Transcrição do episódio #14: Breve estrela da Graça

Um jovem de pouco mais de 23 anos chega na Big Apple no início dos anos noventa. Mesmo vindo do sul da Califórnia, sempre se sentiu um newyorker e já começa a respirar a cidade, as suas igrejas e muquifos prediletos, se mistura no Brooklin dos artistas, o submundo dos bares de shows underground.

Ele é Jeffrey Scott Buckley e assim que começou a fazer algum sucesso com a sua música decidiu que sua cidade seria New York. Trazia na sua mala alguns esboços de músicas suas, e muitas músicas da sua infância que o seu padrasto lhe apresentou: Yes, Genesis, o mundo do rock progressivo e principalmente Led Zeppelin.

Mas como está o rock nos anos noventa? Nos oitenta o rock foi destruído pelo punk, pelo reggae e depois pelo funk e rap. Tentou se reinventar, virou dançante, mas nada deu certo e essa foi a primeira de muitas mortes do rock. Os grandes nomes dos 70 se esconderam nos seus castelos. E já nos 90 os poucos representantes autênticos passaram a ser os jovens que surgem das garagens, dos pequenos bares, que agora conseguem com baixos orçamentos realizar concertos, gravar fitas improvisadas, CDs, gravar em estúdios caseiros. Querem dar uma voz autêntica, ganhar o suficiente para fazer sua arte sem deturpar seu toque pessoal.

Mas os noventa precisavam de mais simplicidade, mais realidade e performances que trouxessem novamente o que os anos oitenta, com seu pop técnico, tinha perdido. Aprender com os movimentos de rua como o punk, manter sua conexão com a realidade, e com a força de um rock menos pasteurizado. E assim nasce e se desenvolve o que será o grunge, as bandas de garagem, as gravações mais improvisadas das apresentações na rua e nos bares das cidades. Já em New York os músicos de rua tomam conta da cena rockeira da cidade, e Jeff respira esse ar de junk food, cerveja barata, microfones de karaokê, pombas sujas e amplificadores. Tudo era passageiro, nada interessava.

Jeff aluga um quarto qualquer e passa as semanas sentindo a cidade. Visita os bares, faz pequenas amizades e aos poucos o garoto californiano vai despindo sua pele do interior e trocando pela cor da grande maçã ao seu redor que o acolhe como mais um sonhador no lugar certo. 

Ele vinha de um berço de músicos: a sua mãe Mary era violoncelista, e seu padrasto Ron um amante do rock progressivo que sempre apoiou seus sonhos desde que ele disse que seria músico, desde comprar sua primeira guitarra como lhe apresentar aqueles que seriam seus ídolos como Al Di Meola e Led Zeppelin. O seu pai biológico Tim Buckley foi um importante músico do folk dos anos 60, mas se separou de sua mãe ainda grávida. Jeff contou mais tarde que só viu seu pai biológico Tim por alguns dias quando tinha 8 anos, então não o conheceu de fato.

Vendo Tim Buckley cantando e tocando guitarra as semelhanças são evidentes no tom da voz, mas eles tinham personalidades completamente diferentes, além de Jeff conseguir escalas mais altas com mais facilidade. Provavelmente na infância com sua mãe cresceu uma raiva sobre o pai ausente, mas o Jeff adulto já tinha perdoado o seu pai, e também não queria entrar em drogas pesadas como a heroína que levou seu pai a uma morte prematura em ‘75.

E por isso em “Mojo Pin” (que é o nome de uma dose de heroína) expressou seus medos e sua visão de ser um desperdício acabar a vida dessa forma. Já tinha descoberto, amado, odiado e perdoado o seu pai biológico antes de pisar New York, inclusive mudando seu nome de Scott Moorhead, seu nome do meio e o nome do seu padrasto (para sua família sempre foi Scottie), para Jeff Buckley talvez por um apelo mais vendável. 

A paixão de Jeff era colocar a guitarra no colo e tocar de forma sensual, afinadíssima e profunda nos pubs da cidade. Foi no Sin-é que o pessoal começou a reparar nele. O Sin-é, o seu bar predileto, onde sente a liberdade de criar seu espaço, deixa ele fazer suas performances com liberdade. 

Sua voz lembra a do seu pai e sua guitarra é indiscutivelmente única. Jeff passeia em tres escalas com facilidade e perfeição, suas performances intimistas e o timbre acurado e sensual de sua voz passeando em escalas como num transe devocional o destacam de outros performers rapidamente.

Ele faz algumas demonstrações nos pubs, conhece pessoas e assim chega até alguns locais onde as bandas se apresentam e dão seu show. Nos pubs Jeff improvisa versões das músicas do seu coração cheias do seu sentimento e sua guitarra profunda. Pode ser ‘Back in NY’ de Genesis, ‘Lilac Wine’ que Nina Simome imortalizou assim como versões cheias de sentimento como o Halleluyah de Leonard Cohen cantadas no solo com sua guitarra.

Alguns dos músicos das redondezas começam a rodeá-lo e ajudá-lo nas suas performances como Matt Johnson que será o seu baterista nessa época.

Jeff então é convidado a participar de uma homenagem ao seu pai Tim Buckley. Tim morreu de overdose de heroína em ‘75. Jeff o conheceu por pouco mais de uma semana ainda criança, e não tinha nenhuma afinidade com ele. Mesmo assim Jeff faz uma performance marcante na igreja de St Ann e Gary Lucas acaba reparando nele.

Gary Lucas era ex-membro da banda do Captain Beeffheart, o cara que fazia parceria nada menos que com Frank Zappa. Gary estava montando sua banda “God and Monsters”, sempre à procura de novos talentos nos pubs nova iorquinos. Começaram a tocar juntos, Jeff na banda de Gary Lucas, e Gary acompanhando suas performances nos bares. Jeff participou por um tempo da banda de Gary, mas depois acabou por se afastar da banda, mesmo que Gary continue o aconselhando por ver seu potencial como guitarrista, na sua voz, como jovem músico nos anos 90. Jeff sentia que havia um caldeirão dentro dele, e sentia que devia atender o seu chamado por apresentações e respirar o ar da cidade a sua volta. Buscava a proximidade e intimidade que os bares lhe davam, e não iria se sentir à vontade dentro da banda de Gary.

Mas foi o mesmo Gary Lucas que contatou conhecidos de gravadoras quando as performances no Sin-é já tinham consistência. Jeff conseguiu assim um contrato com a Columbia Records que lhe deu o norte para apresentar seu material e a confiança de colocar seu toque pessoal.

Desta época é o álbum que apresentou Jeff Buckley: ‘Live at Sin-é’, com performance onde os pratos, risadas e copos tinindo se misturam com batidas na guitarra de Jeff e sua banda. O álbum mistura pequenos monólogos de Jeff com suas performances intensas, que terminam com poucas e entusiasmadas palmas.

Sin-é significa algo como ‘isso aí’ em gaélico irlandês. Resume muito bem o tipo de performance de Jeff: limpa, autêntica, espirituosa. Musicalmente era o oposto ao grunge, mas no sentimento de entregar seu coração no palco não tinha nada a dever a um Kurt Cobain.

Jeff assim ia contra a tendência normal das bandas de fazer músicas fáceis de ouvir e LPs em estúdio. A intimidade do bar nova-iorquino tinha conquistado a alma de Jeff, que não tinha pressa para ficar famoso nem vontade de ser uma estrela do rock. Mas mesmo assim havia muito material e Gary organizou as gravações em estúdio com uma equipe altamente gabaritada. Desta época é o primeiro álbum puramente em estúdio e que vai lançar Jeff Buckley para os holofotes, entrevistas e o maravilhoso mundo da MTV: o álbum ‘Grace’.

Hoje ‘Grace’ está entre os 100 melhores álbuns de rock de todos os tempos e na época já era muito elogiado tanto pela crítica quanto por músicos como Paul McCartney ou Robert Plant.

O álbum abre com ‘Mojo Pin’, um lamento de um amor que se foi e a queda para mais uma dose. Há um pouco do destino suicida do seu pai na música, mas o que chama a atenção é o arranjo limpo, e o lado espirituoso e que sempre vai torcer pela vida e pelo amor que ficava plasmado nas letras de Jeff e na sua voz cristalina, pleno como um raio de sol do meio-dia. Os vibratos de Jeff são perfeitos e afinados, é um Jim Morrison afinado trinta anos depois.

E depois segue para ‘Grace’, seu hit mais famoso e onde está seu canto ao espírito humano, ao estado de graça que faz os atos humanos valerem a vida e a morte. 

Jeff foi sempre tão grato a Gary Lucas que lhe deu o crédito pelo arpeggio inicial e que separa a música nas suas tres partes, muito embora o resto seja o puro suco de Jeff Buckley. ‘Grace’ se converteu no seu hit e tem centenas de performances hoje de seus admiradores. Também resume o estado de espírito do disco que nos convida a se entregar ao gozo pleno do espírito livre e desimpedido que quer desfrutar da vida e assim reverenciá-la, viver um grande amor, um único amor, milhares de amores, uma persistência do amor através das gerações e isso é toda a música e o amor que seus pais lhe deram.

Talvez tenha herdado o pontilhado do seu pai biológico, mas herdou todo o amor pela música e pela vida que sua mãe e seu padrasto lhe deram, sua pequena Califórnia, seus irmãos e amigos de infância. Está tudo lá e essa é a graça alcançada.

Há várias outras músicas memoráveis no álbum, entre elas “Last Goodbye”, com guitarras que lembram violinos indianos, assim como “Dream Brother” onde a introdução é no dulcimer, uma guitarra medieval de 4 cordas. Há versões também como a versão de Halleluyah de Leonard Cohen e ‘Lilac Wine’ de James Shelton que Nina Simone imortalizou e foi recentemente performada pela Miley Cyrus. “Dream Brother” serviu para o Jeff fechar a estória com o seu pai como ‘Mojo Pin’. São músicas com uma intensidade única que o grunge tinha mas com uma qualidade musical e uma voz pura e bela que o grunge poucas vezes teve.

Há uma incessante busca em Jeff Buckley pela música e seu elo com o intocável, com o divino. Muito além de uma religião ou um deus, o divino é aquele sentimento de um amor tão puro que transcende a vida humana. A sua voz e guitarra tentavam preencher esse vazio e ao mesmo tempo revelavam a sua paixão pela imensidão e uma profunda tristeza nos seus mais sinceros ecos de sua alma.

Mas os problemas que Jeff já encarava são reais, e em Dream Brother deixa bem claro que é uma esperança vã esperar algo de quem não liga para você, como foi Tim Buckley para ele :

 

“Não sejas como aquele que me deixou tão velho,

não sejas como aquele que deixou para trás seu nome,

porque estão te esperando,

assim como eu esperei o meu,

e nunca ninguém veio”.

 

Muitos jovens abandonados em escolas, em ruelas e vilas viraram grandes nomes do grunge mas não conseguiram sair de um espiral de auto-destruição que os levou quase todos à ruína. Jeff encarou seus fantasmas de asas negras, olhou para o abismo, se redimiu e retornou pleno e com uma música reveladora e clara.

Mais tarde saiu outro álbum com material de suas apresentações na Europa antes da gravação do álbum em estúdio (Live from the Bataclan). Sai então de gira para promover o álbum, tocando geralmente em cafés ou pequenos teatros pelos EUA.

Nessas performances e essas buscas acaba por conhecer e entrevistar outro autor do divino e que se conecta musicalmente de uma forma muito especial com Jeff, Nusrat Fateh Ali Khan. Nusrat é herdeiro de uma linhagem de músicos qawwali que no caso ficou famoso com sua banda por começar a tocar em lugares fora do Paquistão.

Nos anos 90 crescia a world music e o mundo ocidental descobre uma infindável lista de músicos de outras partes do mundo. Entre eles, Nusrat Fateh impressionava platéias nos mais diversos festivais com sua voz profunda, a interpretação forte da música qawwali, as rápidas mudanças de tom e seu sentimento sempre à flor da pele.

A música qawwali é um canto devocional a Allah e sua criação. Por isso não há palavras ou letras porque Allah não pode ser representado, descrito ou mesmo nomeado. Isso pode ser interpretado também como que o criador do universo não pode ser definido ou encaixado em palavras, mas ficamos mais perto de entendê-lo quando reverenciamos e tentamos compreender a maravilha de sua criação.

As poucas letras ou frases das músicas vem de poemas sufis. Jeff conhecia esse sentimento, cantou músicas paquistanesas no Sin-é para levar o seu público a esse entendimento e tinha uma profunda admiração por Nusrat e sua música.

Mais tarde o já famoso músico pakistanês grava com Peter Gabriel fazendo parte da trilha musical do filme ‘A última tentação de Cristo’ de Martin Scorsese sobre o livro de Nikos Kazantzákis com uma versão de Jesus Cristo bem particular e claro que o ponto alto é a música da paixão de Cristo, uma paixão com um pakistanês e um senegalês nas vozes, duas vozes próximas ao sufis, à expressão musical do louvor no caso muçulmano, mas enfim, se não estamos falando do mesmo deus, estamos pelo menos falando da mesma devoção.

Jeff já percebe que tem material para um novo álbum. Através da Columbia entra em contato com Tom Verlaine (líder da banda pré-punk dos anos 70 ‘Television’) e começam a planejar a produção de um novo álbum com o título prévio de ‘My sweetheart the drunk’. Fizeram as gravações nos estúdios em Memphis, a terra de Elvis. Tom Verlaine tinha um toque especial para afinar guitarras e deixá-las com um som especial, mas não tinha muita experiência em produção e as gravações com Jeff eram tensas.

`Grace` já tinha saído com uma qualidade monstruosa para um primeiro álbum e agora queria mostrar até onde podia chegar. Suas composições são complexas e suas letras mais diretas sobre amor perdido ou um distanciamento romântico.

É nesta época que grava uma versão definitiva de uma das músicas que fazia um enorme sucesso nos shows: Vancouver. A música é composta como algumas outras junto com Michael Tighe, que também compôs músicas para Liam Gallagher e toca a guitarra no álbum de estréia de Adele. É uma composição típica dos noventa porém complexa e nos convida a flutuar com a suavidade da voz de Jeff.

Vancouver” tem uma complexidade rítmica inusual que as guitarras só embelezam, e uma beleza única para essa época.

É dessa época também “The Sky is a Landfill” que também mostra um corpo e uma consistência únicos. 

Também grava uma versão quase onírica de uma escura música de Genesis da sua época de progressivo “Back in NYC” que abre a segunda parte da quase ópera rock “The lamb lis down on Broadway”.

E também outra música do qual tinha só esboços e que puxam um lado profundo e romântico que aparecia nos shows mas não no estúdio, “Everybody Here Wants You”, que poderia facilmente ser seu novo hit. Estava ótimo. Mas algo ainda não o convencia, algo estava errado.

Fez toda uma sessão de gravações e ainda se apresentava no interior dos Estados Unidos. 

Depois das gravações das quais ainda não estava satisfeito se tomou uns dias de férias. Trabalhou sozinho, sabe-se lá em quê. Semanas depois reagendou entusiasmado com a banda para voltar a trabalhar num material novo para o álbum.

Enquanto a banda estava chegando novamente em Memphis, Jeff estava passeando com um amigo nos arredores e decidiu tomar um banho no Wolf River. Desceu o rio cantarolando ‘Whole Lotta Love” de Led Zeppelin.

Mas não voltou. Seu corpo foi encontrado 8 dias depois, em 6 de junho de 97, vítima de um afogamento acidental, sem drogas no seu corpo mais do que litros de música, gotas mortais de amor nas suas letras e deixando o coração de todos feito pedaços. Curiosamente Nusrat Fateh Ali Khan irá falecer em agosto do mesmo ano.

Meses depois o material foi publicado como ‘Sketches for my sweetheart the drunk’ como último álbum inacabado e póstumo deste jovem de trinta anos, vítima do seu amor pela música e com uma carreira brilhante interrompida pela fatalidade de nossas breves vidas.

Ao redor dos anos, ’Grace’ se converteu num álbum reverenciado e influenciador de bandas e cantores ao redor do mundo. Seu estilo profundo e intenso influencia jovens vozes geração a geração e vai nos ajudar a reverenciar a vida para todo o sempre.

 

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Por Outro Lado

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