Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

Transcrição do episódio #16: La Grasa

Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

La Grasa

“Adiós Sui Generis’ no clássico estádio Luna Park não foi o primeiro concerto de rock argentino. Mas foi o mais falado e que na perspectiva mudou o olhar para o rock tanto da produção fonográfica quanto das mídias tradicionais da época, o rádio e a TV. 

Curiosamente era a despedida do grupo liderado por Charly García e Nito Mestre -faziam parte dele também Juan Álvarez e Rinaldo Rafanelli. A pergunta entre os jovens era ‘como assim? Sui Generis está se despedindo?’ Para muitos Sui Generis era a melhor novidade do ano, mas já levava 6 anos na estrada, e para Charly já tinha acabado, queria seguir outros projetos.

Naquela época passavam meses e até anos para um sucesso se consolidar, muito mais num país atravessando repressão policial e golpe após golpe de estado, quando a cultura era um inimigo do estado.

Um dos grandes clássicos de Sui Generis é ‘Confissões de inverno’ que conta a estória de um garoto sem trabalho que passa frio e fome, que apanha da polícia mas tem esperança das coisas melhorarem. 

Muitos jovens se identificaram imediatamente com o grupo por esse tipo de rima popular cantada de forma rasgada de um folk autêntico e sulamericano.

As letras de Sui Generis questionavam a sociedade conservadora da época desde o olhar de dois adolescentes dessa mesma sociedade. Uma letra clássica dessa ótica está na forma do Natalio Ruiz, o homem do chapéu grisalho, que de acordo com a sua classe social (sua estirpe) não se atreve a pedir a mão de sua amada, escreve poemas de rimas antigas, e acaba morto para preencher mais um jazigo na Recoleta, o cemitério da alta sociedade. Outra é “Aprendizagem”, de rimas simples mas diretas, que descreve as mesmas experiências de escola que parecem um The Wall mas do outro lado do Atlântico :

“Aprendi a ser formal e cortês 

cortando o cabelo uma vez por mes”


“e tive muitos professores dos quais aprender,

só conheciam sua ciência e o dever

ninguém se atreveu a dizer uma verdade

o medo sempre foi bobo”

Carlos García Moreno, conhecido como Charly García ou só Charly, foi desde cedo um prodígio e sua boa posição social ajudou a que tivesse grandes mestres na música. A influência de sua mãe -que tinha um programa de música folclórica- fez com que conhecesse desde muito jovem grandes nomes da música folclórica como Eduardo Falú e Mercedes Sosa. Eles mesmos recomendaram que estudara música porque tinha ouvido perfeito, ou seja, reconhecia as notas só de ouvi-las, e assim acabou num famoso conservatório musical e saiu graduado e elogiado. Mesmo com uma forte formação clássica desde cedo entra na música ‘popular’ da época, o rock dos anos sessenta.

Em Sui Generis o já mostrava o poder de síntese nas suas letras, descrevendo em um parágrafo como foi sua experiência no serviço militar obrigatório no coro de “Botas Locas“:

“Eu fiz parte de um exército louco,

tinha vinte anos e o cabelo bem curto

mas meu amigo houve uma confusão

porque para eles o louco era eu”

 

O pior que além da loucura da lógica militar Charly menciona tangencialmente um acontecimento real: ele se fez expulsar do quartel fazendo uma cena com um cadáver alegando assim insanidade.

Mas Charly também tinha um mar de composições instrumentais que precisava expandir e no vivo fica claro com uma breve música. Um pouco de música clássica, um pouco de jazz, bastante de uma necessidade de um rock novo que na época era chamado de progressivo.

Fica evidente no ‘Un hada, un cisne’, uma música que descreve o amor impossível entre uma fada e um cisne, que no vivo se transforma numa peça de jazz de 27 minutos, ou na “Fuga do Paralítico” que também se expande no ao vivo. É um Charly que o público desconhece mas que claramente quer navegar mais perto do rock progressivo da época, afinal estamos em 1975 e bandas como Genesis, Yes e Deep Purple moram já no seu coração.

O mundo das baladas folk com alguma protesta tinham ficado para atŕas, ele já tinha conseguido alguns amplificadores e sintetizadores, nada fáceis de conseguir naquela época.

Após a dissolução amigável do Sui Generis, Charly tinha tanto material ainda no formato de Sui Generis que deu para montar um ‘mini-supergrupo’ de amigos chamado Porsuigieco: a formação era Raúl Porchetto e sua banda, os membros do Sui Generis, León Gieco e María Rosa Yorio, na época casada com Charly.

Alugaram todos uma casa, compuseram as músicas, arranjaram as já prontas e fizeram um único álbum de um cancioneiro meio hippie, meio folk.

María Rosa Yorio canta a belíssima ‘Quiero ser, quiero entrar’ que é a música de amor de Charly mais intensa :

“Me convida a ver tua historia

Não falarei que já a sei

me esconde nas memórias

quero ver, quero viver”

Ela já estava grávida do Migue, o único filho de Charly.

Ela também canta em dueto com Nito uma parceira entre León Gieco e Charly chamada “Todos los caballos blancos” nesse sentimento hippie com uma forte inspiração do folk americano, e ainda há outro folk de Gieco com o arranjo de Charly “La colina de la vida”. É uma época de músicas diretas de folk com ritmos onde dá para sentir os vento no cabelo e a vida na natureza. A vontade era de viver plenamente uma vida natural e sem limites.

Raul Porchetto era mais ciumento com suas composições, mas Gieco convida seu companheiro e ídolo Charly a modificar suas composições e com isso há várias colaborações riquíssimas com o tom folk de Gieco e os arranjos lindos e as letras afiadas de Charly como “Viejo solo y borracho” (velho só e bèbado) que entre outras ‘verdades de um velho que ninguém ouve” diz “Cristo foi morto por dizer que o lugar mais longíquo é este que estamos pisando“ ou “todos os dias caem para morrer sobre a terra e nunca mais se levantar”. É a mais pura filosofia hippie de aproveitar cada dia porque nunca será como hoje.

Sui Generis tinha sido ‘acompanhado’ pelo Comfer, a censura da época mas que no caso de Sui Generis não chegou a interferir diretamente pelo medo de uma repercussão negativa. Isso criou uma falsa aura de invencibilidade entorno de Charly, e León Gieco propôs que ele cantasse uma música que ele tinha certeza que seria censurada. Charly se recusou, e talvez com peso na consciência, presenteou seu amigo com uma música que tinha cantado somente ao vivo, “El fantasma de Canterville”. Tinha referências ao famoso conto de Oscar Wilde mas também ao estado de medo e de desaparecidos políticos dessa época conturbada. León Gieco cantou a música no seu disco solo mas teve que fazer ‘adaptações’ para poder publicá-la. Só que no PorSuiGieco “El fantasma de Canterville” foi proibida de aparecer no álbum e outra música foi incluída a último momento.

Charly ficou putaço e nunca aceitou essa censura, achava infame alguém querer alterar sua obra. Mas enquanto Charly se revoltava por uma única obra censurada, muitos de seus amigos tinham ficado na prisão e muitos outros já tinham fugido.

Muitos músicos precisavam prestar depoimento após apresentações, ou apanhavam regularmente da polícia, ou eram diretamente ameaçados ou ‘convidados’ a sair do país, tanto na Argentina quanto em outros países sudacas, como o grupo chileno Inti-Illimani que estava na Europa quando houve o golpe no Chile e nunca mais puderam voltar lá.

Billy Bond, um dos fundadores do rock argentino, do Billy Bond y la pesada del rock & roll, organizou o primeiro grande evento musical no Luna Park. Mas o show terminou numa confusão quando a polícia tentou expulsar algumas pessoas e o restante do público revidou e a polícia apanhou feio. Depois disso Billy Bond disse que achava ser seguido e tempo depois foi para o Brasil, virou produtor musical, fez parte do Joelho de Porco e nunca mais voltou a trabalhar na Argentina.

Depois do intervalo do paz e amor hippie do folk, Charly voltou para a cidade para tentar realizar o seu sonho: uma banda de rock progressivo mas com um tom sulamericano, argentino, algo único que os seus ídolos ingleses nunca poderiam fazer.

Assim forma “La máquina de hacer pájaros” com Carlos Cutaia, o arranjador que conseguiu adaptar com perfeição o musical Hair na Argentina e que estava muito antenado com a instrumentação das bandas progressivas da época. Na batera estava Oscar Moro de Color Humano e Pappo’s Blues, o proto metal argentino.

La máquina de hacer pájaros” é esse convite a uma poesia, que é o que resta fazer. Por isso seu segundo álbum se chama “Filmes” porque a realidade massacrante faz com que o único que tem por fazer é ver filmes -e esse é o título de uma das músicas do álbum.

“La máquina” é esse convite a desfrutar de um minuto de poesia diante da opressão do dia de um governo que não deixava ninguém nem respirar.

A banda foi também um feliz experimento para muitos músicos que já apostavam numa complexidade da cena do rock, e Charly tinha essa magia de realizar composições complexas, boas de ouvir e que chegavam a todos os públicos.

Com “La máquina” consegue a complexidade instrumental que estava procurando, com suas letras com queixas da opressão americana como em “Como mata el viento norte”, o vento norte sendo a influência norte americana apoiando ditaduras que condenam o continente ao atraso e o ostracismo mundial e que lentamente nos mata.

Por um lado quer respirar um pouco em paz:

“Não quero saber nada

com a miséria do mundo atual

hoje é um bom dia

há algo de paz

a terra é nossa irmã”

Mas Charly sabe que mora numa ditadura que o isola do resto do mundo:

“Marte não cede 

ao poder do sol

Venus nos apaixona

a lua sabe de sua atração

enquanto isso morremos aqui

com os olhos fechados

sem conseguir ver um palmo de nosso nariz”

Também tem a música ‘Hipercandombe’. ‘candombe’ é uma expressão musical e cultural uruguaia dos escravos vindos de Angola e que faz parte da miscigenação musical dos ritmos africanos com os da América do Sul. 

E Charly usa um novo candombe já rockeiro para descrever o destino do jovem médio jovens de evitar a polícia, do medo de ter cabelo comprido ou simplesmente de existir num ambiente militarizado e opressivo :

“Quando a noite te deixa desconfiado indo perto do rio

a paranoia é talvez nosso pior inimigo

cobres tua cara e teu cabelo também como se tivesses frio

mas na verdade você está tentando escapar da confusão”

A crítica acostumada com um Charly rebelde mas hippie ou folk e não no rock progressivo não entendeu bem ‘La Máquina’ no início; algumas das críticas apontavam que La Máquina era muito hermético. Musicalmente chegava para os músicos ou os críticos, mas não para o grande público. Charly era um músico formando sua identidade e entendeu o recado mesmo que sua relação com a imprensa fosse sempre conflitante: a verdade era que o Spinetta Jade e para o seu líder El Flaco Spinetta estava tudo certo ser um pouco hermético ou fazer uma música não tão comercial, mas para Charly o público geral precisava entendê-lo.

Nessa busca Charly lá por 78 sem querer monta outro supergrupo. Fizeram um concerto (“Festival del amor”), e com o dinheiro arrecadado Charly vai com sua namorada brasileira para Búzios e convence a David Lebón a tocarem juntos.

David Lebón tinha começado cedo ‘esse negócio do rock’. Viveu com os pais nos EUA dos 8 aos 17 anos, e ao seu pedido, a sua mãe o levou a um concerto dos Beatles ainda criança, e decidiu que era isso que queria fazer. David nunca parou de tentar ser músico, participando de tudo quanto era banda na sua adolescência já novamente em Buenos Aires: foi baterista em Color Humano, participou de várias bandas com Luis Alberto Spinetta, El Flaco, e na última reencarnação, Pescado Rabioso, estava como baixista.

Charly e David ficaram alguns meses em Búzios até chegarem numa sintonia, e daí alugaram uma casa em São Paulo em frente ao Jardim Botânico, prontos para montar a base da banda.

Chamam Oscar Moro que tinha feito as bateras da Máquina. Moro recomendou um baixista que ele tinha ouvido no grupo de rock progressivo Alas: Pedro Aznar, um meninão de 17 anos que já tinha fundado outra banda progressiva, Madre Atómica (impossível não ver a referência a Pink Floyd embora a banda esteja mais para um jazz-rock).

Um dos pontos que atraiu Charly era que Pedro Aznar gostava de misturar rock com tango, que era algo que Charly também queria fazer. Eram as idéias de fazer o rock nacional, de ter um toque que outros não teriam, de criar uma sonoridade especial.

No começo Pedro teve que conquistar seus amigos muito mais rodados mas a escolha acertada fica evidente no solo da primeira música do primeiro álbum da banda : Eiti-Leda

Eiti-Leda já existia e se chamava ’Nena’, mas a versão anterior foi finalmente sepultada por esta versão muito mais elaborada e crescida.

Serugiranística, e assim como outras músicas desse álbum e também do nome da banda, todos eles foram feitos escolhendo sílabas aleatoriamente mas com uma força nova e total. A banda era Serú Girán.

Existe uma música chamada Serú Girán todas com palavras inventadas por Charly e Lebón onde entre “cosmigonon” ou “paralía” estão “Eiti-Leda” (talvez de Eighty Letters ?) e Seminare.

Nesse primeiro álbum há outra composição de Charly com um quase homónimo afro-argentino, Carlos Alberto García López, el Negro García, um exímio guitarrista sem a fama de Charly mas que ele sempre valorizou e que depois o acompanhou na sua carreira solo. A música é Seminare e é um dos hinos do rock argentino que ficou eternizada na voz de Lebón.

Charly queria uma sonoridade e musicalização de rock progressivo, mas sua lírica era de gerar canções. Ainda a proposta musical era similar a La Màquina de Hacer Pájaros: fazer poesia, uma música plena, lírica no desastre cultural da ditadura. Segundo o grupo o pais precisava de poesía, mas o país estava imerso num problema muito mais concreto, muito mais básico.

Essa foi a interpretação comum: não conversava com a realidade do país. Por mais que fosse evidente o nível elevado das composições elaboradas, elas não conversavam com o ouvinte normal de rock, com o ouvinte de blues, com o ouvinte de tango, com o cara que comia um prato de massa e tomava um vinho barato, quem estava sofrendo uma ditadura ferrenha e mais um inverno econômico.

A Expreso Imaginario, uma das grandes revistas underground de cultura e música, fez uma crítica devastadora. Segundo a crítica pareciam dublês tocando, parecia que sua alma tinha sido roubada, alheios à realidade, muito embebidos da felicidade de Búzios.

Das discussões e conclusões da banda, começaram a surgir novas composições. Algumas delas estavam escritas como Noche de Perros mas foram totalmente reescritas e tocadas num ambiente mais hostil, mais cru da realidade de tensão criativa.

Assim nasceu o grande álbum de Seru Girán: La Grasa de las Capitales.

La grasa de las capitales é um canto ao grande problema argentino: as capitais concentram a população que nunca conversou com o resto do país, ficou brega e sem alma. O que importam teus ideais? Nada. A breguice e a mesmice dominaram tudo. E numa ditadura, como não é possível falar de temas importantes, as revistas publicam só farándula, só vida de artista.

Procurar a saída econômica fácil já fizemos, mas chega né?

A capa do álbum é uma paródia a uma Caras argentina da época. Na capa, um Pedro de gel no cabelo, terno e gravata, David Lebón de futebolista, Charly de frentista e Moro de açougueiro ilustram títulos falsos como esse tipo de revista fútil que costuma acompanhar a vida dos famosos.

Ao invés de notícias de verdade, a breguice vazia da vida dos artistas. A vida de Caras. Os pratos referidos dos famosos. Os namoros vazios dos atorzinhos de plantão.

As mudanças de ritmo e os riffs complexos dão lugar a melodias que nos levam a pensar. Onde estamos? Onde queremos estar? A urgência nos domina e percebemos que essa correria da cidade nos engana, é uma ilusão de urgência que só leva a mais um dia fútil para ganhar dinheiro para o patrão. A condução da base Moro-Aznar lhe dá o peso, a melodia dos pianos guitarras urgentes simulam essa pressa da cidade em chegar a lugar nenhum.

Ganhar o pão e vinho, ganhar o dinheiro do dia toda vez é uma ilusão de ir e vir que nos cega e não nos deixa ver que é uma corrida do rato num labirinto viciado. De que adianta seguir correndo? 

Chega de dançar nesse pool dancing do desespero.

A banda conseguiu aqui uma maturidade e integração que La Máquina não tinha e consegue se conectar com o público de uma forma nunca tinha acontecido: um rock elaborado, com letras atualizadas com a realidade opressiva e que o público conseguia cantar e ainda servia a todas as gerações.

 

O álbum segue com um lamento só na guitarra, São Francisco e o lobo confessando que após os homens o maltratarem e ‘abrirem feridas que jamais irão se curar’. Também há uma composição do Pedro Aznar, longa e um pouco descolada do álbum, complexa mas incompreendida. ‘O medo será a minha casa’.

A próxima música arranca a pele de uma pessoa dissimulada que não esconde o seu desprezo sobre o seu companheiro e Charly o compara à dor do cão Andalus de Buñuel.

As músicas nascem de melodias de Charly Garcia e tem colaboração conjunta de todos, como “Frecuencia Modulada” que descreve a rádio alienada que tanto conhecemos :

“Se na música que escutas não há vida,

se a letra não tem inspiração

mesmo aumentando o volume não há força

são os tempos que estão ocos de emoção

 

Hoje que estás no nada

se fecha em você mesma

e dá uma larga olhada

algo dentro teu tem que ter soar!”

Levanta a mão quem vê o mesmo movimento no Spotify !

Todos na banda deixam Pedro Aznar expressar a última palavra do baixo nas músicas.  Lebón passou a pontear e Aznar e marcar tanto os ritmos quanto a melodia, dando uma profundidade inéditas no rock. As guitarras são ponteios para reforçar um sentimento, ou rítmicas e o baixo aparece muito mais dando um peso único à sonoridade da banda.

O pessimismo lírico de Charly parece rodear o clássico e se apoia muito num tom do tango melancólico como “Os sobreviventes”. É quase um conto de zumbis onde os ‘sobreviventes’ estão cansados de tanto andar.

A letra já dá uma tônica de pessoas de eternos alheios imigrantes na sua terra e com isso uniu todos. Por que? Os argentinos se sentiam no seu hogar por acaso? Aqui a lírica de Charly se alia à musicalidade do grupo que compreende o sentimento lúgubre e potente dos sobreviventes a um sistema que oprime. Não há uma palavra mas a mensagem é completamente entendida.

Uma música nascida nas noites tristes de Búzios onde eles se sentiam pobres e famintos é “Noche de perros”. A intenção de um rock tangueiro sugerido em “Os sobreviventes” tem aqui a sua melhor expressão.

“Esta oscuridão

Esta noite de cão

Esta solidão

Que rápido vai te matar

Caminhas perdido nas ruas

Que costumavas andar”

Teu chão é alheio, tuas ruas são alheias. E tem que pedir dinheiro, você está só e sem ajuda.

A noite de cão é a longa noite de penúria numa ditadura que não deixa respirar. Uma longa noite que já levava mais de 5 anos e teria mais 5 para acabar.

“Eu já te vejo entre os carros pedindo perdão

o meu olhar tem toda a tua dor

A lírica rockeira misturada com um tango rasgado reclama centenas de anos de injustiças. Pois o tango na França pode ser relação e um namoro rebelde, mas na América do Sul tango é sofrimento, tango é dor! É algo que a banda vai explorar outras vezes: o sentimento de dor do país que nunca foi a partir da tristeza do tango junto com a potência do rock.

A confissão é de uma escuridão da alma. Essa solidão, esse escuro , era onde a sociedade estava, dentro de um tango noir que perpetuava a dor de milhares de desaparecidos, de milhares de vozes sem voz. A noite de cão para Argentina duraria mais alguns anos ainda.

“você não está só

se sabe que está muito só,

você não está cego 

se não vê onde não há nada”

O rock, o tango todos eles choram num blues rasgado e este sentimento será o que Seru Giran levará em outras músicas e que vai representar o sentimento de impotência e ao mesmo tempo de lirismo sobre a sua situação calamitosa.

Fã de Jaco Pastorius, Pedro Aznar criou o seu baixo frestless usando o baixo FAIM (Fábrica Argentina de Instrumentos Musicales) que ganhou quando tinha 5 anos. Arrancou ele próprio os trastes e foi com ele que tocou no primeiro álbum. Depois chamou um luthier amigo que restaurou o baixo colocando um braço novo também sem trastes, e é com ele que toca no La Grasa.

E termina com um lamento ao Hollywood que definha na sua própria futilidade. 

La Grasa, perfeitamente executado, contestador, foi uma machadada de rock nas nossas cabeças. FOi o álbum definitivo de Seru Girán, que teve outros álbuns depois, até melhor acabados, mas nunca com essa força nascida da impotência e ao mesmo tempo de tesão de toda uma nação.

O grupo acabou 4 anos depois com a saída de Pedro Aznar e a vontade de Charly de mudar novamente sua sonoridade, mas nunca mais participou de super grupos como Serú Girán.

 

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Por Outro Lado

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