Episódio #22: D de David

Collage com imagens do video 'Jump They Say' e com fotos do filme 'La Jetée' mostrando suas semelhanças.
Capa do episódio ‘D de David’

Episódio com mais músicas ‘lado B’ de Bowie QUE VOCÊ SÓ OUVE AQUI e curiosidades dos álbuns e suas motivações.

Contém gatilho (tem aviso no episódio com minutos a pular).

Filme citado no episódio: “La Jetée”, de Chris Marker (1962) , completo e legendado no YouTube : https://www.youtube.com/watch?v=U_hX_iFQu8Y

Comentários sobre o video oficial de “Jump they say” por Leandro Pereira dos podcasts Fermata, Ergo e Esculhamados.

A transcrição do episódio está aqui.

Transcrição do episódio #22: D de David

D de David

 

Começando com uma advertência de não gatilho let’s dance with david bowie.

Sabe aquele disco famoso de David Bowie ‘Let’s dance’ ?

Então…

Não vou falar dele aqui porque esse é o lado de David Bowie que todos conhecem, além do álbum do Bowie que é o menos David.

Let’s dance” é o álbum com mais versões, menos autoral, onde menos se meteu nas melodias. Ele se preocupou mais com a sua imagem, com os vídeos promocionais, com a estética das capas, a estética da gira mundial, mas acredito que não é seu ponto alto em termos de composição, e nem era para ser, foi lançado para que os hits fizessem Bowie famoso no mainstream (esse era o seu objetivo, e o conseguiu).

E por isso não pretendo citar `Heroes` nem Ziggy Stardust.

E o propósito aqui neste minúsculo podcast é falar de momentos brilhantes de David que são pouco ou nada conhecidos. 

Já fiz um episódio B de Bowie, e seguindo a tradição agora apresento a vocês olhem o momento brilhante de inspiração deste podcast :

Depois de B de Bowie

D de David

‘All the Madmen’

Jerry, o irmão mais velho de David, foi seu ídolo da pré-adolescência e quem lhe mostrou muita música que seria futuramente a sua referência. Só que já na juventude, as crises cada vez mais severas deixaram claro que a esquizofrenia de Jerry só piorava. Foi internado para sair poucas vezes e de forma monitorada. O ambiente da clínica, a situação do irmão, de ídolo a louco que precisa ser internado, servem de pano de fundo para “All the Madmen” que já estava escrita fazia tempo mas aparece por primeira vez em ‘The man who sold the world’, assim como é inspiração para muitas das músicas do álbum.

‘All the Madmen’ faz referência ao mundo dos sãos que encarceram os doidos. O violão de Bowie acompanha sua voz melancólica narrando em primeira pessoa sobre como os sãos tratam aqueles que decretam loucos, os amigos são levados para longe, o deixa numa redoma de aparente felicidade, mas como suspenso para sempre nessa prisão controlada.

Compara as insanidades das nações, a música se transforma de um violão solitário com Rick Ronson para liderar a procissão da loucura.

E ainda há um poema declamado no meio da canção acompanhado de algumas vozes diferentes, mostrando a dualidade de toda experiência -ou talvez uma referência à esquizofrenia.

A música passeia entre o delírio e a cantiga infantil com uma orquestração de forma inteligente construída para não sentirmos a dicotomia.

E no final faz um coda numa forma de uma cantiga infantil -um recurso que irá reproduzir novamente mais tarde em ‘Ashes to Ashes’.

“Zane, Zane, Zane, ouvre le chien’ ‘solta o cachorro’ em francês.

Há como sempre várias teorias sobre ‘Zane, Zane Zane’ que vão desde as montanhas remotas da India até deuses esquecidos do Oriente Médio comparando outra obra posterior de Bowie, The buddha of Suburbia, mas eu acho que há uma solução mais simples: usando da repetição, não sabemos se diz ‘são’ (sane) ou louco (insane). Este efeito é aumentado colocando cada ‘Zane’ numa área dos canais, passeando da esquerda para a direita. ‘Ouvre le chien’ deve ser referência ao filme surrealista ‘Um cão andaluz’ (Un chien andalou), de Luis Buñuel -se não viu, veja.

https://www.youtube.com/watch?v=W8yKT7H_KJ0

Jump They Say

David foi juntando personas e criando conversas entre elas ao longo de sua carreira, e assim como em Ashes to Ashes onde é narrado de alguma maneira o fim ou a morte ou a página virada para o Major Tom, também é uma referência à esquizofrenia no sentido de que é como se os seus personagens estivessem sempre com ele, terminados ou não, ele os carrega para sempre, e por isso ressurgem ou se reinventam ao longo de sua carreira.

Agora imagino que você deve entender pq ele odiava esse lugar comum do camaleão do rock.

No falecimento de Jerry, David não quis comentar nada publicamente, mas alguns anos depois, na época de ‘Black Tie White Noise’ lançou ‘Jump they say’.

E agora sim um aviso de gatilho porque vamos falar da relação pesada com o irmão que teve um final violento.

‘Jump they say’ é também inspirada no Jerry, ou basicamente no fato de ter tirado sua vida. Mas também na opressão de se sentir incompreendido que unia o David artista do irmão que não agüenta, e um dia se joga no trilho de um trem.

Na música mistura essa ideia, com a ideia de uma sociedade que nos empurra a ir cada vez mais alto, ser cada vez mais ousado – olhem como escala, Pule!, eles dizem. A vida no estrelato é uma coleção grotesca de elogios, e de gente querendo que você se dê mal -e quanto mais alta a cima, maior o estrondo ao cair.

O vídeo, muito anos noventa, aparece um Bowie de empresário estiloso de terno e gravata com os outros empresários, misturando as imagens com ele dançando na cornisa, até ficar deitado placidamente sob um carro -uma referência ao chamado ‘suicídio mais belo’, a Evelyn McHale, uma garota que se jogou do Empire State Building, en New York e destroçou o seu corpo sobre um carro, ficando numa posse bizarramente placida que foi imortalizada por um fotógrafo. 

‘Suicidio mais belo’, que ideia bizarra.

Eles dizem ‘ei, isto é realmente algo importante’

eles sentem que deveria se perder um tempo nisso,

eu digo cuidado, meu amigo,

não ouça a multidão

que diz ‘pule!’

‘Jump they say’ não fez tanto barulho na época, mas mesmo assim foi criticado pela família por fazer dinheiro com a morte de Jerry quando na verdade é uma homenagem a tudo que Jerry significou para David.

‘1984’ e ‘Scream Like a Baby’

David como clubber desde os anos sessenta e setenta deve ter visto muita batida policial, muito amigo de cores erradas espancado, muita amiga gay apanhando, e talvez por isso tinha uma forte empatia pela descrição vívida de um estado policial como descrito em 1984. O livro de Orwell já tinha inspirado Diamond Dogs e como já contei anos atŕas, perdeu muito dinheiro tentando criar um musical  baseado nele. Mas além de Diamond Dogs ele se permitiu uma descrição em primeira pessoa da perseguição a um tal Sam na música ‘Scream like a Baby’, escondido no nada valorizado álbum ‘Scary Monsters’ , bradando ao som de tambores que nos dizem que precisamos fugir.

Se escondem abaixo de cobertores, nem se lembrando a última vez que viram a luz do dia. Sam encarna o líder de uma revolução que não vai acontecer :

Grita como um bebê

Sam era uma arma

e nunca soube o seu sobrenome

e nunca tivemos um momento de diversão

Um dia vão contra as bichas, descem as ruas colocando todos no camburão, sofrem torturas quebrando de vez sua mente tentando que se adeque à so… socie…socied…

Repare como a música termina com alguém apanhando a golpes de cassetetes que parecem uma bateria (ou o contrário?)

Sons of the silent age

O álbum ‘Heroes’ quase foi chamado como a música que Bowie acreditava que seria o hit do álbum: “Sons of the silent age”. Era uma das composições que estavam prontas quando decidiu começar o projeto.

‘Sons of the silent age’ é uma referência aos anos do cinema mudo, mas a partir dessa referência, David constrói um ambiente (sim, é ele no saxofone) ajudado por um Brian Eno sempre atento aos anseios de David com sintetizadores espaciais e coros com Tony Visconti trazendo a idéia desses quase elfos que não agem porque percebem que não pode ser feito, passam pela vida em silêncio e não morrem, somente um dia deitam a dormir.

Mas a música nunca foi um hit e ele até não a tocou muitas vezes ao vivo, embora já tenha falado que era uma das músicas das que mais se orgulhava de ter composto.

Por outro lado o clima das gravações acabou por criar ‘Heroes’ que mudou por completo o projeto -e a música mundial também.

A geração dos anos 20 do cinema mudo também como diz David:

 ‘Rise for a year or two then make war

Search through their one inch thoughts

Then decide it couldn’t be done

(‘ressurgem por um ano ou dois daí fazem a guerra, procuram nos seus pequeninos pensamentos e então decidem que não tem como fazê-lo.’)

É uma música que fala também de pessoas que vivem sua vida perfeita como elfos, sem questionar crenças nem preconceitos 

All I see is all I know’

(‘Tudo o que vejo é o tudo o que sei’)

‘New angels of Promise’

Na porta dos anos 2000 Bowie grava seu álbum ‘Hours’ com referências a um novo mundo guiado, roteirizado e dirigido pela tecnologia, principalmente a internet e os jogos eletrônicos.

Na capa de Hours David brinca novamente com suas personas: há um Bowie de cabelo longo confortando um Bowie do estilo anterior dos anos 90 ‘morto’, deitado no seu colo como La Pietá de Michelangelo.

Nessa capa ele usa propositadamente um estilo de letra bem cafona, mas popular nos primeiros anos da internet, e ainda um pseudo-código de barras onde se lê ‘hours’ e ‘bowie’ com números por letras alternados. O sub-tema do álbum é um tipo de aceitação à tecnologia à qual foi primeiro resistente, e depois entusiasta, mas que ainda acha bizarra.

A persona de Bowie dos anos 90 resistente à tecnologia morre e renasce um novo Bowie de cabelo longo, moderno, descolado.

Era 1998 e Bowie tinha um portal chamado bowienet que funcionava até como provedor de internet por um tempo, e se manteve depois como um fórum.

É nessa época que David criou um concurso para criar a letra de ‘What’s Really Happening?’, prometendo os créditos, um prêmio em dinheiro, uma assinatura anual da Rolling Stone, e a oportunidade de visitá-los no estúdio. Quem ganhou foi um fã chamado Alex Grant -ganhando de milhares de outros fãs, incluindo membros do The Cure. Alex Grant gravou os coros junto com um amigo num estúdio em NY.

Em ‘Hours’ há também algumas músicas que foram gravadas para o lançamento do game Omikron em cuja produção David se envolveu. Entre as músicas há uma quase continuação da Sons of the silent age chamada ‘New angels of promise’ (na letra até menciona ‘somos aqueles silenciosos’).

‘A Small Plot of Land’

E como era esse Bowie desconfiado desse novo mundo da tecnologia ?

Em meados dos 90 Bowie parte desde uma vaga ideia de um assassinato de uma jovem (uma estória vagamente inspirada em Twin Peaks) para montar um disco conceitual com o nome provisõrio de ‘Leon takes Outside’. O conceito seria em torno da tecnologia e as mesmas sociedades disfuncionais que ele cantava nos anos 70, mas agora nos 90.

Após as sessões de gravação, chama novamente o seu já velho colaborador Brian Eno para ajudá-lo a transformar as gravações acústicas em algo mais eletrônico, mais impessoal, as distorções ajudando numa visão de um mundo distópico e menos familiar.

O resultado é um disco bem inovador chamado ‘Outside’. É todo um álbum com muita experimentação em overdubbing, um toque de rock inndustrial e com muitas distorções em todos e cada um dos instrumentos e na voz de David declamando poesias do submundo em que o investigador Nathan Adler se mete investigando o assassinato de uma menina de 14 anos. As letras sugerem essa disfunção, violência, sanidade versus loucura e outras inquietações da vida moderna.

A música mais divulgada do álbum foi ‘Hallo Spaceboy’ com uma nova interpretação do mesmo Major Tom, space Boy tendo que enfrentar os anos 90 com esse caos o matando, mas a poeira da lua irá cobri-lo. Também pode ser interpretada como um investigador interpelando o assassino-protagonista da trama (você quer ser livre, não quer? vc gosta de meninas ou meninos? É confuso em hoje dia), sim, como tudo tem camadas, algumas delas nos levam muito longe…

Eu tenho certeza de que esses críticos urubus que aparecem após a morte de grandes artistas para se deliciar da carniça que resta e que se deliciaram na morte de David, jamais ouviram 10% de sua obra. Vários comentaram Blackstar dizendo que era a primeira vez que Bowie experimentava o jazz, e, é triste saber como estavam errados, e é triste porque nunca ouviram o tão brilhante quanto subvalorizado Outside e nem mesmo sua mais cabal prova de como o jazz nadava livre nas veias de David, e a prova se chama: A Small Plot of Land.

Uma peça tensa de um piano brincando com a melodia como um assassino espreita a presa enquanto David nos avisa como nossa alma está empobrecida, pobre alma idiota… 

O fabuloso solo de Reeves Gabrels denuncia esse jazz infernal e de um mundo distópico que não queremos olhar, o de um assassino que já sentenciou sua vítima e que lentamente nos leva até ela como uma procissão infame.

Dollar Days – I can’t give everything away

É demais dizer que foi a última persona, mas no começo dos anos 2000 David usou um desenho como avatar, de grandes olhos azuis, gravata e terno preto e camisa branca, um gibi do mini thin white duke, e usou ele para promover seu álbum Reality. Há muitas impressões do disco sobre como a realidade esbofeteou os americanos nos ataques de 11 de setembro, e outras ilusões que caíram nesses primeiros anos do novo século.

A música ‘New killer star’ levou essa bandeira, mas a música principal foi ‘Reality’.

A baixista Gail Ann Dorsey contou que estavam no palco performando ‘Reality’, no Reality Tour a música central do novo álbum ‘Reality’. Realidade demais de uma vez, David cantando sobre sua fragilidade, na letra fazendo trocadilho sobre sua morte e sua música ‘My Death’ ser só uma nota melancólica. 

Estava muito quente no cenário, e ela percebeu que David não estava mais cantando e sim arfando, não conseguindo respirar direito. Frases antes do final da música, David se agachou, coberto em suor, virou e voltou para dentro do palco. David quis rir da realidade, e a realidade esbofeteou seu rosto. Nunca vencemos da maldita ceifadora implacável.

Os músicos terminaram ainda sem saber, mas David acabava de sofrer uma arritmia forte, fora medicado e pouco tempo depois já ia direto pro hospital. Sofrera um pré-infarto. O show foi cancelado, a gira também. Abruptamente, David saiu dos cenários e oficialmente nunca mais voltou.

Talvez os seus 57 anos pesavam como nunca, então decidiu se retrair à vida doméstica que tanto desejava e amava de verdade. Sua filha Zahra nascida em 2000 engatinhava pela casa, sua esposa Iman continuava o protegendo e trabalhando como modelo , desfrutando de uma vida de uma familia rica em Nova Iorque.

A sorte de David foi perceber quando parar, olhar, repensar, desacelerar. E planejar quando e como iria enfrentar a velha ceifadora.

O resto da historia é mais conhecida: 10 anos depois ainda gravou 2 álbuns que preparou no mais absoluto sigilo. O último, Blackstar, estreou no seu aniversário, como tinha feito outras vezes, porém desta vez como a peça final de sua morte iminente, que tinha escondido de todos e ocorreu quase horas depois do lançamento.

O final do álbum BlackStar é um resumo dessa longa despedida, com ‘Dollar Days’ falando da pequenez de nossa existência e fazendo um trocadilho entre ‘queria muito’ e ‘estou morrendo’ (I’m dying too). A continuação e grand finale é ‘I can’t give everything away’, onde abre o seu coração em todos os sentidos. Mas consegue como confissão final nos avisar que não pode nos dar tudo mastigadinho. Há uma série de trocadilhos na letra mas a música conseguiu ser uma despedida à altura mostrando como nos brindou todo o que podia e que conseguiu se despedir da forma que desejava, jogando pérolas. E a música é nostálgica e positiva ao mesmo tempo, primeiro o sax depois a guitarra se dedicando a malabarismos, como a nossa vida, tentando entender tudo, se agarrar a tudo, na tentativa de segurar cada minuto como areia se escorrendo pelos dedos, porque a vida tem dissabores e talvez por isso vale ainda mais a pena ser vivida o mais plenamente que possamos conseguir.

 

Episódio #21: O tango de Tita

 

Tita Merello -imagem a partir de propaganda para o seu álbum de 1943

A dura vida e as conquistas de Tita Merello, uma das grandes vozes do tango argentino.

A transcrição do episódio está aqui.

A playlist das músicas utilizadas está aqui: https://www.youtube.com/playlist?list=PLPKuUaz5sptTxpWiwHhHDoDxsKNOp_EJT

Na playlist tem uma interessante entrevista de Tita Merello para Osvaldo Carrizzo (da qual tirei algumas frases).

Transcrição do episódio #21: O tango de Tita

Dos vários ritmos musicais argentinos, o mais próximo de Buenos Aires, o das pampas, é a milonga campera.

A milonga campera nasce com os primeiros colonos (e seus escravos) e passa a ser compartilhada pelos imigrantes que chegam diariamente para trabalhar a terra, ou tocando o gado dos fazendeiros.

Como são terras extensas, elas criam trovadores que atravessam longas distâncias e cantam nas pausas do trabalho agropastoril acompanhados do seu violão. O agro era pampa, e a pampa era milonga.

A teoria mais aceita da origem etimológica do termo ‘milonga’ é que deriva de línguas de origem bantu e significaria ‘palavrório’, ‘falação’.

A milonga é a evolução da música do gaucho, adaptada pelos imigrantes europeus, agora não só espanhóis mas do leste europeu e da Itália principalmente. Mesmo os mais paupérrimos europeus sobreviventes das fomes e guerras do século XVIII eram convidados a povoar o país.

Até hoje persiste essa visão de que éramos ‘um país de bárbaros’, que foi ‘civilizado’ pelos imigrantes europeus.

<Milei citando Alberdi>

Lá por 1850, a primeira constituição argentina inspirada no livro ‘Bases’ de Alberdi era ultra liberal, reforçando a defesa da propriedade, a liberdade (de comerciar) e os direitos garantidos a todos os habitantes… (todos?) A isso se juntou uma política importadora de europeus sob o lema ‘governar é povoar’. Povoar de imigrantes europeus que iriam trazer a educação e a mão de obra para o país, e que irão substituir a população vigente daquela época.

Na visão de Alberdi, as nações indígenas perderam sua terra e não fazem parte do país, e os gauchos são ignorantes demais.

Juan Bautista Alberdi no seu livro ‘Bases’ diz por exemplo:

“Na América, tudo o que não é europeu, é bárbaro: não há outra divisão: primeiro o indígena, isto é, o selvagem; segundo, o europeu, isto é, nós que nascimos na América e falamos espanhol, os que cremos em Jesus Cristo e não em Pillán (deus dos indígenas).”¹

Depois justificando por que povoar o país com europeus :

Cada Europeu que vem às nossas praias nos traz mais civilização nos seus hábitos, que depois comunica aos nossos habitantes, do que muitos livros de filosofia. (…) Um homem trabalhador é o catecismo mais edificante. Queremos plantar e aclimatar na América a liberdade inglesa, a cultura francesa, o empenho do homem da Europa e Estados Unidos? Vamos trazer pedaços vivos delas nos costumes dos seus habitantes e vamos instalá-los aqui”.²

Essa é a política que vai dominar a Argentina em seu projeto de embranquecimento da população. Negros e indígenas não tinham lugar nessa nova sociedade, e serão lentamente afastados das cidades e do cotidiano, colocados literalmente no escanteio dos subúrbios. Isso porque indígenas já tinham na maioria se rendido depois de batalhas que os expulsaram das terras férteis. É a mesma época do suposto ‘milagre econômico’ argentino, quando o PIB foi bem alto puxado pelas exportações de carne e grãos, mas à custa de uma sociedade bem desigual.

O primeiro censo argentino é de 1869 e contou 1 milhão 800 mil habitantes, sendo que 10% estava na cidade de Bs As³. Em 1914 o número vai praticamente quadruplicar4, já eram quase 8 milhões, sendo que perto de 30% de nascidos no estrangeiro. É um aumento considerável, mesmo contando mal ou sem contar nações indígenas e territórios recentemente contabilizados como províncias (Patagonia, Chaco, Misiones). E enquanto a população considerando todo o território vai quadruplicar em 40 anos, na cidade de Buenos Aires, o aumento será 7 vezes maior, saindo de menos de 200 mil em 1869 para 1 500 mil em 1914.

Essa mesma transformação da região de Buenos Aires de casas dos donos das plantações e das cabeças de gado para um dos principais portos de chegada de imigrantes no continente também vai transformar a música da milonga para o tango.

O tango tem muitas raízes. Uma muito óbvia é a habanera, como na ‘Carmen‘ de Bizet. Mas em Buenos Aires se misturou com os ritmos locais. A transição do ritmo da habanera na milonga da cidade (e depois o tango) está bem clara na Milonga Sentimental.

Também tem raízes no campo das Pampas e nos ritmos do subúrbio das cidades portenhas de Montevidéu e Buenos Aires. Tem raízes afro, assim como dos modos de tocar a guitarra do interior do país. O tango já é filho da cidade, onde se mistura a vida no porto, a experiência dos ex-trabalhadores do campo agora no subúrbio da cidade. Com os imigrantes entram outros instrumentos como o piano, o violino e o que depois será o grande representante do tango: o bandoneon.

O tango é filho do imigrante querendo subir na vida, vivendo na região do maior porto exportador do país. Quando o ritmo se populariza é o endinheirado que vai levar a cultura tanguera para o mundo.

Muitas letras como ‘Garufa’ ou ‘Niño bien’ relatam a vida de pessoas que fingem ter mais posses, outros relatam a saudade do campo como Adiós Pampa Mía ou Caminito.

E o tango também carrega o machismo dessas culturas (ah, não, como assim o tango machista?).

Inspirado nas danças parisienses, um dos bares famosos do centro de Buenos Aires é o ‘Bataclán’.

‘Bataclán’ passou a ser sinônimo desse homem de dinheiro, os filhos dos poderosos donos de fazendas de gado do interior. Já as bataclanas eram as mulheres dos coros das bandas de tango que cantavam e dançavam nos cabarés por algumas moedas dessa riqueza toda, o que passou a ser um sinônimo de ‘interesseira’.

O tango, aquele filho bastardo duas ruas de terra, das apostas de cavalos e dos prostíbulos portenhos, é meio-irmão de outro filho nem sempre querido do baixo porto da cidade: o lunfardo. O lunfardo é a gíria do porto que vai ganhar a cidade.

Lunfardo. Já pelo nome nota-se que é um filho bastardo do lombardo. Seus pais que nunca o reconheceram, são as línguas que os colonos trouxeram para a cidade.

O italiano, como em ‘gambeta’ para o movimento rápido nas pernas, primeiro no tango, depois no drible no futebol.

Também do bantu como em canyengue, aquele andar malevo, o que em terras luso americanas será o andar de malandro.

Ou ainda canchero, que é alguém que tem cancha, do quechua para … cancha, área aberta quadrangular para jogar jogos, depois identificado com o campo de futebol.

Até o francês como em ‘morfar‘ (comer, como o ‘morfer’, comer com voracidade). Ou talvez venha do italiano, assim como ‘el bacán’ que vem do genovês ‘chefão’.

Tem até palavras do caló, o dialeto romani falado no sul da Espanha como em ‘chamuyo’, conversa fiada ou paquera.

No lunfardo também aparece a inversão das sílabas (não se diz tango, se baila el gotán, não se paga uma dívida, tem que ‘garpar‘).

Já nos anos 30, no meio das duas guerras e com Argentina numa lenta queda desse primeiro sonho de grandeza, é feito o primeiro filme sonoro argentino, que retrata justamente essa vida porteña: “Tango!”. Nele aparece a dança do tango que já era febre na Europa. E também a briga entre os ‘machos’, e entre elas, as mulheres. A protagonista da primeira parte do filme era uma estreante, bataclana famosa no arrabal (o subúrbio) e que depois será uma das grandes vozes do tango: Tita Merello.

Laura Ana ‘Tita’ Merello pode ter nascido em 1904, ou talvez antes, no subúrbio de Buenos Aires, de família uruguaia muito pobre. Seu pai motorista morre de tuberculose com ela ainda criança, e sua mãe não conseguia mais sustentar os filhos. Tita vai para o orfanato e depois para o interior, onde com 9 ou 10 anos trabalha ‘como um mocinho’, e onde não tem nem descanso, nem paga mais do que agradecer um lugar para dormir e um pouco de comida. Mais tarde e com a mãe novamente casada, vai reencontrar os irmãos e morar num ‘conventillo’, as favelas no centro de Buenos Aires.

<entrevista de Tita sobre primeiros anos>

De jovem frequenta o Bataclán para dançar, ganhar alguns poucos pesos e tentar fugir da miséria. Com pouco menos de 20 anos, entre namorados, danças e primeiros tangos que a deixavam cantar, são amigos que a ensinam a ler e escrever. Até lá só diferenciava a O da A.

Se destaca como corista e começa a cantar os seus primeiros tangos nos anos 30, no auge da primeira onda do tango na pós-guerra. A fome a empurra a se destacar. Ela mesma se diz tímida mas que teve que sair peitar a vida.

Tita fez parte de uma leva de mulheres cantantes de tango junto a Azucena Maizani, Rosita Quiroga, Libertad Lamarque, Ada Falcón, Mercedes Simone entre outras, onde ela não tinha os melhores dotes musicais, mas sobrava personalidade, presença de palco e força pessoal. Mesmo desprezada nos primeiros anos e continuando pela pura teimosia em sobreviver, começa a interpretar tangos com o seu toque pessoal e maestria na mudança de tons, declamando e mudando o ritmo, destacando uma frase ou cantarolando com suavidade a depender do seu humor.

É dessa forma que vai sair dos cabarés e entrar no teatro, se apresentando em pequenas peças no centro de Buenos Aires. Mas sua grande estreia será mesmo o filme ‘Tango!’, mesmo que seja uma das protagonistas, seu nome aparecia depois dos grandes nomes do teatro como Libertad Lamarque e Pepe Arias.

É um filme muito musical (são cantados seis ou sete tangos no filme todo) com um roteiro de costumes, um conflito pela luta do amor de Tita entre o galante cantor do bairro e um ‘guapo’, um mini mafioso da região. Eles atuam com os seus próprios nomes, Tita Merello faz de ‘Tita’, Pepe Arias de ‘Pepe’ e assim por diante. Entre cena e cena são tocados vários tangos onde Tita canta 2: “Yo soy así p’al amor’ e ‘No salgas de tu barrio’, onde são também apresentadas as mais famosas orquestras. O filme não paga muito, mas a fama que dá é o suficiente para catapultar os protagonistas para o estrelato. Além disso vai abrir as portas para vários outros filmes que ela vai fazer, em geral comédias de costumes descrevendo a sociedade portenha, as dificuldades financeiras, o dilema entre deixar ‘o bairro’  e ser famoso ou se manter nas raízes, etc.

O filme catapultou os protagonistas e ‘de yapa’ ou seja ‘como um chorinho’, ‘como um plus a mais’, ajudou a difundir mais ainda o tango no mundo e aos filmes argentinos. Vai ser a era de ouro do tango que uma nova leva de intérpretes vai aproveitar.

O próximo que fará um filme será Carlos Gardel (Cuesta Abajo, dirigido pelo francês Luis Gasnier, cineasta do filme mudo que fará vários filmes com Gardel e depois irá sumir). O roteiro e várias das músicas do filme Cuesta Abajo foram originalmente escritos pelo paulistano Alfredo Le Pera, nascido no italiano bairro do Bixiga e que migrou para Montevidéu e depois mudou para Buenos Aires, e era um grande entusiasta do tango e da milonga. Gardel também representa ‘Carlos’. Há um quê de autenticidade dos músicos mostrarem seu modo de vida e suas lutas junto com suas canções. São manifestos que inauguram o cinema representando a região, onde o tango joga um papel principal, e serão essas fontes para outros autores no futuro que farão filmes junto com a sua arte. Neste filme Gardel canta uma milonga na forma dos antigos payadores, também escrita por Alfredo Le Pera: ‘Criollita decí que sí’, pelo qual dá para ver como milonga pampeana, e tango estão emparentados.

Outro grande tango, um dos mais famosos do mundo, é composto por Carlos Gardel e Alfredo Le Pera: Por una cabeza, comparando a luta de um amor desenganado com as corridas de cavalos ganhas por uma diferença mínima, a cabeça do cavalo…

Gardel nessa época fará muita fama, até morrer tragicamente num acidente de avião na Colômbia.

Tita vai conhecer um dos grandes amores de sua vida nas filmagens de ‘Tango!’, Luis Sandrini, comediante que no filme faz de link cómico entre os personagens. Tita e Sandrini irão viver e trabalhar juntos por mais de uma década, mas depois irão se separar.

Depois do filme Tita Merello assim como as orquestras irão se apresentar e gravar muitos discos, praticamente dominando a produção musical da época. As orquestras se multiplicam, viajam e conquistam o mundo. A segunda guerra vai por o mundo em suspenso, e enquanto Odeon e outras produtoras vendem , vendem e vendem discos, Tita canta na orquestra de Canaro e investe na carreira de atriz, participando de várias peças teatrais.

A época do teatro coincide com o auge do peronismo e há quem diga que sua amizade com Hugo del Carril (músico que compôs a marcha peronista) foi crucial para sua carreira. Mas na verdade Tita era independente, embora fosse bom para o regime valorizar pessoas simples que se coroam a partir do seu esforço individual. Era mais o peronismo que ganhava com os holofotes em Tita Merello do que o contrário.

Sabendo que não era a mais técnica das cantantes, sempre apostou no seu estilo interpretativo, pessoal, declamativo e não lírico ou floreado. Isso também ajudava na sua imagem de arrabalera, de cantante de bairro e que se destacava pela sua personalidade e presença. Tita como alguém que veio de baixo, demorou muito para se destacar e o seu auge acontece com uma Tita quarentona. Por ela ter investido na carreira de atriz e no teatro, passa a ser notada novamente pelos diretores, numa nova onda de filmes argentinos na era Perón.

Nessa época fez sucesso a peça italiana Filomena Marturano, e Tita vai protagonizar a versão filmada em castelhano, do mesmo nome. O roteiro é de uma mulher que finge morrer para se casar e desfrutar todo o dinheiro que o endinheirado pretendente guardava e nunca se casava (em algumas versões também é a dona do bordel que o magnata frequentava). A mesma peça foi filmada por Vittorio de Sica como ‘Casamento à italiana’ com Marcello Mastroianni e Sofia Loren já nos anos 60. Segundo alguns, Filomena Marturano foi o motivo da separação com Luis Sandrini, ele queria que ela fosse para o México com ele, e ela queria ficar e trabalhar, afinal nunca foi mulher de seguir um homem.

Quem aposta na Tita Merello atriz é Lucas Demare, que tem uma série de roteiros e os filma entre finais dos 40 até 55. O primeiro é ‘Los isleros’ onde Tita tem o maior papel dramático que já lhe deram, onde faz ‘La Carancha’, uma mulher de temperamento forte que reflete as pessoas do interior sofrendo a vida difícil nas ilhas do Paraná.

Entre esses filmes, já nos anos 50 no final do governo Perón, estreia ‘Mercado de Abasto’ com Tita como protagonista, uma mulher do subúrbio lutando por manter o seu negócio. Primeiro canta ‘Arrabalera’. O arrabal é o subúrbio da cidade. Depois canta outra canção mais antiga que tinha pedido para o autor adaptar para uma voz feminina: ‘Se dice de mí’.

Se dice de mí‘ foi escrita por Ivo Pelay e cantada primeiro pelo Carlos Roldán, cantor uruguaio de tango dos anos 40 :

Se dice de mí... se dice de mí... Se dice que estoy fiero, que camino a lo malevo que soy chueco y que me muevo con un aire compadrón. Que parezco el negro Acosta que mi napia es puntiaguda que la pinta no me ayuda que mi boca es un buzón. Si miro a Renée, a Luisa, a Mimi, las chicas están hablando de mí. Critican si ya la línea perdí, se fijan si voy, si vengo o si fui. Se dice que estoy fiero, mas si el pibe no interesa, ¿por qué pierden la cabeza ocupándose de mí? Yo se que muchas que desprecian, comprar quieren y suspiran y se mueren cuando piensan en mi amor. Y más de una se derrite si suspiro y se queda, si la miro, resoplando como un Ford. Si fiero soy, pongámosle, que de eso aun no me enteré. En el amor, yo sólo se que a más de diez dejé de a pie. Podrán decir, podrán hablar y murmurar aunque rebuznar, mas la fealdad que Dios me dio mucho Don Juan me la envidió. Y no dirán que me engrupí porque modesto siempre fui. ¡Yo soy así!

Mas a versão feminina vai ganhar tanto destaque que nunca mais a versão masculina será reproduzida. 

Versión Tita Merello : 

Se dice que soy fiera, que camino a lo malevo Que soy chueca y que me muevo con un aire compadrón Que parezco Leguízamo, mi nariz es puntiaguda La figura no me ayuda y mi boca es un buzón Si charlo con Luis, con Pedro o con Juan Hablando de mí los hombres están Critican si ya la línea perdí Se fijan si voy, si vengo o si fui Se dicen muchas cosas, mas si el bulto no interesa ¿Por qué pierden la cabeza ocupándose de mí? Yo sé que muchos que desprecian, comprar quieren Y suspiran y se mueren cuando piensan en mi amor Y más de uno se derrite si suspiro Y se quedan si los miro, resoplando como un Ford Si fea soy, pongámosle Que de eso aún no me enteré En el amor, yo solo sé Que a más de un gil, dejé de a pie Podrán decir, podrán hablar Y murmurar, y rebuznar Mas la fealdad que Dios me dio Mucha mujer me la envidió Y no dirán que me engrupí Porque modesta siempre fui Yo soy así Y ocultan de mí Ocultan que yo tengo unos ojos soñadores Además otros primores que producen sensación Si soy fiera, sé que en cambio, tengo un cutis de muñeca Los que dicen que soy chueca, no me han visto en camisión Los hombres de mí, critican la voz El modo de andar, la pinta, eje, la tos Critican si ya la línea perdí Se fijan si voy, si vengo, o si fui Se dicen muchas cosas, mas si el bulto no interesa ¿Por qué pierden la cabeza ocupándose de mí? Yo sé que muchos que desprecian, comprar quieren Y suspiran y se mueren cuando piensan en mi amor Y más de uno se derrite si suspiro Y se quedan si los miro, resoplando como un Ford Si fea soy, pongámosle Que de eso aún no me enteré En el amor, yo solo sé Que a más de un gil, dejé de a pie Podrán decir, podrán hablar Y murmurar, y rebuznar Mas la fealdad que Dios me dio Mucha mujer me la envidió Y no dirán que me engrupí Porque modesta siempre fui Yo soy así

Essa é a versão que a novela colombiana ‘Yo soy Betty la fea’ utilizou para suas versões da música de apresentação da novela, inclusive imitando o estilo de Tita declamando mais do que cantando a melodia.

Betty era a moça empurrada para o canto que o mundo das beldades vazias transforma numa invisível pantomima de si mesma, mas é nessa revelação que o público se identifica. É diferente da versão de 50 anos atrás mas está mais próxima da versão feminina do que da original. É uma das novelas mundialmente mais conhecida, a novela  que mais versões teve ao redor do mundo.

A versão em português interpretada por Sarah Regina para a novela é uma adaptação livre direcionada para a personagem da Betty, há algumas adaptações, mesmo que o espírito da música tenha se mantido.

A primeira estrofe é praticamente igual. Na original Tita menciona Leguizamo que era um famoso jóquei narigudo, na versão para a Betty a letra diz ‘meu andar desengonçado meu nariz é engraçado minha voz é de trovão‘.

O ‘andar malevo’ é uma expressão mais para um andar malandro, que era mal visto numa mulher, e ainda na gíria rioplatense do lunfardo, uma gíria que as ‘moças de bem’ não falariam.

No caso de ‘Betty a feia’ o final da música aceitando que é feia mas tem personalidade cabe muito bem no personagem. No caso da interpretação de Tita Merello foi mais uma aceitação de que precisava se impor num mundo hostil, seja por ser um ambiente machista como por ser difícil por ser uma mulher pobre. Segundo algumas pesquisas utilizando a venda de vinil e de músicas tocadas no rádio, foi a música mais ouvida na Argentina de ’43.

A última versão da novela fez uma adaptação ainda mais ‘salsera’ e modernizou toda a melodia, sem tirar o espírito original.

Nos anos 50 Tita vai trabalhar na Argentina e no México, como atriz, ao mesmo tempo que grava as versões consolidadas dos tangos que sempre cantou, com as bandas consagradas como a de Francisco Canaro. Mas pouco tempo depois se aposenta das gravações a aparece cada vez menos na vida pública. A fama chegou tarde para uma Tita já madura, uma cinquentona que precisava descansar e organizar sua vida.

Já nos anos 80 chegou a aparecer novamente na TV e frequentar os canais de televisão, mas depois se afastou para sempre das câmeras (nelas teve um programa em que recomendava às mulheres a fazer o Papanicolau). Não tendo família, doou sua não tão grande mas modesta fortuna para a fundação Favaloro antes de falecer placidamente na véspera de Natal de 2002.

Tita sempre foi contra o protótipo da mulher submissa, trabalhou de tudo para sobreviver , foi levada pela fome a cantar e assim viveu os tangos que sempre amou, não se prendeu a homens nem na sua carreira nem na vida pessoal.

Com o declínio do tango nos anos 60 soube se preservar sem perder a essência de rebeldia do subúrbio que levou no seu sangue até o fim da vida, e ainda renasceu dando sua interpretação para um dos programas de TV mais vistos no mundo.

Referências:

1 Alberdi, Juan Bautista, “Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina”, capítulo XIV (“Acción civilizadora de la Europa en las Repúblicas de Sud-América.”)

2 Alberdi, Juan Bautista, “Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina”, capítulo XV (“XV DE LA INMIGRACIÓN COMO MEDIO DE PROGRESO Y DE CULTURA PARA LA AMÉRICA DEL SUD.“)

3 Censo argentino de 1869

4 Censo argentino de 1914

Episódio #20: Não foi sonho

Capa de 'Oktubre' com o 'tiutlo do podcast

A criação e primeira fase de uma das mais icônicas bandas de rock argentino: Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota.

Incluída no contexto do rock dos anos ’80, contamos a estória desde o início underground durante a ditadura até os primeiros álbuns, já no início da democracia. É uma banda que irá fazer historia por 2 décadas, há muito o que contar. Aqui falamos da primeira fase do grupo.

A transcrição do episódio está aqui.

Participação especial da Cairo Braga interpretando o monólogo ‘No me miren‘ de Enrique Symns.

 

Referências :

Sobre as letras: https://redondossubtitulados.com/

O monólogo de Enrique Symns (ou seja, a versão que sobreviveu até hoje, aparentemente o monólogo foi apresentado mais de uma vez) aconteceu num dos shows nas Bambalinas em 84, aqui o concerto completo com relativa qualidade : https://www.youtube.com/watch?v=-_uyIk1OtLM&t=168s

Rocambole, arte y diseño: https://www.youtube.com/watch?v=xElN_dpoT2U

Biografia de Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota: ‘Fuimos reyes’, Mariano del Mazo | Pablo Perantuono: https://www.planetadelibros.com.ar/libro-fuimos-reyes-la-historia-completa-de-los-redonditos-de-ricota/318211

El Golpe 1976 Argentina – Crónica De Una Conspiración: https://www.youtube.com/watch?v=-gYCfFC3TfE

 

 

Transcrição do episódio #20: Não foi sonho

 

Apresentação do Patricio Rey antes até de se chamar assim (Carlos Solari, irmãos Beilinson e outros no palco do Teatro Lozano, La Plata, circa 1978)

Depois de mais um concerto no teatro Lozano, os principais integrantes que tinham subido no palco entraram num ônibus rumo ao bar El Polaco. Estavam exaustos, mas podiam descansar no ônibus já que estavam em La Plata, e o destino, o bar El Polaco, estava na cidade de Salta, a mais ou menos mil e duzentos kilómetros de distância, no noroeste argentino. Umas 15 horas se fosse uma linha reta, e garanto que não é.

Por que tocar tão longe ? Era o começo de ’78 e La Negra Poli e seu namorado Skay tinham conhecidos na região. Tinham mantido umas terras do pai do Skay, tentaram convertê-la numa bela farm hippie que deu mais ou menos certo, já que o lucro não estava nas prioridades. Era bem longe da cidade de onde eles eram, La Plata, mas na época a banda estava começando a se profissionalizar, embora ainda fosse um grupo artístico bem diverso.

‘Como vamos anunciá-los?’ perguntaram no bar.

Ainda não sabiam, nem mesmo o trio fundacional do grupo.

Skay Beilinson, La Negra Poli e Carlos El Indio SolariO trio era mais ou menos organizado assim: la negra Poli na estruturação de ensaios, representação para se apresentarem nos mais diversos locais, recolhimento das poucas entradas, divulgação no telefone e no boca a boca. Carmen Castro, conhecida desde sua época hippie como La Negra Poli, fazia sempre toda a administração do grupo e o seu apelido de polifacética grudou para sempre. Da era hippie tinha sobrado a rebeldia e a vontade de sustentar esse grupo artístico conhecido como Cofradía de la Flor Solar. Mãe solteira de milhares de histórias no underground da cidade de La Plata, agora era o motor silencioso e interno do grupo.

Outro membro do trio estrutural do grupo era Skay Beilinson, guitarrista e o cérebro musical da banda. De familia bem abastada, os irmãos Guillermo e Eduardo (pelos olhos azuis apelidado Skay) se afastaram do pai, que não desaprovava as carreiras musicais dos irmãos, mas também não ia financiá-la. “Ganharás o pão com o sudor de sua frente” e todas essas porra…

A relação melhorou depois do pai de Skay ter sido sequestrado pelo ERP em ’73. O ERP era o Exército Revolucionário do Povo, o braço das guerrilhas trotkistas que foi aniquilado na Argentina em 76, e continuou existindo até onde se sabe somente no Peru. Skay percorreu a cidade para levantar la plata para evitar el plomo. Skay e Poli já namoravam e depois casaram, e tinham ideias de estruturar o grupo desde que se formou a partir do aguante La Cofradia de La Flor Solar.

La Cofradía se juntava em um par de casas do centro de La Plata e foi a resistência cultural onde todos se conheceram, aquele ateliê/aguante, ou seja um local de acolhimento de almas perdidas, rejeitadas pela familia, ou perseguidas pela polícia, local que também era o de aproximação cultural que formou o grupo.

Mas o novo grupo se desfazia lentamente do passado hippie da Cofradia e começava a ser um grupo de punk-rock, ou rockabilly com melodías dos pampas, ou um background sórdido de um escuro bar onde se murmuram as verdades que a sociedade finge não existir.

Nessa metamorfose foi fundamental o terceiro membro do grupo, apresentado pelo Guillermo Beilinson para Skay: Carlos El Indio Solari. El Indio Solari nasceu no interior, em Entre Rios, mas fez a escola em La Plata, nunca terminou os estudos de artes mas sempre esteve ligado ao cinema e depois à música. Conheceu na adolescência a Guillermo Beilinson na Cofradía. Chegaram a escrever e produzir um curta, e nessa época Guillermo apresentou para El Indio ao seu irmão Skay, surgindo assim a dupla criativa da banda.

‘Como vamos anunciá-los?’ insistiam em perguntar no bar El Polaco em Salta. Poli devolveu a pergunta para eles. Qual seria o nome da banda? Ainda não tinham fechado um. Então um dos antigos insights ganhou e ficou Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota.

Patricio Rey já era invocado como uma entidade na época nas apresentações quando abriam ou fechavam com alguns monólogos. É como se os músicos fizessem o que essa entidade mandasse, suas marionetinhas. Um dos membros / entusiastas / professor de matemática do tempo das apresentações, o Docente, ou El Doce,de vez em quando distribuía para a plateia uns bolinhos de ricota. Não se sabe ao certo mas deve ter começado quando as apresentações do saltimbanqui grupo começavam numa hora incerta, não tinham hora para acabar e eram regadas a vinho barato. Alguém deve ter sentido fome entre meia-noite e 4 horas da manhã (várias vezes só foram embora quando expulsos pelos administradores do local).

 

El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota
El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota

Então a solução do nome da banda foi invocar um mix dessas duas ideias, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota, Patricio Rey sua entidade imagética e seus saltimbanquis redonditos. O nome dá o toque irônico que resume bem a intenção da banda: como se fossem governados por uma entidade, que evoca os poderes patriarcais e ambivalentes que dominam sempre, onde a arte apresentada é quase sua bênção divina. Soava muito bem com o jeito circense e irônico das apresentações onde, nas palavras do Indio Solari, muitas vezes se apresentavam 10, 12 pessoas e havia mais gente no palco do que na platéia.

Existem várias lendas do origem do nome da banda, e esta é uma delas. Outra menciona uma receita que viram numa revista antiga, onde uma Patricia Rey assinava uma receita de uns bolinhos e isso teria ficado na cabeça de alguns deles.

Um quarto ‘redondo’ foi o sempre presente Ricardo Cohen ‘Rocambole’, antigo amigo de Poli e bem ativo na Cofradía. Rocambole, como artista plástico, passou a ser responsável pela divulgação da banda. Nos anos oitenta isso significava estar nas reuniões da banda para saber quando

Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium - Buenos Aires, circa 1986
Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium – Buenos Aires, circa 1986

e como seriam as apresentações, desenhar a pincel os cartazes, reproduzi-los e colá-los ao redor do centro da cidade de La Plata -e arredores. Ele desenhou todas as capas dos Redondos, mas nas primeira épocas fazia e imprimia os lambe-lambe para espalhar na cidade.

Outros membros nada estáveis foram Sergio Mufercho Martínez e Enrique Symns, que abriam as apresentações com monólogos, o Piojo Ávalos e depois Walter Sidotti nas bateras, Daniel Semilla Buccarelli no baixo, Willy Crook nos saxos tão presentes em todas as composições dos primeiros anos, os coros das <Bay Biscuits> Claudia Puyó, Laura Hatton y María Calzada, entre outros.

Mufercho era um dos que abriam as apresentações falando em Patricio Rey, e outro o mítico fundador da revista punk ‘Cerdos y PecesEnrique Symns, que fez um dos mais celebrados monólogos (já em 84) no teatro Las Bambalinas e se chama ‘Não olhem para mim’ :  

 

Ele! Ele! Ele o fez ! Esse velho viscoso e chato ao que chamam de Deus, foi ele que fez ! Ele criou esta pantomima que chamam de “universo”. Ele separou as estrelas para que estivessem a infinitas distâncias entre si, para que a Ursa Maior com a Cruz do Sul nada aconteça. Longe, que tudo estivesse longe, que os átomos dançassem freneticamente, as moléculas entre si, sem que nunca copulassem. A vida, esse orgasmo retido. Ele, esse psicopata, esse psicopata criminal que condenou o universo à solidão porque ele estava só. É um velho só e entediado. Ele, essa gelatina espiritual nojenta, que sobe sobre as tetas do nada como uma lesma. Quem ejaculou esse ser miserável ?

Não olhem para mim ! Não olhem para mim ! 

Mas eu não venho a lutar contra ele, nem contra os seus eunucos, seus serafins e querubins. Foda-se este universo de cartolina, este mundo de merda. O que são vocês? Uns zumbis que ele treinou para dizer sempre ‘sim’.

‘Sim mamãe’, ‘sim papai’, sim, mestre, sim, meu tenente, sim chefe, sim senhor ministro, sim MORTE!

“Não, mamãe, não! Não vou parar de tocar uma! Vou correr pela casa toda com o pau gozado para passar ele no teu avental manchado de feijão de desespero, mamãe! Vem mamãe vem que tenho um negócio aqui !”

“Não, pai, não, não vou comer esse miolo de pão nojento. Eu não sou um antropófago que compra um paraíso artificial vendido por uns livros velhos escritos por esses caras horríveis.”

“Não tenente! Nada de um,dois, esquerda-direita! Vou marchar como eu quiser…”

“Não mulher, vou te ser infiel, vou fazer amor com o gato, o canário, a avó, a planta… “

Não olhem para mim ! Não olhem para mim, zombies ! Vocês me contagiam quando olham para mim ! O que querem ? Mais chocolate quente ? Mais samba ? Mais cocaína para espalhar pelo corpo pelas ruas violentadas pela polícia ? O que querem ? Mais desejo ?

Enrique Symns, “No me miren” (tradução livre)

Foi assim que Los Redondos se iniciaram como banda no começo de  ’78, em plena guerra fria e no mais escuro momento do último golpe militar da história argentina. Mas na Argentina houve mais de um golpe militar ?

 

 

Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955
Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955

Perón sofre o golpe em 55 com tanques nas ruas. Se asila na Espanha, o peronismo é banido. Nos próximos 30 anos não haverá nenhum governo eleito que consiga acabar o mandato sem sofrer um golpe de estado.

O ultracatólico tenente coronel Lonardi (seu lema era ‘Deus é justo’) irá suspender tribunais, o estado de direito, as associações gremiais e os partidos políticos. A ala mais radical dos militares vai derrubá-lo 2 meses depois -era muito mole. O novo ditador, Aramburu, vai radicalizar ainda mais o governo, abolindo também direitos trabalhistas, fuzilando opositores e fechando universidades.

Estudantes e professores sendo expulsos das universidades na Noche de los Bastones Largos, 1966, Argentina
Noche de los bastones largos

Após insurreições e caos, guerrilhas e mais fuzilamentos, Aramburu convoca eleições mas impedindo o peronismo de se candidatar. Em 57 ganha Frondizi, e acaba caindo antes do fim do mandato. São convocadas eleições pela mão do Senado e ganha Arturo Illia. Ele ensaia uma abertura, mas é derrubado 3 anos depois por Onganía, que irá inaugurar uma nova era de perseguições, incluindo ‘La noche de los bastones largos’, quando reitores e centos de professores foram expulsos das universidades apanhando num corredor polonês de policiais de cassetetes.

Montoneros, um novo grupo de guerrilha urbana,  sequestra e mata a Aramburu, além de ocorrerem massivos protestos contra o governo de Onganía como o Cordobazo, e ele cai. Os militares continuarão no comando até 71 quando finalmente permitem que o peronismo presente candidato. Perón ganha as eleições, mas deixa a ultra direita dominar o seu governo. Morre com menos de um ano de governo deixando a vice da chapa (e sua esposa) Isabelita numa posição política insustentável. Ela acaba sofrendo o golpe em 76 para um governo que cria um moedor de carne onde opositores são eliminados, silenciados, jogados ao vazio desde aviões, e só irão parar ante a protesta generalizada após a guerra suicida de Malvinas em 82.

Alto comando militar argentino no julgamento de 1985
Julgamento das Juntas Militares

A nova e frágil democracia consegue colocar na fila dos réus a todos os ditadores do antigo regime num processo chamado ‘Juicio de las Juntas’. Videla, Massera, Viola e Galtieri, entre outros, foram condenados a penas entre 10 anos de reclusão e perpétua. Videla e Massera, responsáveis pelo golpe em 76 e pela fase mais sangrenta desse terrorismo de estado, pegam perpétua. São inocentados nos 90, mas novamente condenados. Massera morre em 2010 de causas naturais, Videla vai para a prisão comum e vai morrer sentado na latrina da sua cela em 2013.

 

O show de Salta foi um desastre em termos técnicos, um fracasso em termos econômicos, mas foi determinante para a identidade da banda. Além disso, tendo um nome e uma identidade criativa, passou a aparecer nas revistas de música como Pelo e de variedades underground punk como a Cerdos y Peces (do Enrique Symns), que também publicava sobre feminismo ou sobre a situação desumana no maior complexo manicomial do país.

Este não muito humilde podcast vai se atrever agora a tentar classificar as músicas dos Redondos, tarefa ingrata que fazemos pelos nossos ansiosos e atrevidos ouvintes.

Conseguimos localizar tres tipos básicos :

  • Número 1: pops ou rocks para dançar, como ‘Pierre El Vitricida’, ‘O inferno está encantador esta noite’, ‘Maldição, vai ser um dia esplêndido’,  ‘Mariposa Pontiac’, ‘Eu não caí do céu’, ‘Meu cachorro dinamita’, ou ‘Ñam Fri Fruli Fali Fru’ . Era necessário tirar essa pressão horrível de anos sem poder se expressar. Eu ouvi e li muitas bobagens sobre o sentido de ‘ñam Fri Fruli’ mas claro que está falando da cocaína, que começou a invadir os arredores de Buenos Aires, rota do tráfico das montanhas andinas para a Europa. La frula é a cocaína, mas a música é quase uma ode a um escapismo, muito necessário, como ‘Eu não caí do céu’, uma confissão de ser humano e querer um pouco de diversão.

Algumas músicas fazem referência a drogas embora exista a lenda de que tudo nos redondos é sobre drogas. ‘Pierre o Vitricida’ por exemplo não quebra vidros cheirando ou ficando violento, é uma homenagem a um produtor, e aqui temos que fazer um enorme parêntese.

(Estou desenhando um parêntese)

Nessa época totalmente improvisada do underground era muito comum os ‘inferninhos’ e neles os Redondos, assim como outras bandas, passaram por muitos riscos de segurança. Mesmo no lançamento em Buenos Aires da banda no teatro El Cemento, era tudo improvisado. Pierre foi um produtor musical que apoiou muitas bandas underground mas era muito chato com a segurança, com razão. Um dia viu que onde iam tocar os Redondos, eles tinham limpado um dia atrás e estava encharcado, talvez por ter deixado alguma torneira aberta. Pierre tentou parar o show, discutiu e bateu portas quebrando o vidro de uma delas.

Redonditos de Ricota no El Cemento (na frente Carlos El Indio Solari de gravata torta, o resto da banda no palco improvisado e com uma parede de tijolo à vista atrás)
Redonditos de Ricota no El Cemento

A produção deu um jeito de secar o chão, mas a anedota ficou, e a verdade é que poderiam ter acontecido desastres como aconteceu depois no CroMagnon, onde houve algo parecido com o sucedido na boate Kiss no Brasil. São lugares bastante exploratórios que se colocam como salvaguardas da liberdade musical mas lucram com o perigo dos artistas e público toda noite, até hoje.

(O parêntese fechou)

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 2: histórias cinematográficas delirantes. Impossível classificar de outra forma narrativas como a que apresentou a banda, a faixa 1 de Gulp: “Barbazul versus o Amor Letal”. Está vagamente baseada na estória do assassino serial Landú apelidado de Barba Azul, mas é mais do que isso, é um pouco a descrição de como o mundo machista cria um arcabouço -tá bom, só vejo isso, foda-se, leia a letra e depois comente e me prove do contrário. Ah, e antes que queira criticar a letra há frases bem preconceituosas, porque são proferidas de forma misógina, que El Indio completava com danças no cenário para deixar a coisa bem ridícula (“velhas feias como macacos, blearghhhh”)

Outra nessa pegada descritiva é ‘Te voy a atornillar’ descrevendo uma relação tóxica (te pressiono demais, te asfixio demais, ‘como pode ser que te choquem os meus prazeres?’, gostaria de te espanar, vou te parafusar, vou te apertar, vou te ferir só mais um pouquinho).

Nesta categoria há uma particular descrição de pessoas ou lugares dessa época de um tardio punk argentino, muquifos mal iluminados com personagens duvidosos da noite que também será o ambiente de um posterior hit da banda, Masacre en el puticlub.

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 3: hits épicos do caralho. Em geral estão sob uma base 4/4 mas não rockera, como murgas ou ¾ quase tarantellísticos misturados a notas épicas que fizeram com que virem pogos monumentais.

Outro parêntese, desculpem.

Murga: é um ritmo popular principalmente no Rio de la Plata, de Buenos Aires e Montevidéu principalmente, para cantar estrofes no ritmo de marcha de carnaval.

Pogo: dança para fazer com amigos, com grupos de dezenas, centenas de pessoas às vezes só dançando e se entrechocando juntas.

Também se sentiam, de forma estranhamente orgulhosa, um tipo de vanguarda underground. Se considerar que a banda começa em 78 e grava o seu primeiro álbum em 85, a banda era madura, mas também demorou para poder se expressar, precisou esperar melhores tempos, e consegue de fato ter um espaço na frágil democracia que começava nessa época. Teve a maturidade de decidir gravar um álbum, somente quando houvesse uma coesão sonora e independência financeira. Mesmo que tenha demorado, só deixou mais consistente o resultado final.

As músicas em geral tinham uma tônica pessimista, de conseguir se divertir dentro de uma realidade opressiva.

Alguns dos títulos e frases das músicas : 

‘O inferno está encantador esta noite’

‘por fim vais gostar desta prisão’

‘vem para minha casa suburbana’ , ‘me deixa maluco tua prisão’

‘queimas tua vida nesta fila morna’

‘como vc está nestes dias, humano quebrado e mal em pé’

 

As músicas surgem dessa parceria entre eles El Indio Solari e Skay, que nunca teria ido pra frente se não tivesse uma pessoa como Poli para ‘tocar’ os assuntos dos shows, divulgação, organização geral, principalmente econômica e logística. Cada pequeno show, cada interpretação dava um caixa que Poli administrava e que deu a capacidade da banda de conseguir gravar todos os seus álbuns sem divulgação na mídia, sem grandes produtoras, sem produtor musical, gravadoras internacionais, vampiros da criação musical que desde sempre administram o rolê da edição e distribuição artística.

As bandeiras que Los redondos sempre irão manter erguidas: 

  • evitar a divulgação por meios oficiais como televisão ou vídeos (em quinze anos de banda somente há dois ou tres videos oficiais dos Redondos, e foram divulgados por meios independentes). Evitar os meios principalmente para não serem pautados por ela.
  • a música tem que unir, para dançar junto e não pode ser sequestrada por um grupinho intelectualóide que imagine ter o privilégio de entendê-la. As letras podem ser ambíguas mas tem frases de efeito, a música sempre leva à dança, evoca os movimentos de rua e não tem que compactuar com governos de turno.
  • nasceu underground, então tem que ser independente. Desde o primeiro álbum Los Redondos sempre fizeram questão de produzir o seu material e foram os responsáveis pela sua divulgação. Sem selos, gravadoras, marcas nacionais e internacionais depredando os ganhos, marcando suas exigências e operando na sua própria lógica do consumo.

Existe inclusive a anedota de terem sido consultados por Charly Garcia que quis produzir o grupo, e eles se negaram. Serem apadrinhados pela ‘elite’ musical da época não compactuava com a vontade de independência que eles queriam.

Eles tinham se tornado artistas na escura noite das ditaduras, no terrorismo de estado onde simulavam ser saltimbanquis, e depois adotaram a estética e preceitos punk para a vida toda mantendo uma saudável distância dos poderes que sempre condenaram.

Muitas vezes esses estandartes mantidos na força do braço levaram balas da artilheria pesada dos pombos mais variados: produtores musicais, managers, empresas que ofereceram o doce caminho do estrelato, até músicos de outras bandas. Nem todos saúdam o sucesso do coleguinha.

E nada, nada nos Redondos tem uma versão. O nome da banda, por quê foram para Salta, quantos baixistas houve antes do Semilla ser o definitivo por muitos anos, se foram presos e se sim, quantas vezes. Nunca há somente uma versão dos fatos, tudo tem pelo menos uma versão para cada participante do rolê. Isso acontece muito mais na interpretação das letras, que é algo que o Indio não gosta, então torce para o caos, para não explicar ao todo uma letra, mais do que o sentimento geral dela.

Gulp

Capa do álbum 'Gulp'
‘Gulp’ dos Redonditos

Em 83 veio a democracinha, uma criancinha que cambaleava entre problemas econômicos de um país destruído, sem indústrias, tendo perdido uma guerra, com as mágoas que o terrorismo de estado deixou, com milhares de desaparecidos, com uma herança de isolamento da política internacional e problemas fronteiriços. Mas as pessoas queriam falar de coisas mais leves, liberdade de se vestir, pensar diferente.  Após o caos, a guerra, o terror, queriam dançar. Vivendo a vida.

A indústria do entretenimento viu e acompanhou esse movimento e o pop entrou como nunca no país.

Los Redondos fizeram outra interpretação: não se render aos seus princípios, mas captar também esse sentimento, mantendo a consciência com letras fortes, mas outras somente para se libertar.

A cada show Los Redondos era menos um desfile e mais uma banda de rock. Rock? Não exatamente: os ritmos da época eram o ska, o rockabilly, e a banda adota junto outros ritmos populares, fazem rock com elementos da murga, invocam pogos. Mantém solos de guitarra e sax, algo que somente outra banda fazia também: Sumo, com os que se apresentaram mais de uma vez. Luca, o líder de Sumo pegou uma letra do Indio Solari (“Mejor no hablar de ciertas cosas”), que virou um sucesso com Sumo, assim como emprestaram o cenário para os Redondos numa parceria que durou até Sumo acabar.

Então, após uma boa lista de shows, conseguiram reunir o dinheiro suficiente para poder fazer seu primeiro álbum.

Foi algo totalmente independente: a gravação e edição ficou a cargo da MIA, Músicos Independentes Associados. Lito Vitale ficou encarregado da produção e edição técnica. A capa, feita por Rocambole, com riscos pretos e traços feitos em guache, o nome da banda na frente (Redondit -os na outra linha, mal escrito propositadamente) e o nome do álbum embaixo em laranja e verde. Cumpria o que se propunha, mostrava a proposta underground e se destacava nas lojas de discos.

Gulp começa com ‘Barbazul versus el amor letal’ cuja letra já comentei mas é digno de nota que a estreia foi arrojada, com uma música enigmática e uma ambientação bem inusual para o rock da época.

Gulp continua com o primeiro grande hino ricotero: “La bestia pop”. É uma letra bastante clara contra a música pop da época, feita não só como escapismo e sim para entreter uma massa de gente nas grandes mídias. “o meu herói e a grande monstro pop que nos sonhos ilumina a vigilia, que me fará dormir antes de contar até dez”.

Também fala da efemeridade de figuras da música, de se entregar à fama antes sequer de dar o seu melhor (‘morrem cavalos jovens antes de galopar’) ainda incluindo uma crítica aos rockeiros famosos que enchem grandes estádios (‘vou dançar o rock do rico, Luna Park’).

O solo do sax é uma dança arabesca e reflete muito bem a diversidade musical da banda, e a capacidade de fazer hits com ritmos inesperados. A voz e postura do Índio também eram inesperados no rock, um careca de óculos dançando de um jeito estranho com uma voz de freada de caminhão, como ele mesmo diz.Tres poses do Indio Solari dançando

‘Gulp’ tem músicas para dançar como ‘Alguns peligros sensatos’ que antes se chamava ‘golpe de sorte’  outros similares como ‘Ñam Fri Fruli…’ e ‘O inferno está encantador esta noite’.

No ‘o inferno está encantador esta noite’ a reflexão quebra a parede por primeira vez na banda, perguntando ao público o que ele realmente quer ouvir, e se estão qualificados para o espetáculo.

Outro fato importante é que eles tres (e também a maioria dos colaboradores na banda) já tinham uma longa estrada percorrida quando decidiram avançar com o projeto Redonditos de Ricota. No ano de lançamento do primeiro álbum Poli, Skay e Solari estavam com aproximadamente 35 anos. Então podiam falar isso para o público, desafiá-lo, e na mesma letra garantir: esta noite vou me comer a tua dor. Porque era um pouco isso, ter a valentia de questionar o público, mas deixar claro que estão no palco para dar um pouco de alívio e diversão.

‘Gulp’ foi um soco que ninguém esperava. Eles estavam maduros depois de 6 anos na estrada antes do seu primeiro disco, feito a pulmão uma apresentação atrás da outra, tem releituras de músicas que já tocavam ao vivo, mas sendo uma banda desconhecida do grande público, era todo material ‘novo’. Vale lembrar há horas e horas de temas inéditos, que nunca tiveram uma versão de estúdio, e eram distribuídos/pirateados/contrabandeados entre a galera, e existem até hoje vivos, apresentações minúsculas em cassetes esquecidos.

Mas ‘Gulp’ também circulou muito em fita cassette numa época em que o vinilo era caro, e uma vitrola ainda mais. E para uma banda que não tocava no rádio ficou rapidamente popular principalmente nessa forma informal de distribuição, que tanto elevou as vendas como impulsionou a popularização do lado underground da banda.

Nos primeiros tempos Gulp se juntou a centenas de gravações piratas das apresentações da banda, que era a forma de distribuição lenta porém mais efetiva que já tiveram.

Fizeram várias apresentações para o álbum, mas no geral passou batido na vida formal da Argentina 1984. Los Abuelos de La Nada, Soda Stereo, Fito Páez enchiam estádios , o underground era dominado por Sumo e Los Redondos só começavam sua caminhada.

Oktubre

Além de muitas apresentações, havia na banda o sentimento de que devia acabar a época underground de ser cultuada por um grupo requintado de intelectuais, se é que existiu alguma vez (se ler com cuidado a letra de Mariposa Pontiac, existiu sim um grupo de fãs das primeiras épocas que era da classe média alta e quis se apropriar do grupo, transformá-lo num objeto de culto).

El Indio Solari e Skay Beilinson passaram a se concentrar em materiais novos, e releituras de antigos. Estavam procurando a sonoridade da banda e com isso experimentando desde baterias eletrônicas até assuntos não convencionais para as músicas e letras.

Nessa época também ficaram impactados numa apresentação do Bolshoi, havia um esplendor do mundo soviético que agora não era mais proibido ser mencionado.  E também evocava um sentimento revolucionário que agora podia se expressar sem medo.

Assim foi maturado, fermentado, fervido e cozinhado a fogo lento o próximo e mais memorável álbum dos Redonditos de Ricota: “Oktubre”.

Rocambole montou a capa com fundo preto, desenhos de pessoas, a horda, a turba, a gentalha, em traços brancos contrastando com o fundo preto. Cada pessoa desenhada em traços firmes, no primeiro plano de traços crus, no fundo os punhos levantados. Levam bandeiras vermelhas, e no fundo se lê o título do álbum: “Oktubre” , com k mesmo, em letras vermelhas de sangue, o ‘b’ invertido imitando cilírico. Para mim , a melhor capa do rock argentino, quiçá do mundo mundial.

Na mesma época ocorria o Juicio a las Juntas, os julgamentos a todo o alto comando da última ditadura militar. Nas ruas havia sentimentos contraditórios. Por um lado uma grande parcela da população sequer tinha tomado conhecimento da ferocidade do regime, e os seguidos relatos das atrocidades cometidas, da perversão, truculência dos torturadores que maltratavam suas vítimas sem necessidade, e da coordenação nacional evidente das ações, despertou uma revolta geral que até agora faz com que apoiar o regime de ultra direita seja um tabu. Mas por outro lado, nem todas as feridas se curaram, porque muitos torturadores não foram julgados, pois pela lógica da obediência, o alto comando foi condenado, mas para julgar e condenar torturadores era difícil, pois em tese estariam recebendo ordens que não podiam ignorar, e poucos deles pagaram pelos seus crimes. Mesmo assim condenar, retirar a patente militar e dar perpétua para os principais nomes da ditadura foi um marco único no país e na região, porém o sentimento na época era de uma vitória amarga.

Contracapa do álbum 'Oktubre'

Em resumo, o que o argentino médio nessa época queria era que…

O álbum ‘Oktubre’ abre com as bombas e foguetes dos ‘Fuegos de octubre’, e o espírito da música bebe da fonte dessa estética soviética, para cantar que estamos sem estandartes, mas te prefiro igual internacional.

Cinco anos atrás por muito menos todos tinham sido presos e torturados. Uma letra ou um álbum assim seria impensável, teriam morrido.

O álbum todo é de composições novas e por isso é bem coeso musicalmente. Há muitas guitarras que se interpõem, o saxo em geral para os solos e para enfatizar a letra, como coros (as Bay Biscuits não estavam mais com eles nesta época).

Capa opcional do álbum 'Oktubre' com a igreja central de La Plata em chamas
Capa opcional do álbum ‘Oktubre’ com a igreja central de La Plata em chamas

Há também uma construção musical originalíssima, Skay e El Indio se permitindo altos vôos em ‘motor psico’, inicialmente inspirado num filme baseado em tres opiniões sobre o amor, mas que a música levou para um outro patamar, tenso, quase romântico sem ser piegas, profundo e lírico. 

o meu deus não joga dados, espero que esteja ao meu favor. Motor psico, o mercado de todo amor, o que deves, como podes ficar com ele?.

O centro do álbum é a música em que mais investiram na composição. Um ritmo tenso mas épico, com uma letra ambígua que até agora está entre as mais enigmáticas e ao mesmo tempo profundas da banda.

Apresentações do Los Redondos ao vivo de OktubreEl Indio sempre disse que sua tarefa é de dar dicas, mas não uma letra sequencial e com uma interpretação fechada. Mas no caso Jijiji se presta a muitas interpretações. A deste humilde podcast é que trata basicamente do medo de se converter em alguém desprezível, está dividida de forma clássica em tres estrofes que descrevem como nasce esse monstro psicopata, como se desenvolve, e depois o medo de nós sermos esse psicopata, de uma forma muito original e quase como um roteiro de cinema (lembrando que foi justamente o início do Guillermo Beilinson e El Indio, tentando fazer cinema). Mas está povoada de referências ambíguas, começando pelo nome que parece uma risadinha (para mim desse inconsciente que nos engana sempre) e muitas frases que podem significar muitas coisas.

O solo de guitarra da música se converteu na música dançada por mais gente ao mesmo tempo na historia do rock argentino, ‘el pogo más grande del mundo’ nas palavras del Indio.

Independentemente de records ou não, é uma música profunda de acordes épicos que tem impacto forte e que contém uma dança louca e um final trágico. Foi escrita para virar um hino, e virou mais do que um hino, uma dança geral de milhares de fãs.

Também foi para muitos o grande cartão postal da banda porque a música quebrou a bolha do underground, tocou nas rádios rockeiras, além de ter frases que entraram para sempre no imaginário argentino, como o ‘não era sonho’, revivido em 2014 na final do mundial no brasil, e novamente em 2022 com o triunfo em Qatar, só para mostrar que as imagens que gerou se reinventam a cada nova geração.

É bem difícil que uma música passe um sentimento épico, tenha uma dança no meio e termine de forma ambígua e trágica e seja um hino. Mas isso é Los Redondos, estamos num mundo louco que nos engole, vamos dançar, e toca profundamente os corações geração a geração.

El Indio Solari dançando e Skay tocando atrás 'Jijiji'No meio das composições abrimos a cortina e a realidade terrível se asoma. Na época em que o álbum é composto, acontecia o ‘Juicio de las Juntas’, os julgamentos à alta cúpula da ditadura militar do processo chamado Processo de Reorganização Nacional, a ditadura entre 1976 e 1982. Alguns dos momentos claves do julgamento foram televisados, a grande maioria dos argentinos se inteirava por fim dos desaparecimentos, torturas e desmandos dessas épocas, e em Música para pastilhas El Indio canta para os rockeiros bonitos que ‘ os bons voltaram e estão rodando cinema de terror’.

Entre divertido e sarcástico, El Indio canta quase gritando em ‘Divina TV Fuhrer’, ‘me afogo, caio a pique, gluglu’. A TV é sempre o espetáculo deplorável da massificação e do pior do ser humano, neste caso do desfile do que a TV impõe que é bonito.

Destoando do disco, a última faixa é um alívio descontraído chamado de forma bem irônica “Ninguém vai ouvir tua camiseta’ e que canta ‘você está efêmera, mas acredito em ti’ e que rejeita essa realidade opressiva e do cotidiano de ver notícias desagradáveis ( ‘outro sequestro, não!’)

É necessário celebrar a nossa mísera existência neste mundinho dos caraças enfiado no terceiro canto do universo e parar um pouco com a desgraça matinal das notícias.

Oktubre figura até hoje como um dos melhores álbuns de rock nacional, ‘Jijiji’ nunca sai da lista de 10 melhores do rock, e apresentou a banda para o público argentino que para sempre seguiu a banda desde então.

– 

Foi assim que Patricio Rey deu vida aos seus Redonditos de Ricota, que terão nos próximos anos altas produções, altos voos, e também desgraças porque a vida é assim mesmo, mas essa estória merece um outro episódio no futuro.

 

Paródia: “Picanha”

 

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você se surprende do que?

Você esperava o que?…

Milico não quer só picanha

Milico quer picanha

e pilulinha azul

Milico não quer só picanha

Milico quer Lulinha

na submissão…

Milico não quer só picanha

Milico quer medalha

Diversão, lazer

Milico não quer só picanha

milico quer apoio

pra tomar o poder…

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você precisa do que?

Você quer mais o que?

Milico não quer só poder

Ele quer o poder

e todo o prestigio

Milico não quer só poder

milico quer juiz

Pra vencer o litígio

Milico não quer

Só dinheiro

Milico quer dinheiro

E prosperidade

Milico não quer

Só dinheiro

milico quer sair

na impunidade…

Milico é golpista!

Golpista é milico!

Você se surprende do que?

Você esperava o que?…

Milico não quer só domínio

Milico quer domínio,

privilegios, bens,

Milico não quer só domínio

milico quer bem cheios

os seus armazém

Milico não quer só avião

Milico quer avião

recheado de pó

Milico não quer só avião

Milico quer ficar

longe do xilindró

Milico não quer só garimpo

milico quer garimpo

mas não ir em cana.

Milico não quer só prazer

milico quer prazer

com a bomba peniana.

Milico não quer

Só dinheiro

Milico quer dinheiro

E prosperidade

Milico não quer

Só dinheiro

milico quer sair

na impunidade…

Com prosperidade

na impunidade

Diversão, picanha

e bomba peniana

Picanha, impunidade, golpinho

Impunidade, golpinho, eh!

Impunidade, picanha, eh!

Impunidade…

VNP #09: Homem milico

Foto alterada sobre manifestação pedindo intervenção militar em Brasília

Já sabemos o que fazem os milicos de toda a América Latina. Embora queiram se associar aos libertadores que lutaram contra monarquias européias, a verdade é que essa casta armada é filha dessas monarquias. Tanto é que não reivindicam lutar contra o colonialismo e sim contra os monarcas europeus. Sempre quiseram ser a força contra os monarcas europeus, a favor dos monarcas das colônias.

Esses mesmos milicos reivindicam a memória do Duque de Caxias.

Até onde sei Duque é um título monárquico. Sim, o tal Luis Alves Lima e Silva foi membro do partido Conservador e combateu as revoluções que tentavam derrubar o monarca agora brasileiro, o braço da monarquia portuguesa que tomou o poder da colônia.

Não é coincidência que milicos atuais reivindiquem o Duque de Caxias. É uma característica de uma casta que se sente parte do Brasil mas não da República, e ainda espera voltar a tomar o poder, seja da mão dos ultraliberais, seja da mão de um maluco qualquer da extrema direita. A liderança das forças armadas continua estando na mão das famílias imperiais e dos grandes donos de terras, que tem um plano exploratório para o Brasil igualzinho ao plano monarquista português.

E não é coincidência terem protagonizado o pior governo em cuidado da saúde, na política internacional, na coordenação política… Porque a visão dos militares está em 64, no mundo da guerra fria, nos preconceitos de um mundo pós-guerra, num mundo ultra eurocentrista, que aceita a duras penas que povos originários tenham direitos ou sejam humanos.

É difícil pedir para um já idoso Lula combater essa elite idosa porém bem articulada da hierarquia militar, mas ela precisa ser extirpada do controle militar. Sim, isso passa por condenar, afastar e limitar atuais lideranças e colocar outras, mas a outra alternativa é que esse braço armado de lobos nunca domesticados volte a atacar um outro dia que sinta que a república enfraquece.

Tem que eliminar de uma vez por todas essa sanha militar de se acreditarem a força que permite que haja democracia, porque quando contrariados sempre teremos um novo 8 de janeiro.

Porque é sempre bom lembrar: milico é, sempre foi e sempre será golpista.

(Imagem de capa: imagem alterada a partir de foto de Eraldo Peres)

Episódio #19: Quiroga e a selva

 

É uma biografia sobre Horacio Quiroga ?

É uma tentativa de descrever um rio que atravessa teimoso a metade do continente ?

É a descrição de um dos últimos territórios argentinos que virou província, de tão desprezado ?

Um território que teve o maior número de missões jesuíticas do país ?

Uma descrição das associações literárias de começo de século ?

Talvez, mas também há muitas impressões sobre tudo isto, através da vida de Horacio Quiroga.

Observação importante: o episódio contém descrições que podem ser um gatilho. Se quiser conversar, acesse https://www.cvv.org.br/

Narração do @PensadorLouco no conto ‘A galinha degolada‘.

As músicas de ambiente são totalmente construídas pela equipe Por Outro Lado para este episódio.

A transcrição do episódio está aqui.

Transcrição do episódio #19: Quiroga e a selva

O rio Paraná nasce fatiando Mato Grosso e São Paulo. Serpenteia o pantanal dividindo os países do Paraguay e o Brasil. Depois ele teima em descer ao sul, tem um encontro épico com o rio que dá nome às cataratas do Iguaçu, e daí ruma oeste, separando Paraguay do nordeste da Argentina, indo depois para o sul novamente, desta vez até a bacia do Rio de La Plata e aí ele é liberto das terras, ganhando o oceano.

Essa parte do rio onde Paraguay fica ao norte é chamada de Alto Paraná. No trecho do Alto Paraná o lado argentino é a província de Misiones, nome dado por ter sido a região onde estavam os assentamentos montados pelos jesuítas, construídos e povoados por povos originários da região, principalmente de nações guaranis -chiriguanos, e talvez antepassados dos atuais mbya. No atual Brasil, guaranis nessa época tinham assentamentos na República de Guayrá, que hoje é praticamente o mesmo território do estado do Paraná. Na divisão territorial das nações ibéricas, esse lado ficou com os portugueses, os jesuítas foram empurrados para o oeste, os guaranis os seguiram porque valia mais a pena imitar a Jesus do que ser escravizado para construir o maravilhoso e rico estado de São Paulo, ao norte dessas terras. Mais tarde os jesuítas foram definitivamente expulsos, a fachada espiritual caiu, as missões abandonadas, e os guaranis caçados, sequestrados, escravizados ou mortos, e cada vez mais reduzidos a pequenos focos rebeldes que resistem até hoje. Eu deveria dizer que hoje fazem parte das nações democráticas do continente, votam e são votados, e seria até verdade, mas a proporção na qual isso acontece, o desrespeito e desprezo em que ainda vivem, diante das nações que já foram, não me permite ter esse otimismo todo.

Uma das missões jesuíticas que mais perduraram foi San Ignacio, no Alto Paraná. No começo do século XX, o governo argentino encomendou para Leopoldo Lugones um trabalho de levantamento das que na época já eram Ruinas de San Ignacio. Lugones era já um importante nome da literatura argentina e a ideia era construir um ensaio histórico, e para isso Lugones se propôs viajar até as ruínas das missões, e um dos seus amigos insistiu muito para acompanhá-lo. Era professor de letras no Colegio Británico em Buenos Aires e escritor promissor, mas ia como fotógrafo, um hobby que já dominava e prometia ser útil na viagem. Era Horacio Quiroga.

 

Horacio QUiroga jovem sentado numa cadeira

Horacio Quiroga nasceu no final (no final mesmo, em 31 de dezembro) do ano de 1878 em Salto, cidade uruguaia na fronteira com a cidade argentina de Concordia, separadas pelo rio Uruguai, no meio do caminho entre Buenos Aires e Misiones.

Embora tenha nascido no Uruguai, a família dele tinha laços com a Argentina. O seu tio-avô foi o famoso líder Facundo Quiroga que no início da república governou a província de La Rioja, no pé dos Andes, e foi um dos mais ferrenhos federalistas, opositores aos líderes conservadores de Buenos Aires.

Talvez por essa oposição e também pelo que Facundo representava, foi utilizado como contraposição entre civilização e barbárie, plasmada no livro do Sarmiento “Facundo o civilización y barbarie en las pampas argentinas”.

Facundo usava umas famosas costeletas praticamente unidas aos bigodes. Menem, presidente peronista dos anos 90 e também da mesma província de La Rioja, vai imitar essa moda 100 anos depois só para invocar a lembrança do Facundo … sendo ridículo, porque não tinha nenhum outro traço de Facundo -só as costeletas mesmo.

Horacio Quiroga estava em Buenos Aires depois de passar pelas primeiras tragédias de sua vida, algumas fortuitas, outras que parecem auto infligidas, a maioria delas envolvendo armas de fogo.

O pai de Horacio Quiroga morre num tiro acidental de espingarda com ele ainda bebê nos braços de sua mãe. A familia muda para Córdoba, Argentina. Sua mãe casa de novo, e seu companheiro vai criar os filhos. Mas irá tirar a própria vida depois de um AVC que o deixa com movimentos comprometidos e sem fala. A familia volta a Salto, Horacio termina os estudos, vai para a faculdade na capital Montevidéu, e mata acidentalmente o seu amigo Federico Ferrando (sim, era o nome dele) na tentativa de preparar uma arma para o duelo em que Federico tinha se metido. Horacio chegou a ficar preso uma semana pela estória ser tão bizarra, mas no fim foi absolvido.

Com a morte do pai ele usa o dinheiro da herança para fazer a viagem dos seus sonhos a Paris. Quiroga idealizava Europa como todos fazemos no cone sul. A sua viagem ao Velho Mundo foi decepcionante. Achou tudo caro, sobrevalorizado, frio, asséptico, gostando somente de paisagens para fotografar. Dono de um corpo magro e esguio, depois da decepção de Paris, Horacio Quiroga irá utilizar longas barbas mal cortadas que junto com penetrantes olhos azuis e olhar profundo sempre cativou as pessoas. A sua admiração aos poetas franceses continuou mas algo no seu espírito os tirou daquele pedestal.

Nessas épocas da faculdade, Quiroga começa seu tortuoso porém brilhante caminho de contista. Leitor dos franceses e admirador de Edgar A. Poe, terá seus primeiros contos publicados, alguns sobre o amor não correspondido, outros sobre estórias trágicas e o horror desvendado na última frase.

Funda um grupo literário, escreve para revistas e depois do episódio trágico com o seu amigo acaba por se mudar para Buenos Aires, conhecer o seu ídolo Leopoldo Lugones, o que os leva para a selva misionera.

Lugones, Quiroga e comitiva partiram em 1903 e conheceram principalmente San Ignacio, no Alto Paraná, a uns 100km da capital de Misiones, Posadas. Depois dessa viagem Lugones irá escrever o ensaio histórico ‘O império jesuítico‘.

A experiência de conhecer a selva no seu estado mais puro mudou Quiroga para sempre. Ficou maravilhado pelo bestial e arrebatador contraste dos restos de muralhas e salas de pedra com o inexorável passo da natureza, os peteribís, os guatambus e timbós atravessando pedra e muro.

Essa ocupação progressiva, inexorável e não violenta da mata selvática foi o que primeiro impressionou o jovem Quiroga.  Também foi seduzido talvez pelo sentimento de participar de um lugar isolado onde podia viver sem estar rodeado de humanos. Já sabia que não pertencia a lugar nenhum, mas aqui podia ser ele mesmo sem interferências humanas.

Quiroga volta para Buenos Aires, mas daí em diante irá alternar entre anos indo na selva e anos vivendo em Buenos Aires, mas mesmo na cidade sempre sonha em voltar à selva.

Primeiro tentou gerir uma fazenda de erva mate no Chaco, no noroeste de Misiones, mas foi um fracasso. Seus primeiros contos eram descrições melancólicas de amor ou descrições do terror como Edgar A. Poe fazia, criando um ambiente onde sabemos o que vai acontecer, mas a descrição visceral nos revela o horror nas últimas linhas.

Assim é “O travesseiro de penas” ou “Mel silvestre”. 

 

Em Buenos Aires ele leciona literatura, publica seus contos em revistas como Caras y Caretas, tem encontros literários com outros escritores, mas com os pensamentos em Misiones.

 

A primeira experiência real em Misiones foi o encontro com a vida na selva de um Horacio recém casado com uma de suas alunas, Ana María Cirés. Desse casamento nascem dois filhos, Eglé e depois Darío.

 

Ele constrói sua própria casa. Participa de tudo, desde o plano, passando pelo nivelamento do terreno, a construção dos jardins e da fundação em madeira da ampla casa perto do río Paraná. 

Mas como dissemos tudo em Quiroga tem o toque maldito da tragédia, fortuita ou auto inflingida: o que começou um casamento romântico cujos anos felizes lhe dão muita inspiração em contos como ‘Sublime Amor’, ‘Pasado Amor’ e ‘El amor turbio’, logo vira discussão todo dia onde as suas manias, sua obssessão pela vida na selva, a imposição a uma vida afastada do resto do mundo, faz Ana Maria odiar o lugar. Mesmo que tenham construído uma casa apartada perto onde moravam os pais dela, a educação orientada à vida na selva que ele dá aos filhos, com tudo sempre girando em torno a essa vida de ermitão, a pressão do marido fica insuportável.

Não conhecemos as circunstâncias, mas podemos deduzir que essa atitude opressiva de Quiroga, quase 20 anos mais velho do que ela, sedutor e autoritário, culto mas impaciente, deve ter feito com que ela fique nessa prisão. O que aparentemente aconteceu é que, após uma discussão, ela bebe um dos líquidos usados para a revelação fotográfica, que a deixa se contorcendo de dor, até morrer sete dias depois. As circunstâncias da morte são pouco claras; deduzimos essa atitude opressiva do que conhecemos hoje mas a culpabilidade do Horacio Quiroga não é citada explicitamente em lugar algum, inclusive às vezes é sugerido algum problema de ordem psicológica com Ana Maria. Quiroga ainda estava exercendo como juiz de paz. Era um juiz de paz bem relapso que escrevia os nascimentos, casamentos e falecimentos não no livro de atas e sim em papeizinhos que deixava numa lata de bolachas. À época da morte da esposa não consegue exercer suas funções que são assumidas por um amigo. Num arrebato de ódio dias após o falecimento dela, ele até queimou os pertences dela.

Viúvo, muito provavelmente se sentindo culpado, mal da cabeça e com pouco dinheiro, ele volta para Buenos Aires. Se concentra em criar os filhos e escreve contos para distraí-los, resgatando sua imaginação misturada com sua experiência na selva. É sem dúvidas sua época mais prolífica em termos de escrita. Os contos quase de fábulas para crianças são publicados em 1918 num livro chamado ‘Cuentos de la selva’, que até hoje é um clássico da literatura infanto juvenil.

Há a descrição de arraias de água doce que defendem um homem contra os tigres da selva, em vários deles os animais são os protagonistas, tartarugas, jacarés, flamingos e tigres, mas em vários deles há uma contraposição entre animais e humanos. Humanos contra tigres, filhos de quati e filhos humanos ou arraias e homens contra tigres. São contos não preocupados com uma moral, mas em geral mostram a supremacia e em certos casos ignorância humana, em contraposição ou em comparação com a riqueza animal, a riqueza poética, intelectual e diversidade animal sejam serpentes, quatis, arraias, formigas ou tigres.

Quando ele diz tigre não é o tigre asiático, refere-se à onça ou jaguaretê, o nome que os guaranis usavam, mas prefere colocar tigre provavelmente porque o seu público da cidade não está familiarizado com os outros termos.

Ele também cria seu contos dentro de uma lógica menos centrada em Buenos Aires, menos focada em interações humanas e com animais como personagens e a selva como pano de fundo.

Ele também cria, ou destila, ou se lhe escapam outros contos não para os seus filhos ou esse público infanto juvenil, e sim tentativas de revelar os seus próprios fantasmas, mais tarde compilados com o título certeiro de ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte’, entregando toda a sua alma em contos de terror ambientados na selva: o padre que fica louco bebendo um vinho feito de laranjas e que vê a filha transformada num enorme rato, que mata a machadadas. 

Há outro bem peculiar: um casal jovem e feliz, Berta e Mazzini, que tem um filho que após 18 meses perde as suas capacidades mentais : 

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; mas a

inteligência, a alma, e até o instinto, tinham desaparecido totalmente; tinha ficado

profundamente idiota, babão, molenga, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.

– Filho, meu filho querido! – soluçava a mãe, sobre aquela terrível desgraça de seu

primogênito.

Eles tem mais outro filho que também sofre convulsões aos 18 meses e tem o mesmo destino. E depois eles tem gêmeos, com o mesmo destino, quatro meninos `idiotas`.

Não sabiam engolir, mudar de lugar, ou sequer se sentar. Por fim aprenderam a caminhar, mas esbarravam em tudo, por não se dar conta dos obstáculos. Quando eram lavados, mugiam até ficar com o rosto em chamas. Somente se animavam com comida, quando viam cores brilhantes ou quando escutavam trovões. Então riam, pondo para fora a língua e rios de baba, radiantes em um frenesi bestial. Por outro lado, tinham alguma habilidade imitativa.

E mais nada.

Mas depois vem a única filha mulher, e ela cresce saudável, e após brigas do casal da tensão normal de criar 4 filhos com necessidades, ter a caçula iluminar a casa é uma bênção, fazendo-os esquecer de suas… aberrações.

Se nos últimos tempos Berta sempre cuidara de seus filhos, com o nascimento de Bertinha, ela praticamente tinha se esquecido dos outros. A simples lembrança deles a horrorizava, como uma atrocidade que a tivessem obrigado a cometer. O mesmo acontecia com Mazzini, embora em menor grau. Nem por isso a paz havia chegado às suas almas. A menor indisposição de sua filha fazia brotar o pavor de perdê-la e o rancor da sua descendência podre.

  

E um belo dia a mãe e a empregada nos seus afazeres, a empregada preparando uma galinha para o jantar pede para os filhos-aberrações saírem da cozinha. Mas a imagem fica na mente deles, e quando a irmã segura na cerca para ver o pai ir embora trabalhar, não duvidam, … é sua galinha. Prendem cada um segurando um dos seus membros, deixando sua cabeça na ponta da mesa da cozinha.

– Minha filha, minha filha! – correu já desesperado até os fundos. Mas ao passar pela cozinha, viu no piso um mar de sangue. 

Esta é uma rápida resenha e se for ler o conto ‘A galinha degolada‘ verá que há várias outras camadas. As culpas, as acusações mútuas do porquê dos meninos ficarem assim, o amor e o ódio intensos, os `idiotas`, os desejados, os rejeitados pela sociedade, o que as famílias ocultam. Muitas camadas de amor, de loucura e de morte.

 

Também continuam os contos quase fábulas. “A anaconda”, a saga das serpentes que tentam se unir contra os homens que as perseguem, mas as serpentes são eficientes para matar mas não confiam em si mesmas e acabam por trair umas às outras.

Mas quando a estória dos povos originários e a vida de Horacio Quiroga irão se cruzar ? Não irão se cruzar. Embora cite um ou outro personagem, algum cacique ou algum ‘indio’ no meio das matas, a vida de Quiroga estava entre os colonizadores, então não é que não houvessem reservas, mas são invisíveis a menos que nosso olhar seja direcionado para eles. Foi a forma de sobrevivência que estes povos encontraram, se confundir com a paisagem selvática.

O olhar da destruição claramente passa pelo talvez melhor conto de Horacio Quiroga, não muito citado: ‘Os desterrados’. Aqui sim cita um cacique, a destruição da mata para que seja `produtiva`, as plantações de cana de açúcar, erva mate, laranja, e entre eles os bóias fria do lugar chamados “os mensú”, ou seja os trabalhadores itinerantes que trabalham por diárias ou -mensualidades (mensalidades, pagamentos por mes). O protagonista do conto é o brasileiro João Pedro, um mensú, negro falante de portunhol e com ele exemplifica as relações da força de trabalho partir da saída dos jesuítas, transferida dos povos nativos para os imigrantes das tres fronteiras. Mas os métodos não mudaram muito: sua primeira paga é literalmente um tiro na mão. Abre a mão para receber, e recebe bala.

 

A partir daí a saga de João Pedro será vingar sua mão ferida e voltar a sua terra. No caminho encontra outro brasileño desterrado e juntos partem para essa aventura. Quiroga utiliza esse fio condutor para descrever a situação desses trabalhadores, as injustiças, as soluções para conseguir armas, se vingar, fugir. É o que resta aos desterrados.

Como sempre Quiroga usa as analogias para se descrever, desta vez não com animais e sim humanos contra humanos, onde todos perdem, onde a fronteira não significa mais do que cruzar um rio mas significa muito para o mundo dos humanos de papéis, permissões e linguas. O portunhol no conto é mais castelhano, para que o leitor de fala hispana compreenda melhor, mas é impecável nas expressões e expressa essa sensação de estar sempre fora de sua terra, de sua língua, de seu lugar.

Assim como ‘Pasado amor‘ era mais autobiográfico, descrevendo em detalhes como ele mesmo construiu sua casa na selva, esta época tem contos mais alegóricos e poéticos embora ainda autobiográficos de algum modo como Juan Darién, o tigre criado e educado como uma criança na escola, mas que é condenado por ser ‘selvagem’. Juan Darién terá uma saga tentando se encontrar como humano, mas finalmente aceita as rejeições do mundo humano, e se interna na selva.

Juan Darién é um tigre criado pela mãe que perde um filho, e que uma serpente ajuda a que pareça humano para os humanos. Quiroga é um humano que escolheu a vida na selva, se tornar um tigre, e é desprezado pelos humanos das cidades, revelado sempre como um estranho. Juan Darién é Quiroga, e Quiroga é um Juan Darién às avessas mas que sofre o mesmo problema de ser sempre um desterrado, um homem alheio à vida urbana e que acredita que a civilização é somente sua forma de vida e as outras são todas selvagens.

Quiroga foi sempre suficientemente excêntrico como para se preocupar com flertar com a loucura. Sua vida são os seus filhos, seus escritos, as memórias da selva. Sempre foi atacado pela morte trágica e talvez isso tenha afetado para sempre sua forma de ver o mundo, mas ao mesmo tempo nunca fez esforços para impedir ser o algoz de pessoas no seu entorno, mulheres e filhos. Essa tendência destrutiva, aliada com o sentimento de que viver isolado na mata misionera o salvaria, fez com que construísse uma personalidade arisca e abusiva, uma pessoa que fazia o que queria, do jeito dele e no seu tempo, alheio ao fato de arruinar a vida das pessoas ao seu redor.

É assim que constrói uma canoa do zero para navegar o Paraná desde Misiones até Buenos Aires, ou constrói a casa com outros dois pedreiros, ou coloca como meta plantar erva mate, ou construir uma engenhoca para afastar formigas, ou criar seus filhos para viver para sempre no meio da selva.

E como um amante dominador que geralmente seduz mulheres bem mais jovens, vai repetir esse comportamento abusivo mais de uma vez.

Sim, seu pai se matou com uma espingarda, seu padrasto se matou com outra espingarda quando uma doença o deixou preso a uma cadeira de rodas, ele mesmo Quiroga matou acidentalmente o seu amigo com um revólver tentando  limpá-la antes de um duelo, e assim as tragédias se enfileiram uma atrás da outra e é difícil que Quiroga não visse uma certa predestinação à catástrofe nesses fatos. Mas isso não justifica pressionar a mente de uma jovem e levá-la a achar que sua única saída é se matar. Nem justifica tratar os seus filhos como uma experiência do homem branco na selva, nem outros abusos constantes na sua vida, como a tendência a se apaixonar por mulheres jovens e tentar arrastá-las para a sua casa na selva.

Foi assim que, já em Buenos Aires com os seus filhos, compila os contos que publicava em revistas e os vende em livros. ‘Cuentos de la selva‘ é um sucesso, e até hoje usado nas aulas de literatura infantil. ‘Cuentos de amor, de locura y de muerte‘ não vende no início, embora hoje seja um clássico. Mas outros escritores da época o reconhecem como grande contista, e frequenta o grupo literário ‘A anaconda’, onde faz amigos, inimigos, e conhece a poetisa Alfonsina Storni. Se apaixonam, ele tenta arrastá-la para a selva, e ante a negativa, ele para o seu assédio para algo platônico, o seu amor se transforma numa admiração mútua como escritores, confidenciando sentimentos e experiências por cartas.

Depois se apaixona por outra jovem, mas a família proibe o namoro e a afasta dele.

A forte personalidade e presença do homem dominador sempre aparece. E é assim que novamente Quiroga se apaixona por outra mulher bem mais nova, companheira de escola de sua filha Eglé. Depois de cortejá-la e começar a namorar, a pressiona para que viva com ele na selva. María Elena Bravo casa com Horacio Quiroga, eles se mudam para Misiones, começo idílico, nasce a filha María Elena “Pitoca”, Quiroga nadando na popularidade de sua personalidade do conquistador das selvas, do intrigante contador de histórias de serpentes, tigres e jacarés. Mas aos poucos María se desencanta da dura vida na selva , da personalidade opressiva do Quiroga que faz o que se lhe dá na telha, e começam os problemas conjugais.

Parece cena repetida de filme. Só que María Elena Bravo não é Ana María Cirés: separa do Quiroga e volta para Buenos Aires. Quiroga a pressiona, escreve cartas, tudo em vão. É a doença que faz María Elena não sumir da vida dele: Quiroga se queixa de dores abdominais, tenta se curar com plantas, nada resulta, e cabe a ela acompanhá-lo nos exames e visitas a hospitais. Primeiro em Posadas, capital de Misiones, depois em Buenos Aires.

E assim alguns conhecidos influentes conseguem que seja atendido no Hospital das Clínicas em Buenos Aires já no final de 1936. Enquanto faz exames e responde a tratamentos, fica sabendo da estória de um ‘fantasma’ que mora nos porões do hospital. Na verdade, mora no sótão por vergonha e o hospital faz vista grossa.

Quiroga se informa e vai a sua procura. É o Quiroga investigativo que não hesita em desvendar mistérios e cuja humanidade o faz ver através do olhar frio da sociedade.

O ‘fantasma’ é Vicente Batistessa, um envergonhado antigo paciente, portador de síndrome de Proteus, ou elefantíase. As suas deformidades o levam a se esconder mas após as conversas com ele, embora a fria navalha da ciência explique que não tem prognóstico e por isso não tem leito, Quiroga consegue retirar algo da humanidade que ainda resta em alguns responsáveis no hospital e Batistessa se instala num leito junto a ele.

Viram confidentes. De um lado o Quiroga reconhecido pela sociedade mas lastimado pela sua própria tempestividade, cansado de lutar contra sua teimosia, longe de sua querida mata misionera e entregue à medicina. Do outro lado o seu nada ilustre companheiro, sem prognóstico e condenado ao julgamento do olhar dos seus pares que não o reconhecem.

Batistessa se admira com Quiroga, que olha diretamente sua alma através do seu corpo irreconhecivelmente humano. Chega então a notícia de que Quiroga tem mesmo câncer de próstata em avançado estado, e que pelo atual estado terminal não será operado. Ele então sai do hospital com o intuito de se despedir de alguns entes queridos e fazer alguma papelada. Mas na verdade compra cianureto. Ele prefere afirmar o seu destino e decidir como e quando a sua vida acaba, um 17 de fevereiro de 1937; sua vida termina com a ajuda do seu inesperado companheiro que o assiste na sua última viagem.

 

Meses depois Alfonsina Storni também receberá o diagnóstico de um avançado estado de câncer de mama, e também irá escolher como e quando sua vida acaba: se joga no mar em Mar del Plata no início de 1938.

 

Lugones, que na época da viagem com Quiroga flertava com as ideias socialistas de começo de século, vai aos poucos se transformando num conservador admirador de heróis do passado, vai escrever um discurso fascista nos anos 30 falando em `hora da espada` e vai apoiar o golpe contra Hipólito Yrigoyen. Mais tarde, arrependido, abandonado pelos antigos amigos e desiludido por um amor não correspondido, irá tirar a própria vida com cianureto, aproximadamente um ano depois da decisão de Quiroga.

Assim é que tres integrantes do antigo grupo literário tiraram a própria vida num intervalo de menos de um ano, embora em circunstâncias bem diferentes.

Não posso julgar a vida e muito menos a decisão da morte de uma ratazana, quem dirá costurar opiniões sobre tres grandes nomes da literatura moderna argentina. Parece haver um senso de controle da própria vida no fato de escolher como dar fim a ela. Mas me atrevo a dizer que é um equívoco tentar igualá-las só porque tiraram a vida num intervalo próximo.

Alfonsina foi sempre uma lutadora que precisou abrir espaço num mundo machista e que fez seu nome nas letras sem nem mesmo um berço privilegiado. Tinha que trabalhar dupla jornada e escrever à noite, fez de tudo para ajudar a mãe e pagou a edição de seus primeiros livros com suas parcas economias. Ela decidiu `se vestir de mar` para poupar o tempo de um fim inevitável, que adiou tudo o que podia, só para estar mais tempo com o seu filho.

Lugones traiu seus próprios ideais e acabou por se encurralar emocionalmente ao ver que tinha ajudado a destruir o mundo ao seu redor.

Quiroga teve sempre amigos influentes que o ajudaram nos momentos difíceis. Mas tinha muitas culpas nos ombros, muitas dores no corpo e a monstruosidade de sua alma preferiu escolher o seu final, sendo acolhido curiosamente por quem era visto como um monstro mas que tinha mais humanidade do que médicos, escritores ou heróis de espadas.

Referências : 

Los pueblos indígenas que viven en Argentina, PROINDER, Secretaría de Agricultura, Ganadería , Pesca y Alimentos, 2008

América en diásporas. Esclavitudes y migraciones forzadas en Chile y otras regiones americanas (siglos xvixix)/ Editor: Jaime Valenzuela Márquez. Instituto de Historia, Pontificia Universidad Católica de Chile, 2017.

Los desterrados“, Horacio Quiroga, 1926

Cuentos de Horacio Quiroga (contos digitalizados): https://ciudadseva.com/autor/horacio-quiroga/cuentos/