Capa do álbum 'Oktubre'

Transcrição do episódio #20: Não foi sonho

 

Apresentação do Patricio Rey antes até de se chamar assim (Carlos Solari, irmãos Beilinson e outros no palco do Teatro Lozano, La Plata, circa 1978)

Depois de mais um concerto no teatro Lozano, os principais integrantes que tinham subido no palco entraram num ônibus rumo ao bar El Polaco. Estavam exaustos, mas podiam descansar no ônibus já que estavam em La Plata, e o destino, o bar El Polaco, estava na cidade de Salta, a mais ou menos mil e duzentos kilómetros de distância, no noroeste argentino. Umas 15 horas se fosse uma linha reta, e garanto que não é.

Por que tocar tão longe ? Era o começo de ’78 e La Negra Poli e seu namorado Skay tinham conhecidos na região. Tinham mantido umas terras do pai do Skay, tentaram convertê-la numa bela farm hippie que deu mais ou menos certo, já que o lucro não estava nas prioridades. Era bem longe da cidade de onde eles eram, La Plata, mas na época a banda estava começando a se profissionalizar, embora ainda fosse um grupo artístico bem diverso.

‘Como vamos anunciá-los?’ perguntaram no bar.

Ainda não sabiam, nem mesmo o trio fundacional do grupo.

Skay Beilinson, La Negra Poli e Carlos El Indio SolariO trio era mais ou menos organizado assim: la negra Poli na estruturação de ensaios, representação para se apresentarem nos mais diversos locais, recolhimento das poucas entradas, divulgação no telefone e no boca a boca. Carmen Castro, conhecida desde sua época hippie como La Negra Poli, fazia sempre toda a administração do grupo e o seu apelido de polifacética grudou para sempre. Da era hippie tinha sobrado a rebeldia e a vontade de sustentar esse grupo artístico conhecido como Cofradía de la Flor Solar. Mãe solteira de milhares de histórias no underground da cidade de La Plata, agora era o motor silencioso e interno do grupo.

Outro membro do trio estrutural do grupo era Skay Beilinson, guitarrista e o cérebro musical da banda. De familia bem abastada, os irmãos Guillermo e Eduardo (pelos olhos azuis apelidado Skay) se afastaram do pai, que não desaprovava as carreiras musicais dos irmãos, mas também não ia financiá-la. “Ganharás o pão com o sudor de sua frente” e todas essas porra…

A relação melhorou depois do pai de Skay ter sido sequestrado pelo ERP em ’73. O ERP era o Exército Revolucionário do Povo, o braço das guerrilhas trotkistas que foi aniquilado na Argentina em 76, e continuou existindo até onde se sabe somente no Peru. Skay percorreu a cidade para levantar la plata para evitar el plomo. Skay e Poli já namoravam e depois casaram, e tinham ideias de estruturar o grupo desde que se formou a partir do aguante La Cofradia de La Flor Solar.

La Cofradía se juntava em um par de casas do centro de La Plata e foi a resistência cultural onde todos se conheceram, aquele ateliê/aguante, ou seja um local de acolhimento de almas perdidas, rejeitadas pela familia, ou perseguidas pela polícia, local que também era o de aproximação cultural que formou o grupo.

Mas o novo grupo se desfazia lentamente do passado hippie da Cofradia e começava a ser um grupo de punk-rock, ou rockabilly com melodías dos pampas, ou um background sórdido de um escuro bar onde se murmuram as verdades que a sociedade finge não existir.

Nessa metamorfose foi fundamental o terceiro membro do grupo, apresentado pelo Guillermo Beilinson para Skay: Carlos El Indio Solari. El Indio Solari nasceu no interior, em Entre Rios, mas fez a escola em La Plata, nunca terminou os estudos de artes mas sempre esteve ligado ao cinema e depois à música. Conheceu na adolescência a Guillermo Beilinson na Cofradía. Chegaram a escrever e produzir um curta, e nessa época Guillermo apresentou para El Indio ao seu irmão Skay, surgindo assim a dupla criativa da banda.

‘Como vamos anunciá-los?’ insistiam em perguntar no bar El Polaco em Salta. Poli devolveu a pergunta para eles. Qual seria o nome da banda? Ainda não tinham fechado um. Então um dos antigos insights ganhou e ficou Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota.

Patricio Rey já era invocado como uma entidade na época nas apresentações quando abriam ou fechavam com alguns monólogos. É como se os músicos fizessem o que essa entidade mandasse, suas marionetinhas. Um dos membros / entusiastas / professor de matemática do tempo das apresentações, o Docente, ou El Doce,de vez em quando distribuía para a plateia uns bolinhos de ricota. Não se sabe ao certo mas deve ter começado quando as apresentações do saltimbanqui grupo começavam numa hora incerta, não tinham hora para acabar e eram regadas a vinho barato. Alguém deve ter sentido fome entre meia-noite e 4 horas da manhã (várias vezes só foram embora quando expulsos pelos administradores do local).

 

El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota
El Doce distribuindo os famosos bolinhos de ricota

Então a solução do nome da banda foi invocar um mix dessas duas ideias, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota, Patricio Rey sua entidade imagética e seus saltimbanquis redonditos. O nome dá o toque irônico que resume bem a intenção da banda: como se fossem governados por uma entidade, que evoca os poderes patriarcais e ambivalentes que dominam sempre, onde a arte apresentada é quase sua bênção divina. Soava muito bem com o jeito circense e irônico das apresentações onde, nas palavras do Indio Solari, muitas vezes se apresentavam 10, 12 pessoas e havia mais gente no palco do que na platéia.

Existem várias lendas do origem do nome da banda, e esta é uma delas. Outra menciona uma receita que viram numa revista antiga, onde uma Patricia Rey assinava uma receita de uns bolinhos e isso teria ficado na cabeça de alguns deles.

Um quarto ‘redondo’ foi o sempre presente Ricardo Cohen ‘Rocambole’, antigo amigo de Poli e bem ativo na Cofradía. Rocambole, como artista plástico, passou a ser responsável pela divulgação da banda. Nos anos oitenta isso significava estar nas reuniões da banda para saber quando

Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium - Buenos Aires, circa 1986
Lambe-lambe sobre apresentação dos Redondos no Paladium – Buenos Aires, circa 1986

e como seriam as apresentações, desenhar a pincel os cartazes, reproduzi-los e colá-los ao redor do centro da cidade de La Plata -e arredores. Ele desenhou todas as capas dos Redondos, mas nas primeira épocas fazia e imprimia os lambe-lambe para espalhar na cidade.

Outros membros nada estáveis foram Sergio Mufercho Martínez e Enrique Symns, que abriam as apresentações com monólogos, o Piojo Ávalos e depois Walter Sidotti nas bateras, Daniel Semilla Buccarelli no baixo, Willy Crook nos saxos tão presentes em todas as composições dos primeiros anos, os coros das <Bay Biscuits> Claudia Puyó, Laura Hatton y María Calzada, entre outros.

Mufercho era um dos que abriam as apresentações falando em Patricio Rey, e outro o mítico fundador da revista punk ‘Cerdos y PecesEnrique Symns, que fez um dos mais celebrados monólogos (já em 84) no teatro Las Bambalinas e se chama ‘Não olhem para mim’ :  

 

Ele! Ele! Ele o fez ! Esse velho viscoso e chato ao que chamam de Deus, foi ele que fez ! Ele criou esta pantomima que chamam de “universo”. Ele separou as estrelas para que estivessem a infinitas distâncias entre si, para que a Ursa Maior com a Cruz do Sul nada aconteça. Longe, que tudo estivesse longe, que os átomos dançassem freneticamente, as moléculas entre si, sem que nunca copulassem. A vida, esse orgasmo retido. Ele, esse psicopata, esse psicopata criminal que condenou o universo à solidão porque ele estava só. É um velho só e entediado. Ele, essa gelatina espiritual nojenta, que sobe sobre as tetas do nada como uma lesma. Quem ejaculou esse ser miserável ?

Não olhem para mim ! Não olhem para mim ! 

Mas eu não venho a lutar contra ele, nem contra os seus eunucos, seus serafins e querubins. Foda-se este universo de cartolina, este mundo de merda. O que são vocês? Uns zumbis que ele treinou para dizer sempre ‘sim’.

‘Sim mamãe’, ‘sim papai’, sim, mestre, sim, meu tenente, sim chefe, sim senhor ministro, sim MORTE!

“Não, mamãe, não! Não vou parar de tocar uma! Vou correr pela casa toda com o pau gozado para passar ele no teu avental manchado de feijão de desespero, mamãe! Vem mamãe vem que tenho um negócio aqui !”

“Não, pai, não, não vou comer esse miolo de pão nojento. Eu não sou um antropófago que compra um paraíso artificial vendido por uns livros velhos escritos por esses caras horríveis.”

“Não tenente! Nada de um,dois, esquerda-direita! Vou marchar como eu quiser…”

“Não mulher, vou te ser infiel, vou fazer amor com o gato, o canário, a avó, a planta… “

Não olhem para mim ! Não olhem para mim, zombies ! Vocês me contagiam quando olham para mim ! O que querem ? Mais chocolate quente ? Mais samba ? Mais cocaína para espalhar pelo corpo pelas ruas violentadas pela polícia ? O que querem ? Mais desejo ?

Enrique Symns, “No me miren” (tradução livre)

Foi assim que Los Redondos se iniciaram como banda no começo de  ’78, em plena guerra fria e no mais escuro momento do último golpe militar da história argentina. Mas na Argentina houve mais de um golpe militar ?

 

 

Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955
Bombardeio da Casa Rosada no golpe de 1955

Perón sofre o golpe em 55 com tanques nas ruas. Se asila na Espanha, o peronismo é banido. Nos próximos 30 anos não haverá nenhum governo eleito que consiga acabar o mandato sem sofrer um golpe de estado.

O ultracatólico tenente coronel Lonardi (seu lema era ‘Deus é justo’) irá suspender tribunais, o estado de direito, as associações gremiais e os partidos políticos. A ala mais radical dos militares vai derrubá-lo 2 meses depois -era muito mole. O novo ditador, Aramburu, vai radicalizar ainda mais o governo, abolindo também direitos trabalhistas, fuzilando opositores e fechando universidades.

Estudantes e professores sendo expulsos das universidades na Noche de los Bastones Largos, 1966, Argentina
Noche de los bastones largos

Após insurreições e caos, guerrilhas e mais fuzilamentos, Aramburu convoca eleições mas impedindo o peronismo de se candidatar. Em 57 ganha Frondizi, e acaba caindo antes do fim do mandato. São convocadas eleições pela mão do Senado e ganha Arturo Illia. Ele ensaia uma abertura, mas é derrubado 3 anos depois por Onganía, que irá inaugurar uma nova era de perseguições, incluindo ‘La noche de los bastones largos’, quando reitores e centos de professores foram expulsos das universidades apanhando num corredor polonês de policiais de cassetetes.

Montoneros, um novo grupo de guerrilha urbana,  sequestra e mata a Aramburu, além de ocorrerem massivos protestos contra o governo de Onganía como o Cordobazo, e ele cai. Os militares continuarão no comando até 71 quando finalmente permitem que o peronismo presente candidato. Perón ganha as eleições, mas deixa a ultra direita dominar o seu governo. Morre com menos de um ano de governo deixando a vice da chapa (e sua esposa) Isabelita numa posição política insustentável. Ela acaba sofrendo o golpe em 76 para um governo que cria um moedor de carne onde opositores são eliminados, silenciados, jogados ao vazio desde aviões, e só irão parar ante a protesta generalizada após a guerra suicida de Malvinas em 82.

Alto comando militar argentino no julgamento de 1985
Julgamento das Juntas Militares

A nova e frágil democracia consegue colocar na fila dos réus a todos os ditadores do antigo regime num processo chamado ‘Juicio de las Juntas’. Videla, Massera, Viola e Galtieri, entre outros, foram condenados a penas entre 10 anos de reclusão e perpétua. Videla e Massera, responsáveis pelo golpe em 76 e pela fase mais sangrenta desse terrorismo de estado, pegam perpétua. São inocentados nos 90, mas novamente condenados. Massera morre em 2010 de causas naturais, Videla vai para a prisão comum e vai morrer sentado na latrina da sua cela em 2013.

 

O show de Salta foi um desastre em termos técnicos, um fracasso em termos econômicos, mas foi determinante para a identidade da banda. Além disso, tendo um nome e uma identidade criativa, passou a aparecer nas revistas de música como Pelo e de variedades underground punk como a Cerdos y Peces (do Enrique Symns), que também publicava sobre feminismo ou sobre a situação desumana no maior complexo manicomial do país.

Este não muito humilde podcast vai se atrever agora a tentar classificar as músicas dos Redondos, tarefa ingrata que fazemos pelos nossos ansiosos e atrevidos ouvintes.

Conseguimos localizar tres tipos básicos :

  • Número 1: pops ou rocks para dançar, como ‘Pierre El Vitricida’, ‘O inferno está encantador esta noite’, ‘Maldição, vai ser um dia esplêndido’,  ‘Mariposa Pontiac’, ‘Eu não caí do céu’, ‘Meu cachorro dinamita’, ou ‘Ñam Fri Fruli Fali Fru’ . Era necessário tirar essa pressão horrível de anos sem poder se expressar. Eu ouvi e li muitas bobagens sobre o sentido de ‘ñam Fri Fruli’ mas claro que está falando da cocaína, que começou a invadir os arredores de Buenos Aires, rota do tráfico das montanhas andinas para a Europa. La frula é a cocaína, mas a música é quase uma ode a um escapismo, muito necessário, como ‘Eu não caí do céu’, uma confissão de ser humano e querer um pouco de diversão.

Algumas músicas fazem referência a drogas embora exista a lenda de que tudo nos redondos é sobre drogas. ‘Pierre o Vitricida’ por exemplo não quebra vidros cheirando ou ficando violento, é uma homenagem a um produtor, e aqui temos que fazer um enorme parêntese.

(Estou desenhando um parêntese)

Nessa época totalmente improvisada do underground era muito comum os ‘inferninhos’ e neles os Redondos, assim como outras bandas, passaram por muitos riscos de segurança. Mesmo no lançamento em Buenos Aires da banda no teatro El Cemento, era tudo improvisado. Pierre foi um produtor musical que apoiou muitas bandas underground mas era muito chato com a segurança, com razão. Um dia viu que onde iam tocar os Redondos, eles tinham limpado um dia atrás e estava encharcado, talvez por ter deixado alguma torneira aberta. Pierre tentou parar o show, discutiu e bateu portas quebrando o vidro de uma delas.

Redonditos de Ricota no El Cemento (na frente Carlos El Indio Solari de gravata torta, o resto da banda no palco improvisado e com uma parede de tijolo à vista atrás)
Redonditos de Ricota no El Cemento

A produção deu um jeito de secar o chão, mas a anedota ficou, e a verdade é que poderiam ter acontecido desastres como aconteceu depois no CroMagnon, onde houve algo parecido com o sucedido na boate Kiss no Brasil. São lugares bastante exploratórios que se colocam como salvaguardas da liberdade musical mas lucram com o perigo dos artistas e público toda noite, até hoje.

(O parêntese fechou)

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 2: histórias cinematográficas delirantes. Impossível classificar de outra forma narrativas como a que apresentou a banda, a faixa 1 de Gulp: “Barbazul versus o Amor Letal”. Está vagamente baseada na estória do assassino serial Landú apelidado de Barba Azul, mas é mais do que isso, é um pouco a descrição de como o mundo machista cria um arcabouço -tá bom, só vejo isso, foda-se, leia a letra e depois comente e me prove do contrário. Ah, e antes que queira criticar a letra há frases bem preconceituosas, porque são proferidas de forma misógina, que El Indio completava com danças no cenário para deixar a coisa bem ridícula (“velhas feias como macacos, blearghhhh”)

Outra nessa pegada descritiva é ‘Te voy a atornillar’ descrevendo uma relação tóxica (te pressiono demais, te asfixio demais, ‘como pode ser que te choquem os meus prazeres?’, gostaria de te espanar, vou te parafusar, vou te apertar, vou te ferir só mais um pouquinho).

Nesta categoria há uma particular descrição de pessoas ou lugares dessa época de um tardio punk argentino, muquifos mal iluminados com personagens duvidosos da noite que também será o ambiente de um posterior hit da banda, Masacre en el puticlub.

 

  • Tipo de música dentro da classificação totalmente aleatória deste podcast Número 3: hits épicos do caralho. Em geral estão sob uma base 4/4 mas não rockera, como murgas ou ¾ quase tarantellísticos misturados a notas épicas que fizeram com que virem pogos monumentais.

Outro parêntese, desculpem.

Murga: é um ritmo popular principalmente no Rio de la Plata, de Buenos Aires e Montevidéu principalmente, para cantar estrofes no ritmo de marcha de carnaval.

Pogo: dança para fazer com amigos, com grupos de dezenas, centenas de pessoas às vezes só dançando e se entrechocando juntas.

Também se sentiam, de forma estranhamente orgulhosa, um tipo de vanguarda underground. Se considerar que a banda começa em 78 e grava o seu primeiro álbum em 85, a banda era madura, mas também demorou para poder se expressar, precisou esperar melhores tempos, e consegue de fato ter um espaço na frágil democracia que começava nessa época. Teve a maturidade de decidir gravar um álbum, somente quando houvesse uma coesão sonora e independência financeira. Mesmo que tenha demorado, só deixou mais consistente o resultado final.

As músicas em geral tinham uma tônica pessimista, de conseguir se divertir dentro de uma realidade opressiva.

Alguns dos títulos e frases das músicas : 

‘O inferno está encantador esta noite’

‘por fim vais gostar desta prisão’

‘vem para minha casa suburbana’ , ‘me deixa maluco tua prisão’

‘queimas tua vida nesta fila morna’

‘como vc está nestes dias, humano quebrado e mal em pé’

 

As músicas surgem dessa parceria entre eles El Indio Solari e Skay, que nunca teria ido pra frente se não tivesse uma pessoa como Poli para ‘tocar’ os assuntos dos shows, divulgação, organização geral, principalmente econômica e logística. Cada pequeno show, cada interpretação dava um caixa que Poli administrava e que deu a capacidade da banda de conseguir gravar todos os seus álbuns sem divulgação na mídia, sem grandes produtoras, sem produtor musical, gravadoras internacionais, vampiros da criação musical que desde sempre administram o rolê da edição e distribuição artística.

As bandeiras que Los redondos sempre irão manter erguidas: 

  • evitar a divulgação por meios oficiais como televisão ou vídeos (em quinze anos de banda somente há dois ou tres videos oficiais dos Redondos, e foram divulgados por meios independentes). Evitar os meios principalmente para não serem pautados por ela.
  • a música tem que unir, para dançar junto e não pode ser sequestrada por um grupinho intelectualóide que imagine ter o privilégio de entendê-la. As letras podem ser ambíguas mas tem frases de efeito, a música sempre leva à dança, evoca os movimentos de rua e não tem que compactuar com governos de turno.
  • nasceu underground, então tem que ser independente. Desde o primeiro álbum Los Redondos sempre fizeram questão de produzir o seu material e foram os responsáveis pela sua divulgação. Sem selos, gravadoras, marcas nacionais e internacionais depredando os ganhos, marcando suas exigências e operando na sua própria lógica do consumo.

Existe inclusive a anedota de terem sido consultados por Charly Garcia que quis produzir o grupo, e eles se negaram. Serem apadrinhados pela ‘elite’ musical da época não compactuava com a vontade de independência que eles queriam.

Eles tinham se tornado artistas na escura noite das ditaduras, no terrorismo de estado onde simulavam ser saltimbanquis, e depois adotaram a estética e preceitos punk para a vida toda mantendo uma saudável distância dos poderes que sempre condenaram.

Muitas vezes esses estandartes mantidos na força do braço levaram balas da artilheria pesada dos pombos mais variados: produtores musicais, managers, empresas que ofereceram o doce caminho do estrelato, até músicos de outras bandas. Nem todos saúdam o sucesso do coleguinha.

E nada, nada nos Redondos tem uma versão. O nome da banda, por quê foram para Salta, quantos baixistas houve antes do Semilla ser o definitivo por muitos anos, se foram presos e se sim, quantas vezes. Nunca há somente uma versão dos fatos, tudo tem pelo menos uma versão para cada participante do rolê. Isso acontece muito mais na interpretação das letras, que é algo que o Indio não gosta, então torce para o caos, para não explicar ao todo uma letra, mais do que o sentimento geral dela.

Gulp

Capa do álbum 'Gulp'
‘Gulp’ dos Redonditos

Em 83 veio a democracinha, uma criancinha que cambaleava entre problemas econômicos de um país destruído, sem indústrias, tendo perdido uma guerra, com as mágoas que o terrorismo de estado deixou, com milhares de desaparecidos, com uma herança de isolamento da política internacional e problemas fronteiriços. Mas as pessoas queriam falar de coisas mais leves, liberdade de se vestir, pensar diferente.  Após o caos, a guerra, o terror, queriam dançar. Vivendo a vida.

A indústria do entretenimento viu e acompanhou esse movimento e o pop entrou como nunca no país.

Los Redondos fizeram outra interpretação: não se render aos seus princípios, mas captar também esse sentimento, mantendo a consciência com letras fortes, mas outras somente para se libertar.

A cada show Los Redondos era menos um desfile e mais uma banda de rock. Rock? Não exatamente: os ritmos da época eram o ska, o rockabilly, e a banda adota junto outros ritmos populares, fazem rock com elementos da murga, invocam pogos. Mantém solos de guitarra e sax, algo que somente outra banda fazia também: Sumo, com os que se apresentaram mais de uma vez. Luca, o líder de Sumo pegou uma letra do Indio Solari (“Mejor no hablar de ciertas cosas”), que virou um sucesso com Sumo, assim como emprestaram o cenário para os Redondos numa parceria que durou até Sumo acabar.

Então, após uma boa lista de shows, conseguiram reunir o dinheiro suficiente para poder fazer seu primeiro álbum.

Foi algo totalmente independente: a gravação e edição ficou a cargo da MIA, Músicos Independentes Associados. Lito Vitale ficou encarregado da produção e edição técnica. A capa, feita por Rocambole, com riscos pretos e traços feitos em guache, o nome da banda na frente (Redondit -os na outra linha, mal escrito propositadamente) e o nome do álbum embaixo em laranja e verde. Cumpria o que se propunha, mostrava a proposta underground e se destacava nas lojas de discos.

Gulp começa com ‘Barbazul versus el amor letal’ cuja letra já comentei mas é digno de nota que a estreia foi arrojada, com uma música enigmática e uma ambientação bem inusual para o rock da época.

Gulp continua com o primeiro grande hino ricotero: “La bestia pop”. É uma letra bastante clara contra a música pop da época, feita não só como escapismo e sim para entreter uma massa de gente nas grandes mídias. “o meu herói e a grande monstro pop que nos sonhos ilumina a vigilia, que me fará dormir antes de contar até dez”.

Também fala da efemeridade de figuras da música, de se entregar à fama antes sequer de dar o seu melhor (‘morrem cavalos jovens antes de galopar’) ainda incluindo uma crítica aos rockeiros famosos que enchem grandes estádios (‘vou dançar o rock do rico, Luna Park’).

O solo do sax é uma dança arabesca e reflete muito bem a diversidade musical da banda, e a capacidade de fazer hits com ritmos inesperados. A voz e postura do Índio também eram inesperados no rock, um careca de óculos dançando de um jeito estranho com uma voz de freada de caminhão, como ele mesmo diz.Tres poses do Indio Solari dançando

‘Gulp’ tem músicas para dançar como ‘Alguns peligros sensatos’ que antes se chamava ‘golpe de sorte’  outros similares como ‘Ñam Fri Fruli…’ e ‘O inferno está encantador esta noite’.

No ‘o inferno está encantador esta noite’ a reflexão quebra a parede por primeira vez na banda, perguntando ao público o que ele realmente quer ouvir, e se estão qualificados para o espetáculo.

Outro fato importante é que eles tres (e também a maioria dos colaboradores na banda) já tinham uma longa estrada percorrida quando decidiram avançar com o projeto Redonditos de Ricota. No ano de lançamento do primeiro álbum Poli, Skay e Solari estavam com aproximadamente 35 anos. Então podiam falar isso para o público, desafiá-lo, e na mesma letra garantir: esta noite vou me comer a tua dor. Porque era um pouco isso, ter a valentia de questionar o público, mas deixar claro que estão no palco para dar um pouco de alívio e diversão.

‘Gulp’ foi um soco que ninguém esperava. Eles estavam maduros depois de 6 anos na estrada antes do seu primeiro disco, feito a pulmão uma apresentação atrás da outra, tem releituras de músicas que já tocavam ao vivo, mas sendo uma banda desconhecida do grande público, era todo material ‘novo’. Vale lembrar há horas e horas de temas inéditos, que nunca tiveram uma versão de estúdio, e eram distribuídos/pirateados/contrabandeados entre a galera, e existem até hoje vivos, apresentações minúsculas em cassetes esquecidos.

Mas ‘Gulp’ também circulou muito em fita cassette numa época em que o vinilo era caro, e uma vitrola ainda mais. E para uma banda que não tocava no rádio ficou rapidamente popular principalmente nessa forma informal de distribuição, que tanto elevou as vendas como impulsionou a popularização do lado underground da banda.

Nos primeiros tempos Gulp se juntou a centenas de gravações piratas das apresentações da banda, que era a forma de distribuição lenta porém mais efetiva que já tiveram.

Fizeram várias apresentações para o álbum, mas no geral passou batido na vida formal da Argentina 1984. Los Abuelos de La Nada, Soda Stereo, Fito Páez enchiam estádios , o underground era dominado por Sumo e Los Redondos só começavam sua caminhada.

Oktubre

Além de muitas apresentações, havia na banda o sentimento de que devia acabar a época underground de ser cultuada por um grupo requintado de intelectuais, se é que existiu alguma vez (se ler com cuidado a letra de Mariposa Pontiac, existiu sim um grupo de fãs das primeiras épocas que era da classe média alta e quis se apropriar do grupo, transformá-lo num objeto de culto).

El Indio Solari e Skay Beilinson passaram a se concentrar em materiais novos, e releituras de antigos. Estavam procurando a sonoridade da banda e com isso experimentando desde baterias eletrônicas até assuntos não convencionais para as músicas e letras.

Nessa época também ficaram impactados numa apresentação do Bolshoi, havia um esplendor do mundo soviético que agora não era mais proibido ser mencionado.  E também evocava um sentimento revolucionário que agora podia se expressar sem medo.

Assim foi maturado, fermentado, fervido e cozinhado a fogo lento o próximo e mais memorável álbum dos Redonditos de Ricota: “Oktubre”.

Rocambole montou a capa com fundo preto, desenhos de pessoas, a horda, a turba, a gentalha, em traços brancos contrastando com o fundo preto. Cada pessoa desenhada em traços firmes, no primeiro plano de traços crus, no fundo os punhos levantados. Levam bandeiras vermelhas, e no fundo se lê o título do álbum: “Oktubre” , com k mesmo, em letras vermelhas de sangue, o ‘b’ invertido imitando cilírico. Para mim , a melhor capa do rock argentino, quiçá do mundo mundial.

Na mesma época ocorria o Juicio a las Juntas, os julgamentos a todo o alto comando da última ditadura militar. Nas ruas havia sentimentos contraditórios. Por um lado uma grande parcela da população sequer tinha tomado conhecimento da ferocidade do regime, e os seguidos relatos das atrocidades cometidas, da perversão, truculência dos torturadores que maltratavam suas vítimas sem necessidade, e da coordenação nacional evidente das ações, despertou uma revolta geral que até agora faz com que apoiar o regime de ultra direita seja um tabu. Mas por outro lado, nem todas as feridas se curaram, porque muitos torturadores não foram julgados, pois pela lógica da obediência, o alto comando foi condenado, mas para julgar e condenar torturadores era difícil, pois em tese estariam recebendo ordens que não podiam ignorar, e poucos deles pagaram pelos seus crimes. Mesmo assim condenar, retirar a patente militar e dar perpétua para os principais nomes da ditadura foi um marco único no país e na região, porém o sentimento na época era de uma vitória amarga.

Contracapa do álbum 'Oktubre'

Em resumo, o que o argentino médio nessa época queria era que…

O álbum ‘Oktubre’ abre com as bombas e foguetes dos ‘Fuegos de octubre’, e o espírito da música bebe da fonte dessa estética soviética, para cantar que estamos sem estandartes, mas te prefiro igual internacional.

Cinco anos atrás por muito menos todos tinham sido presos e torturados. Uma letra ou um álbum assim seria impensável, teriam morrido.

O álbum todo é de composições novas e por isso é bem coeso musicalmente. Há muitas guitarras que se interpõem, o saxo em geral para os solos e para enfatizar a letra, como coros (as Bay Biscuits não estavam mais com eles nesta época).

Capa opcional do álbum 'Oktubre' com a igreja central de La Plata em chamas
Capa opcional do álbum ‘Oktubre’ com a igreja central de La Plata em chamas

Há também uma construção musical originalíssima, Skay e El Indio se permitindo altos vôos em ‘motor psico’, inicialmente inspirado num filme baseado em tres opiniões sobre o amor, mas que a música levou para um outro patamar, tenso, quase romântico sem ser piegas, profundo e lírico. 

o meu deus não joga dados, espero que esteja ao meu favor. Motor psico, o mercado de todo amor, o que deves, como podes ficar com ele?.

O centro do álbum é a música em que mais investiram na composição. Um ritmo tenso mas épico, com uma letra ambígua que até agora está entre as mais enigmáticas e ao mesmo tempo profundas da banda.

Apresentações do Los Redondos ao vivo de OktubreEl Indio sempre disse que sua tarefa é de dar dicas, mas não uma letra sequencial e com uma interpretação fechada. Mas no caso Jijiji se presta a muitas interpretações. A deste humilde podcast é que trata basicamente do medo de se converter em alguém desprezível, está dividida de forma clássica em tres estrofes que descrevem como nasce esse monstro psicopata, como se desenvolve, e depois o medo de nós sermos esse psicopata, de uma forma muito original e quase como um roteiro de cinema (lembrando que foi justamente o início do Guillermo Beilinson e El Indio, tentando fazer cinema). Mas está povoada de referências ambíguas, começando pelo nome que parece uma risadinha (para mim desse inconsciente que nos engana sempre) e muitas frases que podem significar muitas coisas.

O solo de guitarra da música se converteu na música dançada por mais gente ao mesmo tempo na historia do rock argentino, ‘el pogo más grande del mundo’ nas palavras del Indio.

Independentemente de records ou não, é uma música profunda de acordes épicos que tem impacto forte e que contém uma dança louca e um final trágico. Foi escrita para virar um hino, e virou mais do que um hino, uma dança geral de milhares de fãs.

Também foi para muitos o grande cartão postal da banda porque a música quebrou a bolha do underground, tocou nas rádios rockeiras, além de ter frases que entraram para sempre no imaginário argentino, como o ‘não era sonho’, revivido em 2014 na final do mundial no brasil, e novamente em 2022 com o triunfo em Qatar, só para mostrar que as imagens que gerou se reinventam a cada nova geração.

É bem difícil que uma música passe um sentimento épico, tenha uma dança no meio e termine de forma ambígua e trágica e seja um hino. Mas isso é Los Redondos, estamos num mundo louco que nos engole, vamos dançar, e toca profundamente os corações geração a geração.

El Indio Solari dançando e Skay tocando atrás 'Jijiji'No meio das composições abrimos a cortina e a realidade terrível se asoma. Na época em que o álbum é composto, acontecia o ‘Juicio de las Juntas’, os julgamentos à alta cúpula da ditadura militar do processo chamado Processo de Reorganização Nacional, a ditadura entre 1976 e 1982. Alguns dos momentos claves do julgamento foram televisados, a grande maioria dos argentinos se inteirava por fim dos desaparecimentos, torturas e desmandos dessas épocas, e em Música para pastilhas El Indio canta para os rockeiros bonitos que ‘ os bons voltaram e estão rodando cinema de terror’.

Entre divertido e sarcástico, El Indio canta quase gritando em ‘Divina TV Fuhrer’, ‘me afogo, caio a pique, gluglu’. A TV é sempre o espetáculo deplorável da massificação e do pior do ser humano, neste caso do desfile do que a TV impõe que é bonito.

Destoando do disco, a última faixa é um alívio descontraído chamado de forma bem irônica “Ninguém vai ouvir tua camiseta’ e que canta ‘você está efêmera, mas acredito em ti’ e que rejeita essa realidade opressiva e do cotidiano de ver notícias desagradáveis ( ‘outro sequestro, não!’)

É necessário celebrar a nossa mísera existência neste mundinho dos caraças enfiado no terceiro canto do universo e parar um pouco com a desgraça matinal das notícias.

Oktubre figura até hoje como um dos melhores álbuns de rock nacional, ‘Jijiji’ nunca sai da lista de 10 melhores do rock, e apresentou a banda para o público argentino que para sempre seguiu a banda desde então.

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Foi assim que Patricio Rey deu vida aos seus Redonditos de Ricota, que terão nos próximos anos altas produções, altos voos, e também desgraças porque a vida é assim mesmo, mas essa estória merece um outro episódio no futuro.

 

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Por Outro Lado

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