Lofton, um famoso conservador do Washington Times. Esse era o formato do programa, o apresentador e outro comentarista do canal entrevistando duas pessoas de opiniões contrárias num `fogo cruzado`.

 

O apresentador coloca os dois lados do problema dizendo que há letras de músicas que acha inapropriadas e que não acha que deveriam entrar na sua casa. Por outro lado, achariam correto que o governo proíba essas músicas ? E quem seria o censor ? Quem diria o que deveria ser rotulado ou o que não deveria ?

 

A defesa de Zappa é que não há nenhuma evidência científica de que certas palavras levem a pessoa a cometer tal ato seja de sexo, violência ou uso de drogas.

 

John Lofton tenta encurralar Zappa apelando para a qualidade das mensagens das letras.

 

JL – Você apoia álbuns que promovem o incesto como forma de sexo ou que em certas circunstâncias sería aceitável ? Você apoia isso ?

FZ – Não, eu não tenho interesse no incesto, mas não acho que alguém em sua sã consciência desejaria que o governo se entrometa instaurando um colégio censurador que impeça que se digam certas coisas 

FZ – Posso fazer uma declaração sobre o departamento de defesa nacional ?

JL – Sim

FZ – A maior ameaça hoje para os EUA não é o comunismo, é levar o país para uma teocracia fascista, e tudo o que aconteceu ao longo do governo Reagan nos leva exatamente para essa direção

(…)

TB – De que forma ? Me dê um exemplo de teocracia fascista

FZ – Quando existe um governo que prefere certo código moral derivado de certa religião, e esse código moral torna-se uma legislação que se encaixa ao ponto de vista dessa religião, e esse código resulta ser de muito muito de direita, quase no nível de Átila o Huno…

JL – Então vc é um anarquista, cada forma de governo é baseada em algum tipo de código moral, Frank

FZ – Moralidade em termos de comportamento, não em termos de teologia

 

Em meados de ‘85 a indústria fonográfica americana já tinha aceitado colocar uma etiqueta de ‘aviso parental’ denominado PAL (Parental Advisory Label) para álbuns que contivessem letras ‘potencialmente ofensivas’ e as lojas Wal Mart decidiram que não venderiam álbuns com esse selo.

 

Foi feita uma audição pública no senado norteamericano onde alguns autores queriam se pronunciar publicamente. 

 

Apareceram nas audições John Denver, autor de folk, Frank Zappa e Dee Snider, líder dos Twisted Sister. Dos tres somente o Twisted Sister estava nas ‘15th filthy list’.

 

John Denver explicou nas audições o porquê de estar lá: uma música sua tinha sido auto censurada por várias rádios do interior por terem considerado que a música era uma apologia às drogas, o que deixou ele revoltado. A música era Rocky Mountain High e é uma homenagem às Montanhas Rochosas no Colorado e à beleza bucólica de um jovem que as conhece e tem uma epifania sobre a beleza natural e imponente.

 

Isso leva ao primeiro ponto grave da censura sugerida pelo PMRC: censores assim como pessoas, interpretam, e mal interpretam letras. Tudo leva a privilegiar uma interpretação que geralmente fala mais dos preconceitos de quem ouve do que da música em si.

 

Dee Snider deixou claro que a sua letra ‘Under the Blade’ também foi mal interpretada. E sentenciou uma das frases mais contundentes das audições:

DS: “Há uma frase com a que concordo com o PMRC e é que é o meu trabalho monitorar o que os meus filhos veem, ouvem e leem durante sua pré-adolescência. A responsabilidade recai na minha esposa e em mim porque MAIS NINGUÈM é capaz de fazer esses julgamentos por nós.

 

Depois veio a audição do Frank Zappa. Usou e abusou de cutucadas irônicas além de deixar claro os principais argumentos sobre a implementação do selo.

 

Primeiro marcou um argumento contra a desonesta comparação com o rating de filmes: 

 

FZ: “Uma vez que muitos músicos escrevem e executam seu próprio material e o consideram sua arte (você goste ou não), uma classificação imposta irá estigmatizá-los como indivíduos. Quanto tempo para que os compositores e intérpretes sejam instruídos a usar uma faixa do PMRC no braço com sua letra escarlate?

 

John Denver também utilizou uma comparação ao regime nazi :

 

JD: “Um sistema de classificação do ‘establishment’, voluntário ou não, abre as portas para um desfile interminável de Programas de Controle de Qualidade Moral baseados em “Coisas que Certos Cristãos Não Gostam”. E se o próximo grupo do Washington Wives exigir um grande “J” amarelo em todo o material escrito ou executado por judeus, a fim de salvar crianças indefesas da exposição à doutrina sionista oculta?

 

As audições criaram polêmica. Eram bons argumentos. Mas não mudaram o fato de uma parcela pequena mas ruidosa da população clamar por uma regulação, e a indústria se amedrontar e adotar as sugestões do PMRC.

 

Mesmo assim a etiqueta acabou acontecendo. E a indústria não detectou queda nas vendas. A pressão das gravadoras nos autores para não serem rotulados foi interpretado pela maioria dos autores como censura.

 

Reagan teve que enfrentar em 86 o escândalo dos Contras, onde após uma investigação pelo Congresso americano ficou evidente que havia milhões desviados para apoiar os terroristas contra o governo nicaraguense por baixo do pano, além de provar que o governo sim negociou com os iranianos armas em troca de reféns apesar de Reagan sempre dizer `nunca negociar com terroristas`. Reagan não foi diretamente acusado. Sua popularidade despencou, mas conseguiu eleger Bush pai, que continuou e diversificou as loucuras intervencionistas de Reagan, que Bush filho perpetuou e desencadearam outros monstros.

 

A partir dos 90 o alvo passou a ser o rap e suas letras cruas e contestadoras. Então nessas rodadas seguintes de debates quem brilhou foi Ice T. Mas a etiqueta do PAL se consolidou apesar dos protestos.

 

Era época de talk shows, Oprah Winfrey organizou um debate onde estavam Tipper Gore, o líder da banda Dead Kennedys Jello Biafra, Ice-T e outros. A contra-capa do álbum Frankenchrist incluía a pintura ‘penis landscape’ do H R Giger, na mira do PMRC. Além disso, tempo depois Biafra iria participar na música “Freedom of Speech” do Ice-T, um verdadeiro manifesto contra o PMRC.

 

Ice-T se defendeu das acusações de ‘incentivar o estupro’ explicando que a linguagem que usa é das ruas e não existe essa defesa, além de dizer de não usar drogas, ir à escola mas que o PMRC pegava com pinças referências tiradas do seu contexto cultural.

 

Ice-T: O negócio é o seguinte: você tem que engolir a pílula toda, você ouve o meu álbum, você tem que engolir a pílula inteira. O problema com o Ice-T é que eu digo para não usar drogas, ir à escola, não ir para a cadeia, amar seu irmão, mas acontece que eu gosto de Freddy Krueger, se você abrir uma revista da Playboy eu vou dar uma olhada nela, então em outras palavras o que eu faço é mostrar-lhe uma pessoa inteira, todo mundo tem um algum vício, mas eu mostro a pessoa toda. O problema é que quando você mostra o vídeo de grandes apostadores você mostra a parte que não tem nada a ver com o assassinato real, aquele vídeo era sobre não ser um apostador e no final do vídeo eu acabo morto, você sabe.

 

É bom lembrar que liberdade de expressão para Biafra ou Ice-T era trazer o debate das ruas nas suas composições. Ser a favor de criar um partido nazi em pleno século XXI ou boicotar a vacinação numa pandemia não é liberdade de expressão, é liberdade de opressão.

 

Foi um interessante debate, mas a PMRC continuou ganhando batalhas: o Parent Advise Label reformulou sua etiqueta e marcou vários álbuns.

 

Ganhando batalhas ? Se olhar os indicadores da indústria hoje, o selo não faz com que a música ou o autor sejam menos ouvidos, em alguns casos é quase uma promoção e na maioria passa despercebido. Podemos pensar que o PMRC ganhou porque sua `marca` existe até hoje. Mas também podemos dizer que perdeu porque essa `marca` foi tão banalizada que não significa mais nada.

 

A autocensura das gravadoras se reduziu a um apito em algumas palavras proibidas. 

 

Afinal, o selo hoje faz parte do mercado fonográfico e da cultura musical. Num mundo sem álbuns ou CDs, os selos marcando como ‘explicito’ estão no título da música nos aplicativos que tocam as músicas com letras que contenham certas palavras tabu, que ninguém lê. No máximo a censura será a auto-imposta que não deixará ouvir claramente as merdas de putas censuras.

 

Sem conteúdo não há plataforma

Somos podcasters e temos programas onde entregamos episódios periodicamente para que os ouvintes possam disfrutar deles quando queiram, do jeito que quiserem.

Mas há distribuidores que se apropriam do áudio, o distribuem na sua rede, cobram assinaturas do ouvinte e não repassam esses valores para os produtores.

Foi a ferramenta do feed que deu ao meio do podcast a liberdade que o fez prosperar. É a liberdade do ouvinte que lhe dá esse poder, de ouvir o que quiser, quando quiser e como quiser.

Mas hoje é utilizado como um conteúdo dentro de plataformas. Essas plataformas não compartilham seus ganhos das mensalidades de ouvintes. Como se a obra fosse deles. Seus ganhos são privados, nosso conteúdo continua sendo público.

Hoje esses distribuidores são os principais meios de escutar podcasts no Brasil e também em outros países. Então se afastar dessas plataformas de distribuição seria se afastar do ouvinte, o que também não é justo.

No caso o feed é uma ferramenta útil, porém também é um empecilho porque permite que os distribuidores se apropriem do seu uso.

Mas o que acontece se não houver distribuição ?

Precisamos mostrar para as plataformas uma coisa importante: sem conteúdo não há distribuição. Sem produção de podcast não há conteúdo. Sem conteúdo não há negócio.

Considere colocar um episódio do seu podcast no seu site mas não no feed. Anuncie para os seus ouvintes onde está o conteúdo, sem deixar ele disponível em qualquer plataforma de streaming.

Pode também fazer um episódio ao vivo porém sem distribuir ele no feed. Quem ouviu, como numa rádio, não ouvirá mais esse conteúdo, o que o deixa mais relevante, mais efêmero, menos material, sem possibilidade de ser injustamente apropriado por ninguém mais de quem o fez, e quem o ouviu.

Essa é a essência de um programa de áudio. A nossa ligação como ouvintes será maior. E as plataformas saberão que estamos aqui.

Coloque a hashtag #conteudosemplataforma para marcar presença.

Esta idéia foi inspirada no movimento ATAC do ECDQEMSD.

ECDQEMSD (En Caso De Que El Mundo Se Desintegre) é um podcast desde antes de se chamar assim, já com áudios de 1999 e no ar até hoje. O Pirata e o Sr Lagartija conduzem o programa com estórias dos ouvintes.

No começo de 2022 soltaram o manifesto ATAC (Audio Transmisiones Aleatorias y Clandestinas – ou ‘transmissões de áudio esporádicas e clandestinas’) desafiando fornecer outra experiência, com áudios não armazenados posteriormente em nenhum servidor.

“O projeto A.T.A.C vai tentar recuperar a essência o meio do podcast que perdeu por acreditar que tinha chegado sua hora. Como se a bicicleta tivesse decretado o seu fim com a chegada do carro.

O rádio não é imagem. O podcast é rádio. O podcast não é imagem.”

Neste link está o manifesto completo

 

VNP #07: Saudade do que não foi

capa com tanque na rua em sepia

Uma reflexão sobre o sentimento de memória afetiva de algo que não ocorreu. No caso um sessenta e quatro que vive na memória de gente que sequer viveu nessa época.

Inclui a paródia “Assim sem você”

Episódio #16: La Grasa

Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

A estória do mais famoso álbum de Serú Girán, banda argentina de rock dos anos 80 chamado de Beatles argentino  formado por Charly García, David Lebón, Oscar Moro e Pedro Aznar.

A transcrição do episódio está aqui.

Narração do Expreso Imaginario por Sebs dos podcasts 3 Sonidos e Cerveza Barata.

Ouça o episódio aqui:

Gostou do episódio? Ouça a playlist das músicas tocadas no episódio!

 

Transcrição do episódio #16: La Grasa

Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

La Grasa

“Adiós Sui Generis’ no clássico estádio Luna Park não foi o primeiro concerto de rock argentino. Mas foi o mais falado e que na perspectiva mudou o olhar para o rock tanto da produção fonográfica quanto das mídias tradicionais da época, o rádio e a TV. 

Curiosamente era a despedida do grupo liderado por Charly García e Nito Mestre -faziam parte dele também Juan Álvarez e Rinaldo Rafanelli. A pergunta entre os jovens era ‘como assim? Sui Generis está se despedindo?’ Para muitos Sui Generis era a melhor novidade do ano, mas já levava 6 anos na estrada, e para Charly já tinha acabado, queria seguir outros projetos.

Naquela época passavam meses e até anos para um sucesso se consolidar, muito mais num país atravessando repressão policial e golpe após golpe de estado, quando a cultura era um inimigo do estado.

Um dos grandes clássicos de Sui Generis é ‘Confissões de inverno’ que conta a estória de um garoto sem trabalho que passa frio e fome, que apanha da polícia mas tem esperança das coisas melhorarem. 

Muitos jovens se identificaram imediatamente com o grupo por esse tipo de rima popular cantada de forma rasgada de um folk autêntico e sulamericano.

As letras de Sui Generis questionavam a sociedade conservadora da época desde o olhar de dois adolescentes dessa mesma sociedade. Uma letra clássica dessa ótica está na forma do Natalio Ruiz, o homem do chapéu grisalho, que de acordo com a sua classe social (sua estirpe) não se atreve a pedir a mão de sua amada, escreve poemas de rimas antigas, e acaba morto para preencher mais um jazigo na Recoleta, o cemitério da alta sociedade. Outra é “Aprendizagem”, de rimas simples mas diretas, que descreve as mesmas experiências de escola que parecem um The Wall mas do outro lado do Atlântico :

“Aprendi a ser formal e cortês 

cortando o cabelo uma vez por mes”


“e tive muitos professores dos quais aprender,

só conheciam sua ciência e o dever

ninguém se atreveu a dizer uma verdade

o medo sempre foi bobo”

Carlos García Moreno, conhecido como Charly García ou só Charly, foi desde cedo um prodígio e sua boa posição social ajudou a que tivesse grandes mestres na música. A influência de sua mãe -que tinha um programa de música folclórica- fez com que conhecesse desde muito jovem grandes nomes da música folclórica como Eduardo Falú e Mercedes Sosa. Eles mesmos recomendaram que estudara música porque tinha ouvido perfeito, ou seja, reconhecia as notas só de ouvi-las, e assim acabou num famoso conservatório musical e saiu graduado e elogiado. Mesmo com uma forte formação clássica desde cedo entra na música ‘popular’ da época, o rock dos anos sessenta.

Em Sui Generis o já mostrava o poder de síntese nas suas letras, descrevendo em um parágrafo como foi sua experiência no serviço militar obrigatório no coro de “Botas Locas“:

“Eu fiz parte de um exército louco,

tinha vinte anos e o cabelo bem curto

mas meu amigo houve uma confusão

porque para eles o louco era eu”

 

O pior que além da loucura da lógica militar Charly menciona tangencialmente um acontecimento real: ele se fez expulsar do quartel fazendo uma cena com um cadáver alegando assim insanidade.

Mas Charly também tinha um mar de composições instrumentais que precisava expandir e no vivo fica claro com uma breve música. Um pouco de música clássica, um pouco de jazz, bastante de uma necessidade de um rock novo que na época era chamado de progressivo.

Fica evidente no ‘Un hada, un cisne’, uma música que descreve o amor impossível entre uma fada e um cisne, que no vivo se transforma numa peça de jazz de 27 minutos, ou na “Fuga do Paralítico” que também se expande no ao vivo. É um Charly que o público desconhece mas que claramente quer navegar mais perto do rock progressivo da época, afinal estamos em 1975 e bandas como Genesis, Yes e Deep Purple moram já no seu coração.

O mundo das baladas folk com alguma protesta tinham ficado para atŕas, ele já tinha conseguido alguns amplificadores e sintetizadores, nada fáceis de conseguir naquela época.

Após a dissolução amigável do Sui Generis, Charly tinha tanto material ainda no formato de Sui Generis que deu para montar um ‘mini-supergrupo’ de amigos chamado Porsuigieco: a formação era Raúl Porchetto e sua banda, os membros do Sui Generis, León Gieco e María Rosa Yorio, na época casada com Charly.

Alugaram todos uma casa, compuseram as músicas, arranjaram as já prontas e fizeram um único álbum de um cancioneiro meio hippie, meio folk.

María Rosa Yorio canta a belíssima ‘Quiero ser, quiero entrar’ que é a música de amor de Charly mais intensa :

“Me convida a ver tua historia

Não falarei que já a sei

me esconde nas memórias

quero ver, quero viver”

Ela já estava grávida do Migue, o único filho de Charly.

Ela também canta em dueto com Nito uma parceira entre León Gieco e Charly chamada “Todos los caballos blancos” nesse sentimento hippie com uma forte inspiração do folk americano, e ainda há outro folk de Gieco com o arranjo de Charly “La colina de la vida”. É uma época de músicas diretas de folk com ritmos onde dá para sentir os vento no cabelo e a vida na natureza. A vontade era de viver plenamente uma vida natural e sem limites.

Raul Porchetto era mais ciumento com suas composições, mas Gieco convida seu companheiro e ídolo Charly a modificar suas composições e com isso há várias colaborações riquíssimas com o tom folk de Gieco e os arranjos lindos e as letras afiadas de Charly como “Viejo solo y borracho” (velho só e bèbado) que entre outras ‘verdades de um velho que ninguém ouve” diz “Cristo foi morto por dizer que o lugar mais longíquo é este que estamos pisando“ ou “todos os dias caem para morrer sobre a terra e nunca mais se levantar”. É a mais pura filosofia hippie de aproveitar cada dia porque nunca será como hoje.

Sui Generis tinha sido ‘acompanhado’ pelo Comfer, a censura da época mas que no caso de Sui Generis não chegou a interferir diretamente pelo medo de uma repercussão negativa. Isso criou uma falsa aura de invencibilidade entorno de Charly, e León Gieco propôs que ele cantasse uma música que ele tinha certeza que seria censurada. Charly se recusou, e talvez com peso na consciência, presenteou seu amigo com uma música que tinha cantado somente ao vivo, “El fantasma de Canterville”. Tinha referências ao famoso conto de Oscar Wilde mas também ao estado de medo e de desaparecidos políticos dessa época conturbada. León Gieco cantou a música no seu disco solo mas teve que fazer ‘adaptações’ para poder publicá-la. Só que no PorSuiGieco “El fantasma de Canterville” foi proibida de aparecer no álbum e outra música foi incluída a último momento.

Charly ficou putaço e nunca aceitou essa censura, achava infame alguém querer alterar sua obra. Mas enquanto Charly se revoltava por uma única obra censurada, muitos de seus amigos tinham ficado na prisão e muitos outros já tinham fugido.

Muitos músicos precisavam prestar depoimento após apresentações, ou apanhavam regularmente da polícia, ou eram diretamente ameaçados ou ‘convidados’ a sair do país, tanto na Argentina quanto em outros países sudacas, como o grupo chileno Inti-Illimani que estava na Europa quando houve o golpe no Chile e nunca mais puderam voltar lá.

Billy Bond, um dos fundadores do rock argentino, do Billy Bond y la pesada del rock & roll, organizou o primeiro grande evento musical no Luna Park. Mas o show terminou numa confusão quando a polícia tentou expulsar algumas pessoas e o restante do público revidou e a polícia apanhou feio. Depois disso Billy Bond disse que achava ser seguido e tempo depois foi para o Brasil, virou produtor musical, fez parte do Joelho de Porco e nunca mais voltou a trabalhar na Argentina.

Depois do intervalo do paz e amor hippie do folk, Charly voltou para a cidade para tentar realizar o seu sonho: uma banda de rock progressivo mas com um tom sulamericano, argentino, algo único que os seus ídolos ingleses nunca poderiam fazer.

Assim forma “La máquina de hacer pájaros” com Carlos Cutaia, o arranjador que conseguiu adaptar com perfeição o musical Hair na Argentina e que estava muito antenado com a instrumentação das bandas progressivas da época. Na batera estava Oscar Moro de Color Humano e Pappo’s Blues, o proto metal argentino.

La máquina de hacer pájaros” é esse convite a uma poesia, que é o que resta fazer. Por isso seu segundo álbum se chama “Filmes” porque a realidade massacrante faz com que o único que tem por fazer é ver filmes -e esse é o título de uma das músicas do álbum.

“La máquina” é esse convite a desfrutar de um minuto de poesia diante da opressão do dia de um governo que não deixava ninguém nem respirar.

A banda foi também um feliz experimento para muitos músicos que já apostavam numa complexidade da cena do rock, e Charly tinha essa magia de realizar composições complexas, boas de ouvir e que chegavam a todos os públicos.

Com “La máquina” consegue a complexidade instrumental que estava procurando, com suas letras com queixas da opressão americana como em “Como mata el viento norte”, o vento norte sendo a influência norte americana apoiando ditaduras que condenam o continente ao atraso e o ostracismo mundial e que lentamente nos mata.

Por um lado quer respirar um pouco em paz:

“Não quero saber nada

com a miséria do mundo atual

hoje é um bom dia

há algo de paz

a terra é nossa irmã”

Mas Charly sabe que mora numa ditadura que o isola do resto do mundo:

“Marte não cede 

ao poder do sol

Venus nos apaixona

a lua sabe de sua atração

enquanto isso morremos aqui

com os olhos fechados

sem conseguir ver um palmo de nosso nariz”

Também tem a música ‘Hipercandombe’. ‘candombe’ é uma expressão musical e cultural uruguaia dos escravos vindos de Angola e que faz parte da miscigenação musical dos ritmos africanos com os da América do Sul. 

E Charly usa um novo candombe já rockeiro para descrever o destino do jovem médio jovens de evitar a polícia, do medo de ter cabelo comprido ou simplesmente de existir num ambiente militarizado e opressivo :

“Quando a noite te deixa desconfiado indo perto do rio

a paranoia é talvez nosso pior inimigo

cobres tua cara e teu cabelo também como se tivesses frio

mas na verdade você está tentando escapar da confusão”

A crítica acostumada com um Charly rebelde mas hippie ou folk e não no rock progressivo não entendeu bem ‘La Máquina’ no início; algumas das críticas apontavam que La Máquina era muito hermético. Musicalmente chegava para os músicos ou os críticos, mas não para o grande público. Charly era um músico formando sua identidade e entendeu o recado mesmo que sua relação com a imprensa fosse sempre conflitante: a verdade era que o Spinetta Jade e para o seu líder El Flaco Spinetta estava tudo certo ser um pouco hermético ou fazer uma música não tão comercial, mas para Charly o público geral precisava entendê-lo.

Nessa busca Charly lá por 78 sem querer monta outro supergrupo. Fizeram um concerto (“Festival del amor”), e com o dinheiro arrecadado Charly vai com sua namorada brasileira para Búzios e convence a David Lebón a tocarem juntos.

David Lebón tinha começado cedo ‘esse negócio do rock’. Viveu com os pais nos EUA dos 8 aos 17 anos, e ao seu pedido, a sua mãe o levou a um concerto dos Beatles ainda criança, e decidiu que era isso que queria fazer. David nunca parou de tentar ser músico, participando de tudo quanto era banda na sua adolescência já novamente em Buenos Aires: foi baterista em Color Humano, participou de várias bandas com Luis Alberto Spinetta, El Flaco, e na última reencarnação, Pescado Rabioso, estava como baixista.

Charly e David ficaram alguns meses em Búzios até chegarem numa sintonia, e daí alugaram uma casa em São Paulo em frente ao Jardim Botânico, prontos para montar a base da banda.

Chamam Oscar Moro que tinha feito as bateras da Máquina. Moro recomendou um baixista que ele tinha ouvido no grupo de rock progressivo Alas: Pedro Aznar, um meninão de 17 anos que já tinha fundado outra banda progressiva, Madre Atómica (impossível não ver a referência a Pink Floyd embora a banda esteja mais para um jazz-rock).

Um dos pontos que atraiu Charly era que Pedro Aznar gostava de misturar rock com tango, que era algo que Charly também queria fazer. Eram as idéias de fazer o rock nacional, de ter um toque que outros não teriam, de criar uma sonoridade especial.

No começo Pedro teve que conquistar seus amigos muito mais rodados mas a escolha acertada fica evidente no solo da primeira música do primeiro álbum da banda : Eiti-Leda

Eiti-Leda já existia e se chamava ’Nena’, mas a versão anterior foi finalmente sepultada por esta versão muito mais elaborada e crescida.

Serugiranística, e assim como outras músicas desse álbum e também do nome da banda, todos eles foram feitos escolhendo sílabas aleatoriamente mas com uma força nova e total. A banda era Serú Girán.

Existe uma música chamada Serú Girán todas com palavras inventadas por Charly e Lebón onde entre “cosmigonon” ou “paralía” estão “Eiti-Leda” (talvez de Eighty Letters ?) e Seminare.

Nesse primeiro álbum há outra composição de Charly com um quase homónimo afro-argentino, Carlos Alberto García López, el Negro García, um exímio guitarrista sem a fama de Charly mas que ele sempre valorizou e que depois o acompanhou na sua carreira solo. A música é Seminare e é um dos hinos do rock argentino que ficou eternizada na voz de Lebón.

Charly queria uma sonoridade e musicalização de rock progressivo, mas sua lírica era de gerar canções. Ainda a proposta musical era similar a La Màquina de Hacer Pájaros: fazer poesia, uma música plena, lírica no desastre cultural da ditadura. Segundo o grupo o pais precisava de poesía, mas o país estava imerso num problema muito mais concreto, muito mais básico.

Essa foi a interpretação comum: não conversava com a realidade do país. Por mais que fosse evidente o nível elevado das composições elaboradas, elas não conversavam com o ouvinte normal de rock, com o ouvinte de blues, com o ouvinte de tango, com o cara que comia um prato de massa e tomava um vinho barato, quem estava sofrendo uma ditadura ferrenha e mais um inverno econômico.

A Expreso Imaginario, uma das grandes revistas underground de cultura e música, fez uma crítica devastadora. Segundo a crítica pareciam dublês tocando, parecia que sua alma tinha sido roubada, alheios à realidade, muito embebidos da felicidade de Búzios.

Das discussões e conclusões da banda, começaram a surgir novas composições. Algumas delas estavam escritas como Noche de Perros mas foram totalmente reescritas e tocadas num ambiente mais hostil, mais cru da realidade de tensão criativa.

Assim nasceu o grande álbum de Seru Girán: La Grasa de las Capitales.

La grasa de las capitales é um canto ao grande problema argentino: as capitais concentram a população que nunca conversou com o resto do país, ficou brega e sem alma. O que importam teus ideais? Nada. A breguice e a mesmice dominaram tudo. E numa ditadura, como não é possível falar de temas importantes, as revistas publicam só farándula, só vida de artista.

Procurar a saída econômica fácil já fizemos, mas chega né?

A capa do álbum é uma paródia a uma Caras argentina da época. Na capa, um Pedro de gel no cabelo, terno e gravata, David Lebón de futebolista, Charly de frentista e Moro de açougueiro ilustram títulos falsos como esse tipo de revista fútil que costuma acompanhar a vida dos famosos.

Ao invés de notícias de verdade, a breguice vazia da vida dos artistas. A vida de Caras. Os pratos referidos dos famosos. Os namoros vazios dos atorzinhos de plantão.

As mudanças de ritmo e os riffs complexos dão lugar a melodias que nos levam a pensar. Onde estamos? Onde queremos estar? A urgência nos domina e percebemos que essa correria da cidade nos engana, é uma ilusão de urgência que só leva a mais um dia fútil para ganhar dinheiro para o patrão. A condução da base Moro-Aznar lhe dá o peso, a melodia dos pianos guitarras urgentes simulam essa pressa da cidade em chegar a lugar nenhum.

Ganhar o pão e vinho, ganhar o dinheiro do dia toda vez é uma ilusão de ir e vir que nos cega e não nos deixa ver que é uma corrida do rato num labirinto viciado. De que adianta seguir correndo? 

Chega de dançar nesse pool dancing do desespero.

A banda conseguiu aqui uma maturidade e integração que La Máquina não tinha e consegue se conectar com o público de uma forma nunca tinha acontecido: um rock elaborado, com letras atualizadas com a realidade opressiva e que o público conseguia cantar e ainda servia a todas as gerações.

 

O álbum segue com um lamento só na guitarra, São Francisco e o lobo confessando que após os homens o maltratarem e ‘abrirem feridas que jamais irão se curar’. Também há uma composição do Pedro Aznar, longa e um pouco descolada do álbum, complexa mas incompreendida. ‘O medo será a minha casa’.

A próxima música arranca a pele de uma pessoa dissimulada que não esconde o seu desprezo sobre o seu companheiro e Charly o compara à dor do cão Andalus de Buñuel.

As músicas nascem de melodias de Charly Garcia e tem colaboração conjunta de todos, como “Frecuencia Modulada” que descreve a rádio alienada que tanto conhecemos :

“Se na música que escutas não há vida,

se a letra não tem inspiração

mesmo aumentando o volume não há força

são os tempos que estão ocos de emoção

 

Hoje que estás no nada

se fecha em você mesma

e dá uma larga olhada

algo dentro teu tem que ter soar!”

Levanta a mão quem vê o mesmo movimento no Spotify !

Todos na banda deixam Pedro Aznar expressar a última palavra do baixo nas músicas.  Lebón passou a pontear e Aznar e marcar tanto os ritmos quanto a melodia, dando uma profundidade inéditas no rock. As guitarras são ponteios para reforçar um sentimento, ou rítmicas e o baixo aparece muito mais dando um peso único à sonoridade da banda.

O pessimismo lírico de Charly parece rodear o clássico e se apoia muito num tom do tango melancólico como “Os sobreviventes”. É quase um conto de zumbis onde os ‘sobreviventes’ estão cansados de tanto andar.

A letra já dá uma tônica de pessoas de eternos alheios imigrantes na sua terra e com isso uniu todos. Por que? Os argentinos se sentiam no seu hogar por acaso? Aqui a lírica de Charly se alia à musicalidade do grupo que compreende o sentimento lúgubre e potente dos sobreviventes a um sistema que oprime. Não há uma palavra mas a mensagem é completamente entendida.

Uma música nascida nas noites tristes de Búzios onde eles se sentiam pobres e famintos é “Noche de perros”. A intenção de um rock tangueiro sugerido em “Os sobreviventes” tem aqui a sua melhor expressão.

“Esta oscuridão

Esta noite de cão

Esta solidão

Que rápido vai te matar

Caminhas perdido nas ruas

Que costumavas andar”

Teu chão é alheio, tuas ruas são alheias. E tem que pedir dinheiro, você está só e sem ajuda.

A noite de cão é a longa noite de penúria numa ditadura que não deixa respirar. Uma longa noite que já levava mais de 5 anos e teria mais 5 para acabar.

“Eu já te vejo entre os carros pedindo perdão

o meu olhar tem toda a tua dor

A lírica rockeira misturada com um tango rasgado reclama centenas de anos de injustiças. Pois o tango na França pode ser relação e um namoro rebelde, mas na América do Sul tango é sofrimento, tango é dor! É algo que a banda vai explorar outras vezes: o sentimento de dor do país que nunca foi a partir da tristeza do tango junto com a potência do rock.

A confissão é de uma escuridão da alma. Essa solidão, esse escuro , era onde a sociedade estava, dentro de um tango noir que perpetuava a dor de milhares de desaparecidos, de milhares de vozes sem voz. A noite de cão para Argentina duraria mais alguns anos ainda.

“você não está só

se sabe que está muito só,

você não está cego 

se não vê onde não há nada”

O rock, o tango todos eles choram num blues rasgado e este sentimento será o que Seru Giran levará em outras músicas e que vai representar o sentimento de impotência e ao mesmo tempo de lirismo sobre a sua situação calamitosa.

Fã de Jaco Pastorius, Pedro Aznar criou o seu baixo frestless usando o baixo FAIM (Fábrica Argentina de Instrumentos Musicales) que ganhou quando tinha 5 anos. Arrancou ele próprio os trastes e foi com ele que tocou no primeiro álbum. Depois chamou um luthier amigo que restaurou o baixo colocando um braço novo também sem trastes, e é com ele que toca no La Grasa.

E termina com um lamento ao Hollywood que definha na sua própria futilidade. 

La Grasa, perfeitamente executado, contestador, foi uma machadada de rock nas nossas cabeças. FOi o álbum definitivo de Seru Girán, que teve outros álbuns depois, até melhor acabados, mas nunca com essa força nascida da impotência e ao mesmo tempo de tesão de toda uma nação.

O grupo acabou 4 anos depois com a saída de Pedro Aznar e a vontade de Charly de mudar novamente sua sonoridade, mas nunca mais participou de super grupos como Serú Girán.

 

VNP #06: O abismo

Uma pequena fábula, e depois uma reflexão-paródia de um de nossos brilhantes membros da cúpula.

Com as vozes de Cris e Julián.

A transcrição está aqui.

Com áudios de :

  • Presidente Lula em pronunciamento dia do trabalho 2010
  • Paulo Guedes – Brasil pós Pandemia
  • Osmar Terra em entrevista à RedeTV – Opinião no Ar
  • Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro
  • Natália Pasternak no Roda Viva
  • Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro