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Transcrição do episódio: O abismo

 

Era uma vez um grupo de colonos. Tinham passado dificuldades, mas depois de sacrificar frutos do mar num fogo sagrado, aparentemente tudo ia correr bem.

Eles vinham cantarolando como se estivessem bem, embora as notícias fossem péssimas. Os colonos estavam famintos, mas aquele baixinho de óculos e cara de sabichão tinha dito que logo iam chegar investidores das fontes aquíferas e iriam trazer trilhões de galões de água.

E chegaram a um obstáculo. 

Uma depressão grande para poder atravessar. 

 

O general Asterra Omar, especialista em obstáculos, tranquilizou o comando. Era um buraco profundo, todos iam ter que atravessá-lo e se encher de lama. Alguns até poderiam morrer na lama, sim, mas depois da lama haveria o outro lado e eles iam conseguir chegar lá. Era fácil. Todos os gráficos estavam do seu lado.

Não podiam dizer a todos que alguns iam morrer e o resto passaria por cima dos cadáveres porque era uma propaganda ruim, mas nos bastidores foi decidido que retroceder, jamais.

 

Então a ordem foi avançar.

Alguns que chegaram perto e que tinham estudo de terreno falaram “não é um buraco e não tem lama, é um abismo e o outro lado está muito distante, se tentar pular ou atravessar assim vamos morrer”.

Mas não foram ouvidos, o comando era atravessar, não ser maricas, parar de mimimi, e ter coragem para se sacrificar por todos, afinal, se alguns atravessassem primeiro, os outros poderiam ficar acima deles.

 

Soldados e colonos foram atravessando, gritando e desaparecendo. 

Outros grupos de colonos mais longe começaram a construir pontes, mas este grupo não, tinha certeza de poder atravessar mesmo ouvindo cada vez mais gritos, o desespero, e depois o silêncio de quem tentava atravessar.

Os corpos iam caindo sem fim.

As centenas viraram milhares, e os milhares viraram centenas de milhares. Quantos mais caíam no abismo, mais ficava evidente: era um abismo.

Nem mesmo a macabra ideia de atravessar pelos corpos ia funcionar. Mas aparentemente a alta cúpula de colonos cultivava uma predileção por rituais macabros. Mortes eram considerados sacrifícios por um bem maior, a colônia, e a eliminação de milhares era comparado ao ceifar do campo para depois florescer uma nova safra. Eram idéias impopulares que não saíam da cúpula porque seriam mal interpretadas fora dela. Por isso eles insistiram nessa ideia suicida aparentemente.

Como será que esta fábula irá terminar ? A alta cúpula de senhores que secretamente cultuam a morte conseguirão atravessar o obstáculo ? Será que os poucos dissidentes conseguirão impedir que o abismo se encha de corpos inocentes ? Quantos terão que morrer para perceberem todos que o abismo não poderá ser atravessado simplesmente jogando inocentes ao vazio ?

 

E enquanto isso, um membro afastado da cúpula, a esperança da ciência e da inovação, sonha um sonho …

 

Episódio #15: Mulheres da UTI

UTI estilizada

 

Este episódio faz parte da campanha #OPodcastÉDelas2021, veja mais em: https://opodcastedelas.com.br/

Neste episódo a Cris entrevista 4 profissionais da saúde que atualmente atuam na UTI de um importante hospital de São Paulo.

  • Thaís – nutricionista
  • Marlene – enfermeira
  • Maria Luiza – assistente social
  • Taciana – fisioterapeuta

Ouça no seu agregador preferido ou pode ouvir aqui :

 

Episódio #14: Breve estrela da Graça

Arte sobre capa do álbum ‘Grace’ de Jeff Buckley

 

Neste episódio vamos apresentar a breve vida e obra de Jeff Buckley.

As músicas utilizadas no episódio estão na playlist aqui.

A transcrição do episódio está aqui.

Ouça o episódio aqui:

 

Transcrição do episódio #14: Breve estrela da Graça

Um jovem de pouco mais de 23 anos chega na Big Apple no início dos anos noventa. Mesmo vindo do sul da Califórnia, sempre se sentiu um newyorker e já começa a respirar a cidade, as suas igrejas e muquifos prediletos, se mistura no Brooklin dos artistas, o submundo dos bares de shows underground.

Ele é Jeffrey Scott Buckley e assim que começou a fazer algum sucesso com a sua música decidiu que sua cidade seria New York. Trazia na sua mala alguns esboços de músicas suas, e muitas músicas da sua infância que o seu padrasto lhe apresentou: Yes, Genesis, o mundo do rock progressivo e principalmente Led Zeppelin.

Mas como está o rock nos anos noventa? Nos oitenta o rock foi destruído pelo punk, pelo reggae e depois pelo funk e rap. Tentou se reinventar, virou dançante, mas nada deu certo e essa foi a primeira de muitas mortes do rock. Os grandes nomes dos 70 se esconderam nos seus castelos. E já nos 90 os poucos representantes autênticos passaram a ser os jovens que surgem das garagens, dos pequenos bares, que agora conseguem com baixos orçamentos realizar concertos, gravar fitas improvisadas, CDs, gravar em estúdios caseiros. Querem dar uma voz autêntica, ganhar o suficiente para fazer sua arte sem deturpar seu toque pessoal.

Mas os noventa precisavam de mais simplicidade, mais realidade e performances que trouxessem novamente o que os anos oitenta, com seu pop técnico, tinha perdido. Aprender com os movimentos de rua como o punk, manter sua conexão com a realidade, e com a força de um rock menos pasteurizado. E assim nasce e se desenvolve o que será o grunge, as bandas de garagem, as gravações mais improvisadas das apresentações na rua e nos bares das cidades. Já em New York os músicos de rua tomam conta da cena rockeira da cidade, e Jeff respira esse ar de junk food, cerveja barata, microfones de karaokê, pombas sujas e amplificadores. Tudo era passageiro, nada interessava.

Jeff aluga um quarto qualquer e passa as semanas sentindo a cidade. Visita os bares, faz pequenas amizades e aos poucos o garoto californiano vai despindo sua pele do interior e trocando pela cor da grande maçã ao seu redor que o acolhe como mais um sonhador no lugar certo. 

Ele vinha de um berço de músicos: a sua mãe Mary era violoncelista, e seu padrasto Ron um amante do rock progressivo que sempre apoiou seus sonhos desde que ele disse que seria músico, desde comprar sua primeira guitarra como lhe apresentar aqueles que seriam seus ídolos como Al Di Meola e Led Zeppelin. O seu pai biológico Tim Buckley foi um importante músico do folk dos anos 60, mas se separou de sua mãe ainda grávida. Jeff contou mais tarde que só viu seu pai biológico Tim por alguns dias quando tinha 8 anos, então não o conheceu de fato.

Vendo Tim Buckley cantando e tocando guitarra as semelhanças são evidentes no tom da voz, mas eles tinham personalidades completamente diferentes, além de Jeff conseguir escalas mais altas com mais facilidade. Provavelmente na infância com sua mãe cresceu uma raiva sobre o pai ausente, mas o Jeff adulto já tinha perdoado o seu pai, e também não queria entrar em drogas pesadas como a heroína que levou seu pai a uma morte prematura em ‘75.

E por isso em “Mojo Pin” (que é o nome de uma dose de heroína) expressou seus medos e sua visão de ser um desperdício acabar a vida dessa forma. Já tinha descoberto, amado, odiado e perdoado o seu pai biológico antes de pisar New York, inclusive mudando seu nome de Scott Moorhead, seu nome do meio e o nome do seu padrasto (para sua família sempre foi Scottie), para Jeff Buckley talvez por um apelo mais vendável. 

A paixão de Jeff era colocar a guitarra no colo e tocar de forma sensual, afinadíssima e profunda nos pubs da cidade. Foi no Sin-é que o pessoal começou a reparar nele. O Sin-é, o seu bar predileto, onde sente a liberdade de criar seu espaço, deixa ele fazer suas performances com liberdade. 

Sua voz lembra a do seu pai e sua guitarra é indiscutivelmente única. Jeff passeia em tres escalas com facilidade e perfeição, suas performances intimistas e o timbre acurado e sensual de sua voz passeando em escalas como num transe devocional o destacam de outros performers rapidamente.

Ele faz algumas demonstrações nos pubs, conhece pessoas e assim chega até alguns locais onde as bandas se apresentam e dão seu show. Nos pubs Jeff improvisa versões das músicas do seu coração cheias do seu sentimento e sua guitarra profunda. Pode ser ‘Back in NY’ de Genesis, ‘Lilac Wine’ que Nina Simome imortalizou assim como versões cheias de sentimento como o Halleluyah de Leonard Cohen cantadas no solo com sua guitarra.

Alguns dos músicos das redondezas começam a rodeá-lo e ajudá-lo nas suas performances como Matt Johnson que será o seu baterista nessa época.

Jeff então é convidado a participar de uma homenagem ao seu pai Tim Buckley. Tim morreu de overdose de heroína em ‘75. Jeff o conheceu por pouco mais de uma semana ainda criança, e não tinha nenhuma afinidade com ele. Mesmo assim Jeff faz uma performance marcante na igreja de St Ann e Gary Lucas acaba reparando nele.

Gary Lucas era ex-membro da banda do Captain Beeffheart, o cara que fazia parceria nada menos que com Frank Zappa. Gary estava montando sua banda “God and Monsters”, sempre à procura de novos talentos nos pubs nova iorquinos. Começaram a tocar juntos, Jeff na banda de Gary Lucas, e Gary acompanhando suas performances nos bares. Jeff participou por um tempo da banda de Gary, mas depois acabou por se afastar da banda, mesmo que Gary continue o aconselhando por ver seu potencial como guitarrista, na sua voz, como jovem músico nos anos 90. Jeff sentia que havia um caldeirão dentro dele, e sentia que devia atender o seu chamado por apresentações e respirar o ar da cidade a sua volta. Buscava a proximidade e intimidade que os bares lhe davam, e não iria se sentir à vontade dentro da banda de Gary.

Mas foi o mesmo Gary Lucas que contatou conhecidos de gravadoras quando as performances no Sin-é já tinham consistência. Jeff conseguiu assim um contrato com a Columbia Records que lhe deu o norte para apresentar seu material e a confiança de colocar seu toque pessoal.

Desta época é o álbum que apresentou Jeff Buckley: ‘Live at Sin-é’, com performance onde os pratos, risadas e copos tinindo se misturam com batidas na guitarra de Jeff e sua banda. O álbum mistura pequenos monólogos de Jeff com suas performances intensas, que terminam com poucas e entusiasmadas palmas.

Sin-é significa algo como ‘isso aí’ em gaélico irlandês. Resume muito bem o tipo de performance de Jeff: limpa, autêntica, espirituosa. Musicalmente era o oposto ao grunge, mas no sentimento de entregar seu coração no palco não tinha nada a dever a um Kurt Cobain.

Jeff assim ia contra a tendência normal das bandas de fazer músicas fáceis de ouvir e LPs em estúdio. A intimidade do bar nova-iorquino tinha conquistado a alma de Jeff, que não tinha pressa para ficar famoso nem vontade de ser uma estrela do rock. Mas mesmo assim havia muito material e Gary organizou as gravações em estúdio com uma equipe altamente gabaritada. Desta época é o primeiro álbum puramente em estúdio e que vai lançar Jeff Buckley para os holofotes, entrevistas e o maravilhoso mundo da MTV: o álbum ‘Grace’.

Hoje ‘Grace’ está entre os 100 melhores álbuns de rock de todos os tempos e na época já era muito elogiado tanto pela crítica quanto por músicos como Paul McCartney ou Robert Plant.

O álbum abre com ‘Mojo Pin’, um lamento de um amor que se foi e a queda para mais uma dose. Há um pouco do destino suicida do seu pai na música, mas o que chama a atenção é o arranjo limpo, e o lado espirituoso e que sempre vai torcer pela vida e pelo amor que ficava plasmado nas letras de Jeff e na sua voz cristalina, pleno como um raio de sol do meio-dia. Os vibratos de Jeff são perfeitos e afinados, é um Jim Morrison afinado trinta anos depois.

E depois segue para ‘Grace’, seu hit mais famoso e onde está seu canto ao espírito humano, ao estado de graça que faz os atos humanos valerem a vida e a morte. 

Jeff foi sempre tão grato a Gary Lucas que lhe deu o crédito pelo arpeggio inicial e que separa a música nas suas tres partes, muito embora o resto seja o puro suco de Jeff Buckley. ‘Grace’ se converteu no seu hit e tem centenas de performances hoje de seus admiradores. Também resume o estado de espírito do disco que nos convida a se entregar ao gozo pleno do espírito livre e desimpedido que quer desfrutar da vida e assim reverenciá-la, viver um grande amor, um único amor, milhares de amores, uma persistência do amor através das gerações e isso é toda a música e o amor que seus pais lhe deram.

Talvez tenha herdado o pontilhado do seu pai biológico, mas herdou todo o amor pela música e pela vida que sua mãe e seu padrasto lhe deram, sua pequena Califórnia, seus irmãos e amigos de infância. Está tudo lá e essa é a graça alcançada.

Há várias outras músicas memoráveis no álbum, entre elas “Last Goodbye”, com guitarras que lembram violinos indianos, assim como “Dream Brother” onde a introdução é no dulcimer, uma guitarra medieval de 4 cordas. Há versões também como a versão de Halleluyah de Leonard Cohen e ‘Lilac Wine’ de James Shelton que Nina Simone imortalizou e foi recentemente performada pela Miley Cyrus. “Dream Brother” serviu para o Jeff fechar a estória com o seu pai como ‘Mojo Pin’. São músicas com uma intensidade única que o grunge tinha mas com uma qualidade musical e uma voz pura e bela que o grunge poucas vezes teve.

Há uma incessante busca em Jeff Buckley pela música e seu elo com o intocável, com o divino. Muito além de uma religião ou um deus, o divino é aquele sentimento de um amor tão puro que transcende a vida humana. A sua voz e guitarra tentavam preencher esse vazio e ao mesmo tempo revelavam a sua paixão pela imensidão e uma profunda tristeza nos seus mais sinceros ecos de sua alma.

Mas os problemas que Jeff já encarava são reais, e em Dream Brother deixa bem claro que é uma esperança vã esperar algo de quem não liga para você, como foi Tim Buckley para ele :

 

“Não sejas como aquele que me deixou tão velho,

não sejas como aquele que deixou para trás seu nome,

porque estão te esperando,

assim como eu esperei o meu,

e nunca ninguém veio”.

 

Muitos jovens abandonados em escolas, em ruelas e vilas viraram grandes nomes do grunge mas não conseguiram sair de um espiral de auto-destruição que os levou quase todos à ruína. Jeff encarou seus fantasmas de asas negras, olhou para o abismo, se redimiu e retornou pleno e com uma música reveladora e clara.

Mais tarde saiu outro álbum com material de suas apresentações na Europa antes da gravação do álbum em estúdio (Live from the Bataclan). Sai então de gira para promover o álbum, tocando geralmente em cafés ou pequenos teatros pelos EUA.

Nessas performances e essas buscas acaba por conhecer e entrevistar outro autor do divino e que se conecta musicalmente de uma forma muito especial com Jeff, Nusrat Fateh Ali Khan. Nusrat é herdeiro de uma linhagem de músicos qawwali que no caso ficou famoso com sua banda por começar a tocar em lugares fora do Paquistão.

Nos anos 90 crescia a world music e o mundo ocidental descobre uma infindável lista de músicos de outras partes do mundo. Entre eles, Nusrat Fateh impressionava platéias nos mais diversos festivais com sua voz profunda, a interpretação forte da música qawwali, as rápidas mudanças de tom e seu sentimento sempre à flor da pele.

A música qawwali é um canto devocional a Allah e sua criação. Por isso não há palavras ou letras porque Allah não pode ser representado, descrito ou mesmo nomeado. Isso pode ser interpretado também como que o criador do universo não pode ser definido ou encaixado em palavras, mas ficamos mais perto de entendê-lo quando reverenciamos e tentamos compreender a maravilha de sua criação.

As poucas letras ou frases das músicas vem de poemas sufis. Jeff conhecia esse sentimento, cantou músicas paquistanesas no Sin-é para levar o seu público a esse entendimento e tinha uma profunda admiração por Nusrat e sua música.

Mais tarde o já famoso músico pakistanês grava com Peter Gabriel fazendo parte da trilha musical do filme ‘A última tentação de Cristo’ de Martin Scorsese sobre o livro de Nikos Kazantzákis com uma versão de Jesus Cristo bem particular e claro que o ponto alto é a música da paixão de Cristo, uma paixão com um pakistanês e um senegalês nas vozes, duas vozes próximas ao sufis, à expressão musical do louvor no caso muçulmano, mas enfim, se não estamos falando do mesmo deus, estamos pelo menos falando da mesma devoção.

Jeff já percebe que tem material para um novo álbum. Através da Columbia entra em contato com Tom Verlaine (líder da banda pré-punk dos anos 70 ‘Television’) e começam a planejar a produção de um novo álbum com o título prévio de ‘My sweetheart the drunk’. Fizeram as gravações nos estúdios em Memphis, a terra de Elvis. Tom Verlaine tinha um toque especial para afinar guitarras e deixá-las com um som especial, mas não tinha muita experiência em produção e as gravações com Jeff eram tensas.

`Grace` já tinha saído com uma qualidade monstruosa para um primeiro álbum e agora queria mostrar até onde podia chegar. Suas composições são complexas e suas letras mais diretas sobre amor perdido ou um distanciamento romântico.

É nesta época que grava uma versão definitiva de uma das músicas que fazia um enorme sucesso nos shows: Vancouver. A música é composta como algumas outras junto com Michael Tighe, que também compôs músicas para Liam Gallagher e toca a guitarra no álbum de estréia de Adele. É uma composição típica dos noventa porém complexa e nos convida a flutuar com a suavidade da voz de Jeff.

Vancouver” tem uma complexidade rítmica inusual que as guitarras só embelezam, e uma beleza única para essa época.

É dessa época também “The Sky is a Landfill” que também mostra um corpo e uma consistência únicos. 

Também grava uma versão quase onírica de uma escura música de Genesis da sua época de progressivo “Back in NYC” que abre a segunda parte da quase ópera rock “The lamb lis down on Broadway”.

E também outra música do qual tinha só esboços e que puxam um lado profundo e romântico que aparecia nos shows mas não no estúdio, “Everybody Here Wants You”, que poderia facilmente ser seu novo hit. Estava ótimo. Mas algo ainda não o convencia, algo estava errado.

Fez toda uma sessão de gravações e ainda se apresentava no interior dos Estados Unidos. 

Depois das gravações das quais ainda não estava satisfeito se tomou uns dias de férias. Trabalhou sozinho, sabe-se lá em quê. Semanas depois reagendou entusiasmado com a banda para voltar a trabalhar num material novo para o álbum.

Enquanto a banda estava chegando novamente em Memphis, Jeff estava passeando com um amigo nos arredores e decidiu tomar um banho no Wolf River. Desceu o rio cantarolando ‘Whole Lotta Love” de Led Zeppelin.

Mas não voltou. Seu corpo foi encontrado 8 dias depois, em 6 de junho de 97, vítima de um afogamento acidental, sem drogas no seu corpo mais do que litros de música, gotas mortais de amor nas suas letras e deixando o coração de todos feito pedaços. Curiosamente Nusrat Fateh Ali Khan irá falecer em agosto do mesmo ano.

Meses depois o material foi publicado como ‘Sketches for my sweetheart the drunk’ como último álbum inacabado e póstumo deste jovem de trinta anos, vítima do seu amor pela música e com uma carreira brilhante interrompida pela fatalidade de nossas breves vidas.

Ao redor dos anos, ’Grace’ se converteu num álbum reverenciado e influenciador de bandas e cantores ao redor do mundo. Seu estilo profundo e intenso influencia jovens vozes geração a geração e vai nos ajudar a reverenciar a vida para todo o sempre.

 

Episódio #13: El partido

Maradona fazendo o gol do século

Hoje é dia de futebol !

Neste episódio vamos lembrar do jogo Argentina vs. Inglaterra das quartas de final do Mundial de México 1986.

Com a participação de :

A transcrição quase perfeita do episódio está aqui.

Este episódio foi baseado na minha própria experiência e com muitas informações do livro “El partido” de Andrés Burgo.

Ouça o episódio aqui :

Transcrição do episódio #13: El partido

Narrador :

Olá ouvintes! Estamos em 22 de junho de 1986, no Estádio Azteca num dia de futebol, sol radiante de meio-dia com 30 e poucos graus de calor nos mais de 2000 metros de altitude da Cidade do México. Você ouve aqui um dos jogos das quartas de final do Mundial do México 1986. E estou aqui com <Thiago Corrêa>, olá Thiago

Thiago Corrêa:

Olá <Julián> (…)

Hoje vamos ver uma das grandes batalhas do futebol moderno, de um lado a Inglaterra que vem de vencer o Paraguai por 3 a 0, está muito confiante e acredita que conseguirá lidar com o que vem a seguir. Mas do outro lado temos a Argentina de Diego Armando Maradona, que vem de um jogo duríssimo contra o seu arqui-inimigo Uruguai vencendo por 1 a 0.

Narrador:

Argentina parece preparada para tudo, querendo, não só uma, mas várias vinganças de derrotas sofridas em todos os níveis, então este jogo vai ser memorável pelo seu significado. Estamos nas quartas de final, os mata-mata do mundial de 1986 no México. 

Para lembrar aos ouvintes, a última copa do Mundo foi na Espanha em 1982. Argentina estreou em 13 de junho perdendo da Bélgica, mas os olhos do mundo esse dia estavam milhares de quilômetros ao sul, na mais recente das derrotas, nas ilhas que seriam chamadas por poucos dias de Ilhas Malvinas.

A batalha final pela posse das ilhas começou na sexta-feira 11 de junho, com os britânicos chegando à capital Puerto Argentino no domingo, quando as tropas argentinas são dominadas definitivamente no final do dia. No momento do jogo contra Bélgica estava acontecendo uma das maiores e mais sangrentas batalhas pelas ilhas, a tomada definitiva da capital, que se arrastou pelo final de semana. Na segunda-feira 14 de junho é assinada a rendição das forças argentinas, Puerto Argentino volta a ser Port Stanley e as Malvinas voltaram a ser Falkland Islands.

E digo batalha final porque Inglaterra e Argentina lutam pela posse desse arquipélago das Malvinas desde 1833 quando pescadores argentinos nas ilhas foram expulsos pela marinha britânica, que toma posse e coloniza as ilhas desde então.

E Argentina teve tantas guerras civis, tantos golpes de estado e governos provisórios que as protestas reivindicando o território sempre passaram em branco em cortes  internacionais.

Em 1982 sofria com um governo militar de ultra-direita, ou seja nacionalista. Se envolveu assim numa guerra interna que dizimou seus pares e quando ficou evidente que estavam sequestrados por uma ditadura ferrenha dentro de uma profunda recessão econômica, quando os protestos para acabar com a ditadura já eram ensurdecedores, os militares se agarraram ao nacionalismo barato levando o país à conquista das ilhas. A popularidade do governo foi enorme por alguns meses de delírio coletivo, e quando a grande imensa ficha veio a cair, que jamais iam ganhar do poderoso império britânico, que não iam resistir nem meses ao conflito, o país assinava a rendição quase simultaneamente quando saía do mundial. Por isso teve esse questionamento catártico do tipo “como cheguei até aqui?” que fez expulsar os militares, convocar eleições, tudo praticamente no decorrer de um ano, e começar assim uma reconstrução a partir de um novo sentimento patriótico: recolher os cacos e dar o melhor de si.

Thiago Corrêa:

E 1982 foi um ano terrível também nas copas. A participação da Argentina na copa de ‘82 iria terminar perdendo do Brasil por 3 a 1, com Maradona expulso.

Narrador:

Parece que a gente está misturando política e futebol, isso é um tabu que muitos esportistas e comentaristas não ousam abordar. Mas está sempre presente porque no imaginário um país se manifesta através do esporte, senão não haveria nações disputando mundiais e olimpíadas.

Bom mas estou aqui também com o Tiago Rosas para me ajudar a entender o que é o futebol em tudo isto.

Tiago Rosas:

(boa tarde aos ouvintes, etc)

O futebol é uma manifestação popular. É claro que não tem como comparar com uma guerra, mas simbolicamente jogos de futebol envolvendo nações, são sim eventos políticos, até mais representativos porque o coração do torcedor é assim. O fato dos argentinos sequer lembrarem da copa de ‘82 significa justamente isso: não havia um patriotismo que os levasse a torcer, estavam humilhados pelos seus próprios pecados, por ter deixado um governo militar determinar o que era patriotismo e o que não era, por ter torcido em ‘78 no meio de torturas a metros do estádio, por ter participado de uma guerra suja do Estado contra seus opositores.

Narrador:

Mas a muitos também provoca um sentimento ambivalente de afirmação assim como de rejeição, parecido talvez a um jovem brasileiro de 2020 na vontade de protestar com uma bandeira brasileira. É um símbolo pátrio, mas a partir do momento em que é sequestrado por uma ultra direita nacionalista, xénofoba e racista, passa assim como a manchar esse mesmo símbolo.

Tiago Rosas:

Você pode ter um amor genuíno pela sua pátria, pelos seus pares, pela sua cultura, pela sua língua. Mas o nacionalismo é um tipo de sentimento de superioridade nacional muito mais perigoso, porque tem o poder de engajar pessoas às coisas mais loucas, como guerras contra outros países ou perseguição política dos seus inimigos, que não seriam ‘patriotas’.

Narrador:

É, realmente, governos totalitários focam num inimigo interno que precisa ser eliminado. Como a gentalha precisa ser convencida, abusam de slogans para se apropriar de símbolos pátrios e assim manipulam as pessoas utilizando seu patriotismo. É assim como a Alemanha nazista usava o slogan ‘Alemanha acima de tudo’, o Brasil… bom, vai usar praticamente o mesmo slogan em 2018. Na época da ditadura argentina dos 70 o slogan “Las Malvinas son argentinas” foi algo parecido e mesmo que qualquer argentino fale que esse slogan é verdadeiro, por dentro fica esse sentimento contraditório pelo seu passado.

Bom, Argentina foi destruída numa ditadura que faliu o país e arrasou sua auto-estima. Então em 86 já está num governo democrático, já está novamente erguida, é novamente uma potência no futebol, e hoje é um dia de revanche. O que não se deu no campo de batalha, talvez haja uma compensação no gramado, pelo menos para curar de vez esse orgulho ferido e exorcizar esse fantasma de uma vez por todas.

O que você me diz da Argentina de 86 Thiago Corrêa ?

Thiago Corrêa:

Nesta copa de 1986 a equipe argentina se preparou para ganhar de uma forma profissional e obsessiva. A condução do diretor técnico Carlos Bilardo é assim, detalhista ao extremo, cuidando da alimentação, do preparo, de um esquema tático diferente. Mesmo assim se classificou a duras penas e é bastante criticado internamente, principalmente pela sua insistência em manter a jovem revelação Diego Armando Maradona com a camisa 10 e com a faixa de capitão.

Houve briga porque Passarella era o capitão e não concordou com a decisão, mas uma grave infecção intestinal nas vésperas do mundial o deixou de cama e depois no hospital a copa inteira, e foi substituído no gramado por José Luis ’El Tata’ Brown.

Os jogos são no escaldante sol do meio-dia. Um dos principais estádios reformados para a copa é o do América do Distrito Federal, a megalópole antes azteca e depois espanhola. O estádio Azteca é chamado de Coloso de Santa Úrsula pelo bairro que o abriga, o bairro onde viveram Diego Rivera y Frida Kahlo, Trotsky e o penúltimo rei romeno, Carlos II.

Narrador:

Bairro chique!

E os jogadores já aparecem no gramado. O time britânico se apoia mais na sua estratégia do que em jogadores de renome. O capitão e goleiro Shilton organizou uma defesa consistente, e a estrela do ataque é Gary Lineker. Ele acabou de sair do Leicester para jogar no Everton. Como todo time europeu ele aparenta representar esse embate entre a estratégia europeia contra a individualidade dos sudacas.

Tiago Rosas:

Mas o time argentino já está com jogadores experientes:

Nery Pumpido, Oscar Ruggeri e Héctor Enrique do River Plate, que este mesmo ano irão ganhar o campeonato nacional, depois a Libertadores e mais tarde no final desse mesmo ano o mundial de clubes.

Ricardo Giusti e Jorge Burruchaga do Independiente ganharam o mundial de clubes na primeira grande revanche aos ingleses, contra o Liverpool em ‘84, junto com Bochini, que não joga  como titular porque é centroavante e esse lugar é do Maradona. Bochini é o líder do Independiente e com ele o time ganhou nada mais do que 4 copas Libertadores.

Ainda tem Jorge Valdano que já é ídolo no Real Madrid, Cuciuffo de Vélez Sarsfield que fez o gol das oitavas contra os uruguaios, Sérgio Batista do Argentinos Juniors e um ídolo do River Plate e agora no Boca Juniors, Julio “El Vasco” Olarticoechea.

Para coroar a escalação, Maradona, el Pelusa, el Pibe de Oro, que saiu da base do Argentinos Juniors, para jogar no Boca, de lá para o Barcelona, e agora está no Napoli.

Narrador:

Baita equipe !

E começa a partida!

4 minutos de jogo, Cucciufo toca no lado direito e tenta o centro, a bola bate em Reid e é lateral para a Argentina.

Essa camiseta da argentina está esquisita…

Thiago Corrêa:

Na verdade foi uma camiseta azul escura feita às pressas, porque no último jogo com a camiseta escura, os jogadores reclamaram que ela era muito pesada. 

A camiseta oficial celeste e branca é mais leve por causa da gola ampla e por uma técnica nova para eliminar o suor que a camiseta escura não tem. Daí o diretor técnico Bilardo mostrou como queria as camisetas e estragou várias delas cortando a gola com uma tesoura, daí teve que mandar membros do staff comprarem camisetas Le Coq Sportiff mas de gola ampla e mais leves. Depois de andarem pelo centro da cidade, acharam elas, mas tiveram que colar esses números brilhantes que acharam no comércio local.

Narrador:

Depois de quase dez minutos de jogo, Cucciufo domina a bola no peito, freia e passa para Burruchaga, vai para Maradona que dribla um, dois tres e falta… ! Fenwick leva cartão amarelo. É falta para o time argentino bater.

Essa camiseta é diferente mesmo, os números parecem mais brilhantes.

Thiago Corrêa:

Dizem que as cozinheiras do América que estão junto à equipe passaram a tarde costurando os números. O staff do Bilardo pegou números do futebol americano e por isso são cinza brilhante. Por pouco o time argentino não perdeu de WO por não ter camiseta pronta.

Narrador:

Maradona bate, pega na barreira e quase entra, Shilton tira a bola para o corner.

O time sulamericano aos poucos vai controlando a partida.

Tiago Rosas:

Neutraliza bem o ataque inglês mas não acha o caminho do gol.

Narrador:

O jogo continua travado no meio de campo.  O time inglês tenta lançamentos e domina a bola bem na zaga e com dificuldade no meio de campo, o time argentino ataca mas não consegue chegar com qualidade no gol inglês.

E assim depois de várias pequenas batalhas o primeiro tempo se esvaiu e não saiu nenhum gol.

O que vocês esperam do segundo tempo ?

<Thiago Corrêa>

<Tiago Rosas>

Narrador:

As equipes entram com a mesma formação, Arg começa com a bola e determinada a marcar. Depois de algumas tentativas Valdano não consegue dominar na área, a equipe argentina recomeça e

Foi com a mão? Se foi desculpem, mas é a vingança perfeita!

Tiago Rosas:

Pelas Malvinas e por 66, também!

Em 1966 na copa no Reino Unido foi a última vez que Argentina e Inglaterra se enfrentaram em copas, num Wembley lotado. No segundo tempo, num dos vários lances que o capitão argentino Ratín não entendeu o que o árbitro alemão cobrava, foi questionar ele e foi arbitrariamente expulso. Ratín se plantou na área se recusando a sair e pedindo um intérprete, confiando que a racionalidade iria vencer, mas o árbitro confirmou sua decisão obrigando o capitão a sair, que num último gesto segurou a bandeira britânica no corner, e com isso ganhou o apelido nos jornais de ‘Animals’. 

Narrador:

Sim, daí os ingleses com 1 jogador a mais conseguiram o gol e passaram para a próxima fase, mas as protestas na FIFA foram tantas que foi inventado a partir disso o sistema utilizado até hoje de cartões amarelo e vermelho que não existiam até então.

Mas a equipe argentina se sentiu sempre injustiçada e agora Maradona lava a alma de todos os argentinos, se foi com a mão, elas por elas, “mano a mano hemos quedado” como diz o tango !

Vingança feita continua o jogo, estamos no começo do segundo tempo tudo pode acontecer, os ingleses tentam um segundo ataque mas não conseguem, Henrique consegue dominar a bola e passa para Maradona quase no círculo central.

Este é o gol do século, exatamente 4 minutos depois do gol mais controverso das copas Maradona faz o gol mais bonito das copas, contra o grande rival de sempre, contra O rival, contra a que se diz criadora do jogo, contra o império que simboliza todos os impérios pelos os sudacas que simbolizam todos os injustiçados, Maradona marca o gol do século deixando toda a equipe britânica para trás e o goleiro Shilton sem ação, é o gol da vida de Maradona, é o gol da revanche, da vingança final contra o rival mais odiado e assim Maradona salta de um jogador prodigioso para a glória eterna!

Ficamos assim, mano a mano, estamos quites iguais na traição. Ingleses empurraram pra fora das ilhas os malvinenses e ficaram com as ilhas, driblam as leis internacionais, ignoram os protestos. Mas hoje os argentinos conseguem lavar o sangue com triunfos passageiros como diria Gardel, na milonga, no gramado da vida conseguiram gambetear até o final e deixar 6 na fila.

O jogo continua tenso e com a bola com mais domínio inglês, inclusive com um escanteio e gol de Lineker, gol que ninguém mais lembra. Um gigante Maradona escureceu o sol do meio dia e a Inglaterra lhe resta tentar até o final da partida, tentar em vão até reconhecer que estão fora da copa.

E apita o árbitro, é fim de jogo no Estádio Azteca, Argentina vai para a semifinal e Inglaterra volta pra casa.

Bom, o que vocês acharam do jogo?

<Tiago Rosas>

<Thiago Corrêa>

<Agradecimentos>

O vestiário é festa e um desfile de jornalistas querendo falar sobre o primeiro gol, agora definitivamente reconhecido como feito com a mão, que Maradona nega até o fim. Das conversas no vestiário sai a admissão devocional ‘si fue con la mano, fue la mano de Dios’.

Irão passar anos e depois a grafia até do nome vai roubar o de desse deus cristão e gasto, D de Diego, o número 10 eterno de sua camiseta, e o ‘s’ do plural de todos os argentinos. D10S.

Ainda haveria mais feitos heróicos nessa copa, com Maradona fazendo dois gols belíssimos contra a Bélgica, um deles deixando 4 no caminho e acertando um cruzado de canhota no ângulo esquerdo do goleiro Pfaff. Isso porque um gol de Valdano com o peito foi mal anulado, o árbitro viu um braço que não existiu, provavelmente da FIFA ainda reagindo mal a ‘la mano de Dios’.

No jogo da final da copa contra a Alemanha, o zagueiro José Carlos El Tata Brown seria o primeiro herói, marcando o primeiro gol de peixinho contra o goleiro Schumacher que saiu mal e não calculou o efeito da bola no ar do altiplano mexicano, uma bela contirbuição asteca para sacramentar uma copa sudaca.

No segundo tempo, El Tata Brown se lesionou no braço mas não quis sair. Depois do atendimento do médico, fez um furo na camiseta com a boca, na altura do umbigo, e colocou o polegar, jogando o resto do segundo tempo com o braço imobilizado na sua tipóia improvisada.

El Tata Brown estava com o braço fora de lugar e só soube disso depois de ser campeão do mundo.

O segundo herói seria o impassível Maradona. Quando Weller marcou o segundo gol alemão empatando a partida já na segunda metade do segundo tempo, Maradona impassível segurou a bola, olhou para os seus companheiros, perguntou se estavam bem. Responderam que estavam bem, dava para fazer mais um gol sim.

Minutos depois aplicou uma gambeta clássica maradoniana chamando os alemães ao seu redor no meio do gramado sagrado azteca, e fez o passe para Burruchaga, deixando ele sozinho para correr e fuzilar o goleiro Schumacher e assim chegaram à glória.

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Transcrição do episódio #12: Ushuaia feita de sangue

Tem poucos exemplos de canídeos na América do Sul. Tem um cachorro peruano, o viringo, e tem o lobo guará que foram quase extintos.

Um provável parente do lobo guará foi o ‘perro yaguán‘, mais emparentado com raposas do que com lobos, e que foi parcialmente domesticado no sul do continente por povos fueguinos.

São chamados povos fueguinos porque eram povos que viviam no final do continente, na chamada Tierra del Fuego, terra do fogo. Os primeiros navegantes portugueses e espanhóis que atravessaram o estreito indo para o outro oceano viam desde seus navios linhas de fogos no continente e nas ilhas do sul. Os fueguinos usavam fogueiras para se comunicar. “Venham, achei uma baleia encalhada” ou “cuidado, tem uma canoa gigante passando”.

Mapa do sul do continente incluindo Patagonia, Ilhas Malvinas e Tierra del Fuego

Isla Grande de Tierra del Fuego é o nome da maior ilha de um conjunto de ilhas, o arquipélago de Tierra del Fuego, que forma o sul continente, com ilhas e canais que conectam os oceanos. A Isla Grande tem pouco mais de 47 mil km2, duas vezes o tamanho de Fernando de Noronha (que também é um arquipélago). A região toda hoje na verdade é o único lugar que conecta 3 océanos: Pacífico, Atlántico e Ártico. Também é o único lugar do continente onde a cordilheira dos Andes não está de norte a sul e sim de leste a oeste.

Mapa de Tierra del Fuego

Essa passagem onde os fueguinos moravam era estrategicamente importante para os europeus porque era a passagem sul do Atlântico para o Pacífico. Mas também muito perigosa. É um encontro de ventos e correntes que se cruzam, embatem, entrelaçam e que mandaram muitos navios para o fundo do mar.

A primeira expedição que conseguiu dar a volta ao mundo lá por 1520, liderada por Fernão de Magalhães, deu nome ao passo que ele conseguiu para atravessar do Atlântico ao Pacífico, o estreito de Magalhães, entre o fim do continente e a ilha de Tierra del Fuego. Essa região é um arquipélago com ilhas, canais e entradas que às vezes não davam calado aos navios, e outras vezes não davam para lugar nenhum. Mas Magalhães dirigia uma expedição de vários navios, que na tentativa e erro acabaram por achar o que saberiam depois ser a saída para o outro oceano.

Não chegaram a descrever os seus habitantes mas havia várias etnias diferentes nessa região.

Kawésqar, yámanes, selknam, haush e tehuelches habitavam a região do sul do continente há milênios. Kawésqar e yámanes eram nômades que percorriam o atual sul do Chile, e navegavam em canoas, cada família numa delas. Caçavam, pescavam, dormiam nelas, ou em alguma ilha quando o tempo estava ruim. Desenvolveram uma técnica para fazer fogo dentro da canoa sem queimá-la e a deambular por dias procurando comida desde a canoa. Os selknam e haush (que provavelmente estavam emparentados com tehuelches da Patagonia argentina) também eram navegantes, mas preferiam ficar na ilha de Tierra del Fuego. Tanto yámanas quanto selknam domesticaram o perro yaguán, que os ajudava a caçar guanacos (um outro camélido como a lhama mas que habita essa região do sul do continente). Todos dormiam juntos nas suas pequenas ‘chozas’, refúgios de folhas, árvores e peles de nutria ou lobo marinho.

Selknam

Os selknam foram chamados onas provavelmente pelos primeiros ingleses que passaram por lá alguns séculos depois quando muitos navios ingleses e holandeses atravessavam pelo estreito de Magalhães e pelo Cabo de Hornos, e naufragaram bastante também. Um navio famoso que fez várias expedições foi o HMS Beagle e numa dessas viagens encontrou o canal hoje chamado de canal de Beagle, pela costa sul da ilha de Tierra del Fuego, um passo de melhor navegação para o Pacífico. Provavelmente indicado pelos selknam, onas.

Selknam na sua choza

Os ingleses ficaram impressionados pelo estado de barbárie dos onas, em geral nus ou com algumas peles de nutria como roupa, sem religião nem deuses, lutando todo dia pela sobrevivência do próximo. Desconheciam os espelhos e não usavam anzóis mas sim conheciam pirita de ferro para acender as fogueiras até dentro da canoa que era praticamente uma casa nessa vida nômade.

Os kawésqar, yámanas, selknam, tinham alguma adaptação que os permitia manter uma maior temperatura corporal para poder resistir a baixas temperaturas, e também andavam nus porque passavam óleo de nutria que os mantinha aquecidos mas sem deixá-los úmidos. Se há algo constante no fim do continente é que é frio e constantemente úmido.

Depois de reconhecido o terreno muitos navios passaram a percorrer a área para encontrar novas passagens para o Pacífico, e para caçar baleias e lobos marinhos. Com a diminuição drástica da principal fonte de proteína, e com os europeus indo e vindo na região, vieram a fome e as doenças, e as povoações foram diminuindo de tamanho. Além disso as tentativas de cristianizá-los e a conseqüente adoção de vestimentas européias, totalmente desaconselhadas para o lugar, fizeram com que chegassem novas doenças que aproveitaram a umidade da roupa para virar endêmicas. Poucas roupas úmidas eram piores do que andar nus, ’em pecado’.

Beagle

Na primeira viagem do HMS Beagle, já em 1830, houve uma circunstância bizarra em Tierra del Fuego: alguns homens, talvez yámanas, tomaram um dos botes do navio. Em represália e para forçarem a que devolvessem o bote, o comandante Robert Fitzroy sequestrou alguns jovens e crianças kawésqar e yámanas e manteve uma negociação até ter o bote de volta. Mesmo depois de devolver o bote, Fitzroy continuou com alguns jovens reféns, e levou 4 deles para Inglaterra: um menino de aproximadamente vinte anos cujo nome desconhecemos mas que foi batizado como Boat Memory, Orundellico de aproximadamente 15 anos, batizado Jemmy Button, um jovem de aproximadamente 20 anos, Elleparu batizado York Minster, todos eles yámanas, e uma jovem kawésqar de uns 10 anos, Yokcushlu, batizada como Fuegia Basket. Todos chegaram vivos no porto inglês de Plymouth porém Boat Memory morreu de varíola.

Os nomes cristãos se supõe que estão associados a estórias sobre seu batismo, e Jemmy Button, segundo Fitzroy, teria sido comprado em troca de uma moeda de quarto de libra, mas seria bem estranho que uma família trocasse seu filho por algo, e bem mais estranho por algo sem valor algum para um fueguino. Esses detalhes escapam ao leitor europeu que associa barbárie a qualquer tipo bizarro de troca e a um valor muito baixo da vida humana. É possível também explicar esse mesmo fato imaginando o poder de intimidação de um navio como o Beagle e a determinação do seu comandante que mesmo jovem era famoso pelo seu senso de autoridade.

Fitzroy também era muito religioso e decidiu educar os jovens, num sentimento cristão de lhes oferecer a civilização e a única religião verdadeira. Deveria ficar sinceramente angustiado e preocupado vendo as condições precárias em que imaginou que viviam e quis lhes dar a oportunidade de uma melhor condição de vida, que para ele era o mundo civilizado da Europa cristã.

Ele tinha contato com a Church Missionary Society, uma associação anglicana empenhada em levar o evangelho para povos não cristãos. O reverendo William Wilson ficou entusiasmado com a oportunidade e acomodou os jovens nos aposentos do professor da escola primária. Ele e sua mulher ficaram felizes que os fueguinos “eram gente tranquila y limpa, e não ferozes e sujos selvagens“.

Os jovens fueguinos foram para a escola inglesa. Ensinaram a eles o idioma inglês, as maneiras inglesas, a cultura inglesa. E a Bíblia, claro. Ensinaram a civilização e conheceram pessoas ilustres do outro lado do oceano, inclusive o rei Guilherme IV. Fuegia era bastante reservada mas mesmo assim foi quem melhor aprendeu o inglês. Contava pouco ou nada sobre seus familiares. Eles se limitavam a dizer que era o melhor lugar do mundo, ou a terra das melhores árvores.

Tempo depois Fitzroy começou os preparativos para uma segunda expedição, onde estaria também Charles Darwin, na época um jovem naturalista sem nenhum renome.  O reverendo William Wilson ficou interessado em que os jovens fueguinos, caso fossem retornar, o fizessem num assentamento que depois pudesse ser uma base evangelizadora.

“Começamos a recrutar cavalheiros que desejem fervorosamente que não seja perdida esta oportunidade de estender os benefícios da civilização”.

Fitzroy embarcou os jovens fueguinos na próxima expedição certo de que algum deles seria útil como intérprete na região, além da esperança de fundar um novo assentamento de plácidos cristãos fueguinos. Darwin descreveu eles de forma ambígua, ora elogia sua sensibilidade ora os compara ao tratamento entre cavalos não domesticados frente a um parente domado. O jovem Darwin carregava ainda alguns preconceitos comuns da época. Num momento se horrorizava com a escravidão e em outro comentava que escravos numa fazenda deveriam ter ‘uma vida feliz e contente’.

Em algum momento da viagem de volta, os jovens fueguinos, sempre abordados com perguntas, deram a entender que teriam hábitos canibais em circunstâncias de extrema fome. Matavam e comiam as mulheres mais velhas porque não tinham serventia. Segundo os jovens seriam mais inúteis do que os cachorros, que eram úteis para procurar nutrias.

Na parada no Rio de Janeiro ficaram alojados na casa onde Fuegia ensinou inglês para as crianças que lhe ensinaram algo de português.

Jemmy Button tinha 14 ou 15 anos quando sequestrado. Se mostrava alegre, e preocupado se alguém estava indisposto na viagem, inclusive consolando o jovem Darwin quando passava mal, embora achasse estranho alguém passar mal no mar.

Assim que chegaram nas imediações de Tierra del Fuego numa região chamada por eles de Wulaia na costa oeste da ilha Navarino, encontraram habitantes conhecidos de Jemmy Button e sua família foi localizada. Foram deixados lá com uma pequena horta, inclusive com o novo casal Yokcushlu e Elleparu. Jemmy soube que o seu pai estava morto, e sua mãe que um ano atrás se desgarrava pelo filho, demorou a se acostumar com sua volta. Provavelmente não parecia o mesmo. O seu irmão Tommy era conselheiro e xamã do grupo. Então Fitzroy e os seus se foram. Fuegia voltou a ser Yokcushlu, casou com Elleparu e ficou com ele até ser morto anos depois por ter matado um homem.

O Beagle foi para as Ilhas Malvinas que meses atrás acabavam de serem ocupadas definitivamente pelo império britânico. Lá Charles Darwin descreveu outro cachorro emparentado com o perro yaguán e o lobo guará, a raposa malvinense.

Tempo depois Fitroy voltou para Wulaia e viu que Jemmy tinha perdido tudo. Sua horta estava destruída, suas residência isolada e ele estava novamente sem ninguém. Aparentemente os selknam entendiam que a terra era deles e foi despojado de tudo. Depois de uma noite no navio e de Fitzroy prover roupa e até dinheiro, se despediram.

Ingleses e fueguinos compreenderam algo da cultura um do outro ? Há mapas com uma região chamada “Bahia Tekenika” que os habitantes não chamam assim. Inclusive é muito parecida com o “teke uneka” que significa “não entendi do que você está falando”.

Filtro Desenho do lago Fagnano Huayno

O capitão reformado Allen Gardiner continuou a iniciativa da South American Mission Society. Viajou várias vezes para as ilhas Malvinas junto com o capelão George Despard e se estabeleceu na ilha Keppel. Era um lugar afastado, mas seguro para um inglês em terras argentinas. Assim que estabelecido foi diversas vezes para Tierra del Fuego evangelizar fueguinos e procurou em Wulaia a Jemmy Button, a sua esperança de um elo entre os civilizados e cristãos ingleses e os ímpios e selvagens yámanas. 

Ele queria que Jemmy mudasse para a ilha Keppel nas Malvinas, mas Jemmy se recusou. Não ia abandonar sua família, morar em outra terra e arriscar tudo a uma viagem perigosa de 700 km até Malvinas só para ser evangelizado.

Em uma das viagens em que George Despard não foi, Allen Gardiner acabou sitiado por yámanas e a tripulação morreu de fome.

Despard não desistiu e em 1859 se estabeleceu na ilha Keppel junto com toda sua família, determinado a evangelizar os fueguinos. Na família estava seu filho adotivo Thomas Bridges, resgatado e educado pelo capelão. 

Novas expedições se aproximaram várias vezes da ilha Keppel até Wulaia e alguns dos habitantes foram até as Malvinas e voltaram. Mas numa expedição sem o capelão e liderada pela capelão Philip Garland o navio não voltou por cinco meses, e ficou claro que algo errado havia acontecido.

Depois do resgate do cozinheiro Cole, o único sobrevivente, Jemmy aceitou ir até a ilha Keppel a notificar o que tinha acontecido. Jemmy Button e seu irmão Tommy foram acusados de organizar o ataque e Tommy de matar pessoalmente um dos colonos. Os marinheiros que sobraram tiveram que fugir até morrer lentamente de fome. Jemmy negou as acusações mesmo que a explicação de serem selknam ser fraca. A congregação decidiu não acusá-los formalmente mas os ingleses deduziram que mesmo Jemmy já ter conhecido inclusive o rei da Inglaterra, não era confiável e rejeitava ser civilizado e evangelizado.

O que na época era estranho na traição de Jemmy hoje parece óbvio: ele sempre foi Orundellico, queria ter sua família, na sua terra, mas para os missionários ingleses isso não fazia sentido. Para eles era mais do que óbvio que viver em pecado era impensável, que deambular seminu não era vida e que Jemmy estava traindo os ingleses e sendo teimoso. E provavelmente se sentiu no direito de usufruir da inocência e a clara posição em desvantagem dos colonos, e as coisas fugiram do controle.

O capelão George Despard se deu por vencido. Sem o apoio de Jemmy era impensável voltar a Tierra del Fuego. Continuar sacrificando sua vida e a vida de sua família começou a pesar na consciência. Pediu permissão para executar sua decisão de voltar, e a South American Mission Society autorizou sua volta a Inglaterra.

Mas o seu filho adotivo Thomas Bridges, com 18 anos na época, decidiu ficar e mudou o rumo dessa história.

Thomas Bridges foi abandonado ainda bebê na cidade inglesa de Bristol em 1844. Foi acolhido pelo capelão Despard e recebeu o nome de Thomas Bridges. Thomas porque levava um T na pequena roupa bordada. Bridges por ter sido abandonado numa ponte. No mesmo ano foi fundada a South American Mission Society que teve como primeiro secretário a Allen Gardiner, um antigo militar inglês convencido em evangelizar os fueguinos, e que o capelão Despard iria anos depois integrar com esse objetivo.

O capelão Despard e sua família, junto com Thomas, suas duas irmãs e mais outro filho adotivo deixaram Inglaterra quando Thomas tinha aproximadamente 12 anos. Foram viver na ilha Keppel, uma ilha do norte das Ilhas Malvinas. Thomas passou a sua adolescência nessas ilhas.

Ficou convencido de que, antes de trazer sua cultura, precisava compreender a cultura dos yámanas. Para isso pegou lições do seu idioma com um casal de yámanas que estava na ilha, Okoko e sua mulher Gamela. Junto com eles escreveu o maior dicionário yámana-inglês que se tem notícia contendo até 32 mil palavras e que começou nessa época como estudo fonético baseado no sistema de Alexander John Ellis e levou a sua vida completando e aperfeiçoando. O reverendo Stirling substituiu Despard, e ele junto com Thomas Bridges passaram a visitar as imediações dos yámanas regularmente, levando mantimentos, falando sua língua e sempre em companhia de outros yámanas ya estabelecidos na ilha Keppel. 

Thomas imaginou que suas atitudes amigáveis mudaram o relacionamento, mas também temos que pensar que depois dos ataques os habitantes das ilhas certamente temiam uma represália e por isso se mostravam menos agressivos e permitiam que eles os visitassem. Ele então aproveitou para conhecer a cultura dos yámanas, sua comida, costumes e língua.

Lago Fagnano Hualo

Inclusive percebeu não haver evidências que sustentem a informação sobre o canibalismo dos fueguinos. Há evidência dos yámanas comendo sua vestimenta em momentos de fome. E pensou nas circunstâncias em que os jovens yámanas deram essas informações. Sequestrados, tendo vivido mais de um ano numa terra estranha, obrigados a fingir que agora eram civilizados. Importunados uma e outra vez na viagem de volta a suas terras.

Atardecer Tierra del Fuego

Não sabemos se foi uma informação baseada em um sucesso extremo que eles vivenciaram ou foi só para reforçar o que seus captores queriam ouvir.  Tanto FitzRoy quanto Charles Darwin descreveram essa conversa, e foi suficiente para que estes desbravadores do último canto do mundo sejam considerados canibais e rebaixados para os últimos lugares na escala imaginária de civilização entre os povos, mesmo não havendo qualquer outra evidência dessa prática.

Após algumas viagens Thomas Bridges e o reverendo Stirling decidiram que podiam fundar uma missão e após procurar vários lugares se decidiram por Ushuaia (‘baía no fundo’ em yagán falado por yámanas).

Ushuaia tem uma baía tranquila, sem ventos fortes do oceano, com boa profundidade para os barcos e longe das terras que os yámanas consideravam suas. Na verdade estavam em terras dos selknam, onas. Mesmo assim os yámanas assentados com os missionários não foram incomodados por selknam, talvez por terem sofrido epidemias pouco tempo atrás.

Ushuaia prosperou como missão anglicana e como assentamento para os yámanas. Thomas Bridges viajou para Bristol diversas vezes para comunicar o seu progresso e ainda conhecer uma jovem e casar. Enquanto isso os países que disputavam a região, Chile e Argentina, chegaram num acordo e separaram a Ilha Grande de Tierra del Fuego em dois: a parte oriental chilena e a ocidental argentina.

O governo argentino percebeu que o seu território mais austral tinha como centro uma missão anglicana e decidiu reocupar a região para que não acontecesse o mesmo que com as Ilhas Malvinas, nunca recuperadas. Enviou uma expedição liderada pelo comandante Augusto Lasserre que chegou num acordo pacífico com Thomas Bridges de trocar a Union Jack para colocar a bandeira argentina, tendo em troca a segurança de que a missão seria reconhecida e apoiada pelo governo, colocaria uma prefeitura, e ainda ajudou a terminar um farol e vários sinais para proteger na perigosa navegação entre as ilhas.

Matadores em Tierra del Fuego

Começaram a chegar colonos na região, tanto ingleses quanto argentinos. O que levou a tentativas de criar ovelhas na região, ao mesmo tempo que chegou uma epidemia que começou a dizimar os yámanas. Não chegaram à conclusão se era tifoidea pneumónica ou sarampo mas foi a primeira de várias doenças que matavam tantos yámanas, selknam e kawésqar que Thomas Bridges saía de manhã com outros colonos só para fazer valas e enterrar famílias inteiras.

A região era difícil e inóspita, mas anos depois houve do lado chileno a descoberta de ouro que levou a suspeita de que Tierra del Fuego fosse uma nova Alasca. 

A notícia do ouro atraiu pessoas como Julio Popper, José Menéndez e Alexander McLennan, El Chancho Colorado. 

Julio Popper, de origem romeno e família judaica, era um famoso ingeniero com uma boa experiência em mapeamento geográfico, que com 28 anos já tinha estudado em Paris, trabalhado em Constantinopla e vivido em New Orleans. Se interessou pelo ainda pouco explorado sul do continente, explorou e mapeou várias regiões dos lados chileno e argentino do arquipélago fueguino e fez uma entusiasmada conferência geográfica em Buenos Aires onde fez dois fabulosos anúncios.

O primeiro foi uma das descrições oficiais do perro yaguán como ‘inúteis para a caça’ e servindo só como provedores de calor dentro das tendas selknam. Essa noção permaneceu por quase 100 anos, e foi desmentida somente a partir dos anos 80 pela pesquisa histórica assim como nos anos 2000 foi identificada sua origem pelo rastreamento de DNA de canídeos da América do Sul.

E também anunciou a provável existência de uma nova região rica em ouro e apta para exploração, e com isso conseguiu uma autorização para a exploração da região.

Perro Yagán
Ilustração de perro yagán

A descrição do perro yaguán como inútil demonstra a observação despectiva e preconceituosa para com os yámanas e outros habitantes originários de Tierra del Fuego. Como seria possível que nômades seminus fossem um dos poucos exemplos do continente de domesticação de raposas ? 

E não foi uma observação leviana. Julio Popper era um renomado geólogo, que fez descrições detalhadas de jazimentos de minério na ilha a partir de descrições que os mesmos habitantes fizeram. Mas não teve cuidado com o cachorro esquisito dos onas.

Julio Popper criou sua milícia e passou a explorar as terras em busca de ouro. Em geral precisava fazer isso nas margens dos rios e nas areias dos canais, lugares de caça e pesca para os selk’nam, kawésqar, yámanas e haushs. Começou então o último capítulo do extermínio dos fueguinos, desta vez abatidos a tiro de escopeta. Os massacres eram constantes e houve ataques onde morreram famílias inteiras, seus pertences saqueados e sua terra ocupada. Os aborígenes que tinham sobrevivido às doenças estavam sendo massacrados pelas milícias contratadas pelos colonos, ou pelos próprios colonos.

Popper chegou a cunhar sua própria moeda para bancar a expedição, o popper, que foi uma moeda de circulação no sul do país, em paralelo ao peso nacional que circulava no resto da Argentina.

Popper e seus matadores. No centro um selk'nam morto.

Muitos aventureiros chegaram à ilha buscando ouro, e os ataques eram constantes, além da disputa por terras. Julio Popper morreu em Buenos Aires sob circunstâncias nunca explicadas, e o seu corpo desapareceu antes de ser possível uma autópsia.

Anos depois José Menéndez reclamou as terras que eram de Popper e passou a explorá-las. José Menéndez era um español de Asturias pouco ou mal instruído que foi para Cuba tentar a sorte. Na época a ilha de Cuba ainda era colônia espanhola. Depois para Uruguai onde casou, e finalmente se instalou no sul do continente na atual Punta Arenas, cidade do lado chileno em frente à Ilha Grande de Tierra del Fuego formando com a sua esposa uma das dinastias da ilha, os Menéndez Behety. Convidou a missão salesiana, que manteve por anos. Mas após a morte de Popper passou a ocupar as terras dele e reclamar outras, e ficou claro que a missão era uma desculpa para sua presença na ilha.

José Menéndez contratou um capanga para ajudá-lo com o seu rebanho de ovelhas e evitar os ataques dos selknam. Era Alexander Maclennan, um bronco escocês apelidado de ‘chancho colorado’. Para el ‘Chancho Colorado’ índio bom era índio morto.

Ele perseguia os selknam que tentavam pescar nas imediações de alguma das estâncias do patrão ou roubavam ovelhas. Certa vez ele propôs uma trégua, e fez um banquete regado a muito vinho. Quando os selknam dormiam ele e seus pistoleiros contratados realizaram uma das maiores massacres na ilha, com ao redor de 300 vítimas, famílias inteiras de selknam mortas a tiro de espingarda. Vários outros ataques e perseguições se seguiram até começo do século XX e os selknam que sobreviveram tinham como opção se refugiar na ilha Dawson, ou morrer nas mãos dos pistoleiros como o ‘Chancho Colorado’.

Os selknam praticamente desapareceram até antes da segunda década do século XX enquanto a mineração e a pesca ocuparam a ilha, que muitos anos depois se converteu numa zona franca e abrigou várias industrias.

Quase um século depois, já nos anos 80, Chile e Argentina assinaram nessa época um acordo final para resolver outras áreas disputadas no arquipélago o que também pacificou e estruturou o desenvolvimento e o estudo da região. A lenta chegada das democracias abriu novamente a pesquisa antropológica para a redescoberta dos povos originários.

O perro yagán assim como a raposa malvinense são variações extintas de canídeos da América do Sul.

raposa malvinense
Ilustração da raposa malvinense

Kawésqar, selknam, yamanas, haushs desapareceram quase totalmente até serem encontrados descendentes no início dos anos 2000 onde uma mudança na política do governo de integração e de releitura da história passou a valorizar as culturas originárias, no caso do sul continente, tarde demais.

Referências :

Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo – Charles Darwin

El último confín de la tierra – E. Lucas Bridges

Los pueblos indígenas que viven en Argentina – Lucía A. Golluscio
Edición electrónica: www.proinder.gov.ar

KAWÉSQAR – Seria introducción histórica y relatos de los pueblos originarios de Chile – Christine Gleisner, Sara Montt (organizadoras)

Episódio #12: Ushuaia feita de sangue

Ilustração do Beagle colorizada por efeitos

Esta é a estória do desaparecimento dos povos fueguinos. Este episódio faz parte de uma série de reflexões sobre civilização e barbárie.

Participação: Pedro Ivo Pellicano do Fonoaudiocast

Músicas utilizadas no episódio:

  • John Goss – O Saviour of the World
  • Cipriani Potter – Symphony No 6 in G minor

Trilhas especiais para o episódio :

A portada foi realizada utilizando a ilustração do Beagle por Robert Taylor Pritchett que foi capa nas primeiras edições do diário de viagem de Darwin.

A transcrição do episódio está aqui.

Ouça o episódio no AudioMack :

Também pode ouvir ele aqui :

VNP #04: Pimenta na panela

Bolsonaro sem máscara e Mandetta ao lado

Neste episódio tivemos que fazer uma retrospectiva econômica para lembrar que estamos com problema e não é de agora, e ainda tivemos que encontrar soluções para essa falsa dicotomia entre ficar vivos e fazer dinheiro.

Se quiser ouvir no AudioMack:

O episódio está também aqui :