Transcrição do Episódio #17: Quando o PMRC enfiou o PAL

 

 

Um dos péssimos atores do western dos anos 40, Ronald Reagan saboreava o seu auge na política no final de 1984.

 

Presidente de 1947 até 1954 do maior sindicato de atores, governador da Califórnia nos anos sessenta pelo partido republicano. Ganha a primeira presidência em 1981 e é reeleito no final de 84.

 

Mas também nesse mesmo final de 84 está também no seu auge um redemoinho dançante de guitarras loucas chamado Prince. Prince sempre teve muita música ao redor. Seus pais eram do mundo do jazz, tinha primos cantores, e desde cedo tocava todos os instrumentos de suas composições. No começo dos oitenta consegue desenvolver um timbre único, e cria uma mistura de R&B, música eletrônica e rock que, na falta de outro rótulo, chamamos de ‘pop minneapolis’, uma das bases do pop dos anos oitenta.

 

Na música ‘Computer Blue’, Wendy ‘fala’ como o computador azul com Lisa.

 

Assim cria a aura de um computador frio dentro de uma música dançante e tensa ao mesmo tempo.

Então em 1984 Prince renova o R&B deixando ele dançante e pop enquanto Reagan governa com apoio da bancada evangélica americana, pelos conservadores no congresso, navegando no sucesso econômico. Ele usa o anticomunismo para impulsionar um aumento do gasto militar baseado no patriotismo e nas ideias conservadoras em voga na época. Batiza a Rússia soviética de  ‘império do mal’ e afirma que deve ser combatido para manter o american way of life. O objetivo era vencer a guerra fria, combatendo por debaixo do pano qualquer força favorável ao bloco soviético que esteja nos domínios ocidentais.

 

No final de 1984 Prince & The Revolution tem seu álbum de estréia “Purple Rain”. Os assuntos das músicas são, entre outros, a busca da personalidade do protagonista (The Kid) numa sexualidade mais livre num mundo onde tudo pode-se comprar ou fabricar. Prince compôs quase todas as músicas e algumas na colaboração das parceiras Wendy Melvoin, Lisa Coleman e Apollonia Kotero.

 

Prince já era um exímio guitarrista, além de se converter num performer único. E tinha uma voz cativante com a que conseguia gritar, cantar e manter notas altíssimas com uma naturalidade ímpar. Ainda em cada música questiona de uma forma muito pessoal nossa relação com familiares, com o sexo, com a tecnologia.

 

Eram muitas novidades para uma música pop: guitarras editadas passadas por sintetizadores, baterias eletrônicas, as letras sensuais, tudo editado de uma forma coesa e num som único, moderno e cativante. Prince insere solos virtuosos de guitarra nos momentos mais inusitados, seus vídeos eram danças elaboradas e sensuais e Purple Rain rendeu ainda um filme. Foi um enorme sucesso entre os jovens e embora o filme nem tanto, o álbum foi um sucesso de crítica e influencia cantores até hoje.

 

Cada música tem uma estrutura onde Prince consegue encaixar um momento de um diálogo instrumental, muitas vezes com performances na guitarra, momentos supremos no sintetizadores ou riffs acompanhados de baterias eletrônicas.

 

Enquanto isso, um Reagan confiante continuava indo cada vez mais longe no seu anticomunismo: no anterior mandato já houveram acusações de apoiar uma guerrilha de direita que tentava derrubar o governo sandinista na Nicarágua, os Contras. Depois de reeleito conseguiu autorizar um valor de 30 milhões para entregar armas para o Irã libertar reféns americanos. A ideia era trocar armas pelos reféns.

 

Só que 18 dos 30 milhões foram utilizados na verdade para financiar os Contras, um comando guerrilheiro de direita que tentava derrubar o governo nicaragüense sandinista. As provas das investigações posteriores mostraram que a CIA os financiou mesmo sabendo que eles usavam também o tráfico de drogas para financiar sua campanha. Na época Reagan negava tudo isso, e estava tudo OK.

 

Na sua bolha de felicidade e progresso, Tipper Gore,  como muitas mães ianques ao redor do país,  comprou Purple Rain para Karenna, sua filha de 11 anos. Era um disco popular. Ouvir Prince era descolado.

Tipper Gore era esposa do Al Gore, nessa época um importante membro da casa legislativa americana pelo Tennessee, e que depois seria o vice do presidente Bill Clinton. Al Gore também era descolado, tivera uma banda de rock na juventude e gostava desse novo rock influenciado pelo pop.

Não sabemos o que aconteceu nos aposentos dos Gore. Eu imagino a Karenna ouvindo no seu quarto e cantando junto com Prince :

 

I knew a girl named Nikki

I guess you could say she was a sex fiend

I met her in a hotel lobby

Masturbating with a magazine

She said how’d you like to waste some time?

And I could not resist when I saw little Nikki grind

 

Talvez sua mãe viu sua filha dançando e começou a prestar atenção na letra. Ou talvez a própria Karenna estivesse cantando com o Prince.

 

  • Que disco legal, mãe, obrigado! O que é se masturbar com uma revista ?
  • Eu quero também masturbar com a revista mãe! – diz a filha Krsitin de 5 anos

 

Tipper não deve ter acreditado nos seus ouvidos. A letra continuava deliciosa descrevendo uma Nikki super desinibida, indecente, provocadora, que abria portas que ela desesperadamente precisava…

 

A Tipper advogada deve ter procurado a noite toda por leis, convenções na mídia e descoberto que nenhuma legislação podia proibir mr Prince de escrever e publicar tal música. Prince ou outro músico podiam escrever letras com essas palavras, e nada podia ser feito. Gol para a primeira emenda que diz :

 

“O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos.”

 

Não importava que a música continha uma estrutura fabulosa de canção e de um redemoinho de baterias eletrônicas, guitarras que pareciam metralhadoras, que um Prince ensandecido cantava dançando entre oitavas com uma facilidade espantosa.

 

Mas existe outra possibilidade: as filhas de Tipper sequer terem se importado com a letra, e toda a sacanagem, balbúrdia e sexo proibido acontecerem somente na sua cabeça conservadora e amedrontada.

 

Ela tinha comprado o álbum para a filha e 

ficou horrorizada 

com uma porcaria de rima

com ‘se masturbar com uma revista’

 

Não ouvi o riff com guitarras dialogando com um sintetizadores, nem seu crescendo com a bateria eletrônica vibrando ?

 

Prince, para concluir o tripé do inferno, acaba a música com uma saudação, porém numa fala ao contrário, provavelmente para que Tipper Gore e outras mães imaginem uma invocação do mal. A saudação ainda é super positiva e diz que “o Senhor está vindo”. Mas porque Prince gravou a mensagem ao contrário? Não seria então o contrário, que o Senhor dele é o Senhor das trevas ?

 

Prince sempre foi evasivo ao explicar as suas letras e se servia de provocações para se promover, então deixou como sempre tudo no ar.

Mas Tipper Gore não podia deixar barato. Os anos 80 precisavam parar essa onda ‘libertina’. Como assim letras de ‘colocar o meu amor em você’ como do AC/DC ? Como assim ‘Me coma vivo’ do Judas Priest ?

 

Então ela e sua legião de mães conservadoras contra a libertinagem do rock fundaram o que seria o PMRC, Parents Music Resource Center ou Centro de Recursos Musicais para Pais. A proposta pública era discutir sobre a qualidade das músicas e teor das letras ouvidas por menores. Por trás disso, o interesse era a de dar ferramentas para proibir, banir ou impedir que essas músicas proliferem.

 

O núcleo duro era composto por quatro mães -e principalmente esposas de homens da política:

 

Além de Tipper Gore formavam parte: Susan Baker, esposa do James Baker, secretário do tesouro; Pam Howar, esposa de um famoso corretor de imóveis de Washington, Raymond Howar; e Sally Nevius, esposa do presidente do Conselho da cidade de Washington John Nevius.

 

Elas eram esposas de parlamentares e ‘gente de bem’ de Washington e ficaram conhecidas como as ‘Washington Wives’. Não era difícil para elas utilizar a influência na sua causa.

 

A primeira ação do ‘movimento’ foi listar 15 músicas ‘sujas’. Várias músicas que ficaram conhecidas como ‘As 15 nojentas’ foram marcadas pelo rótulo de conter ‘sexo’, outras continham ‘violência’ ou ‘mensagens demoníacas’ e outros rótulos como ‘apologia às drogas’.

 

1 Prince – “Darling Nikki” – Sex/masturbation

2 Sheena Easton – “Sugar Walls” – Sex

3 Judas Priest – “Eat Me Alive” – Sex/violence

4 Vanity – “Strap On ‘Robbie Baby'” – Sex

5 Mötley Crüe – “Bastard” – Violence/language

6 AC/DC – “Let Me Put My Love Into You” – Sex

7 Twisted Sister – “We’re Not Gonna Take It” – Violence

8 Madonna “Dress You Up” – Sex

9 W.A.S.P. “Animal (Fuck Like a Beast)” – Sex/language/violence

10 Def Leppard “High ‘n’ Dry (Saturday Night)” – Drug and alcohol use

11 Mercyful Fate “Into the Coven” – Occult

12 Black Sabbath “Trashed” – Drug and alcohol use

13 Mary Jane Girls “In My House” – Sex

14 Venom “Possessed” – Occult

15 Cyndi Lauper “She Bop” – Sex/masturbation

 

Mesmo que não houvesse uma menção clara, é óbvio vendo a lista que o heavy metal e o pop são os únicos alvos.

 

É curioso também que depois do heavy metal o outro alvo das Washington Wives sejam figuras femininas do pop como Madonna, Sheena Easton e Cyndi Lauper. Há um quê de repressão sexual aí. ‘Sugar Walls’ que Easton cantava era abusivo por ser uma referência à vagina, como se não houvesse centenas de músicas que faziam referência ao pênis de todas as formas.

 

O rock sempre foi rebeldia, mesmo quando as Washington Wives eram jovens. O heavy metal dos anos oitenta atraía os jovens com uma mistura de referências satanistas, roupa escura, uma antítese do ideal conservador cristão. A briga estava instalada.

 

Depois de colocar a discussão em pauta, o PMRC passou a pressionar as gravadoras. Assim como o cinema tem faixas de idade recomendando que seja visto por maiores de idade da faixa para o filme, deveria haver algum ‘aviso’ sobre o que ia ser consumido. Como diria mais tarde Frank Zappa “se parece censura, tem cheiro de censura, é censura, não importa a esposa de quem o diga.”

 

Um dos apoiadores que inclusive financiou o grupo foi Mike Love, um dos fundadores do Beach Boys. Embora ele diga ser progressista, as suas ideias o levaram a apoiar republicanos conservadores como Ronald Reagan e Donald Trump.

Prince além de encabeçar a lista conseguia estar em dois títulos, pois além de Darling Nikki Prince é autor da letra de ‘Sugar Walls’. Quem conseguiu a proeza foi o seu produtor David Leonard que também estava na produção de Purple Rain. Ele conseguiu um encontro da Sheena Easton com Prince onde conversaram de tudo. Depois disso ela não foi contratada como achava, mas Prince escreveu a letra de ‘Sugar Walls’ especialmente para o álbum solo dela sob o pseudônimo de Alexander Nevermind.

 

Podia haver centenas de músicas abusivas no folk, mas a preocupação do PMRC era que Easton convidava ao prazer do sexo oral feminino, e isso era um terrível tabu para quem criava meninas pré-adolescentes.

 

Ao contrário do que muita gente pensa, Frank Zappa não tinha nenhuma música  diretamente censurada. E ele tinha muitas músicas antigas com letras que com certeza sofreriam essa nova censura, mas na época tinha liberado a banda e estava compondo e tocando com o Synclavier e outros sintetizadores de forma a poder tocar suas composições humanamente impossíveis de serem tocadas, deixando com os robôs o trabalho pesado. 

 

Seu disco ‘Jazz from Hell’ é instrumental. Só há uma música com mais de um músico nela. Ele teve o selo ‘Parental Advisory’ por somente um par de meses e algumas lojas na California, supostamente pelo ‘Hell’ no título do álbum, mas foi mais uma jogada de marketing do que uma censura.

 

O PMRC avançava desenhando um selo contendo uma categorização de músicas com letras numa classificação especial marcando com o ‘X’ letras que continham sexo, ‘V’ para violência, letras ‘demoníacas’ com ‘O’ de oculto, e ‘D/A’ para menções sobre drogas ou álcool.

 

Houve muito debate sobre o assunto e algumas figuras da música passaram a aparecer nos talk shows para denunciar a censura dessas propostas.

 

Tipper Gore foi a alguns dos debates perdendo educadamente todos eles, mas o que importava era marcar presença.

 

Alguns comentaristas mais moralistas começaram a colocar uma lupa nos autores aumentando a exposição como imorais ou vulgares. Prince já tinha outra letra controversa na música ‘Sister’ onde descreve o incesto de um jovem com a sua irmã, deixando no ar se foi ou não auto biográfico -poderia ser até possível já que Prince conviveu na sua adolescência com as suas tres irmãs depois do divórcio dos pais, mas não há nenhuma certeza sobre isso. Mas o ponto é que passou a se rotular Prince de ‘defensor do incesto’, o que é um salto lógico, um declive escorregadio no argumento, manchando a imagem pública de um performer que menciona incesto em suas letras, em último caso um abuso que teria sofrido.

 

Um dos pontos fortes dos debates foi a entrevista no Crossfire com Frank Zappa. Tom Braden é o apresentador junto com comentaristas como Robert Novak, da casa, e John Lofton, um famoso conservador do Washington Times. Esse era o formato do programa, o apresentador e outro comentarista do canal entrevistando duas pessoas de opiniões contrárias num `fogo cruzado`.

 

O apresentador coloca os dois lados do problema dizendo que há letras de músicas que acha inapropriadas e que não acha que deveriam entrar na sua casa. Por outro lado, achariam correto que o governo proíba essas músicas ? E quem seria o censor ? Quem diria o que deveria ser rotulado ou o que não deveria ?

 

A defesa de Zappa é que não há nenhuma evidência científica de que certas palavras levem a pessoa a cometer tal ato seja de sexo, violência ou uso de drogas.

 

John Lofton tenta encurralar Zappa apelando para a qualidade das mensagens das letras.

 

JL – Você apoia álbuns que promovem o incesto como forma de sexo ou que em certas circunstâncias sería aceitável ? Você apoia isso ?

FZ – Não, eu não tenho interesse no incesto, mas não acho que alguém em sua sã consciência desejaria que o governo se entrometa instaurando um colégio censurador que impeça que se digam certas coisas 

FZ – Posso fazer uma declaração sobre o departamento de defesa nacional ?

JL – Sim

FZ – A maior ameaça hoje para os EUA não é o comunismo, é levar o país para uma teocracia fascista, e tudo o que aconteceu ao longo do governo Reagan nos leva exatamente para essa direção

(…)

TB – De que forma ? Me dê um exemplo de teocracia fascista

FZ – Quando existe um governo que prefere certo código moral derivado de certa religião, e esse código moral torna-se uma legislação que se encaixa ao ponto de vista dessa religião, e esse código resulta ser de muito muito de direita, quase no nível de Átila o Huno…

JL – Então vc é um anarquista, cada forma de governo é baseada em algum tipo de código moral, Frank

FZ – Moralidade em termos de comportamento, não em termos de teologia

 

Em meados de ‘85 a indústria fonográfica americana já tinha aceitado colocar uma etiqueta de ‘aviso parental’ denominado PAL (Parental Advisory Label) para álbuns que contivessem letras ‘potencialmente ofensivas’ e as lojas Wal Mart decidiram que não venderiam álbuns com esse selo.

 

Foi feita uma audição pública no senado norteamericano onde alguns autores queriam se pronunciar publicamente. 

 

Apareceram nas audições John Denver, autor de folk, Frank Zappa e Dee Snider, líder dos Twisted Sister. Dos tres somente o Twisted Sister estava nas ‘15th filthy list’.

 

John Denver explicou nas audições o porquê de estar lá: uma música sua tinha sido auto censurada por várias rádios do interior por terem considerado que a música era uma apologia às drogas, o que deixou ele revoltado. A música era Rocky Mountain High e é uma homenagem às Montanhas Rochosas no Colorado e à beleza bucólica de um jovem que as conhece e tem uma epifania sobre a beleza natural e imponente.

 

Isso leva ao primeiro ponto grave da censura sugerida pelo PMRC: censores assim como pessoas, interpretam, e mal interpretam letras. Tudo leva a privilegiar uma interpretação que geralmente fala mais dos preconceitos de quem ouve do que da música em si.

 

Dee Snider deixou claro que a sua letra ‘Under the Blade’ também foi mal interpretada. E sentenciou uma das frases mais contundentes das audições:

DS: “Há uma frase com a que concordo com o PMRC e é que é o meu trabalho monitorar o que os meus filhos veem, ouvem e leem durante sua pré-adolescência. A responsabilidade recai na minha esposa e em mim porque MAIS NINGUÈM é capaz de fazer esses julgamentos por nós.

 

Depois veio a audição do Frank Zappa. Usou e abusou de cutucadas irônicas além de deixar claro os principais argumentos sobre a implementação do selo.

 

Primeiro marcou um argumento contra a desonesta comparação com o rating de filmes: 

 

FZ: “Uma vez que muitos músicos escrevem e executam seu próprio material e o consideram sua arte (você goste ou não), uma classificação imposta irá estigmatizá-los como indivíduos. Quanto tempo para que os compositores e intérpretes sejam instruídos a usar uma faixa do PMRC no braço com sua letra escarlate?

 

John Denver também utilizou uma comparação ao regime nazi :

 

JD: “Um sistema de classificação do ‘establishment’, voluntário ou não, abre as portas para um desfile interminável de Programas de Controle de Qualidade Moral baseados em “Coisas que Certos Cristãos Não Gostam”. E se o próximo grupo do Washington Wives exigir um grande “J” amarelo em todo o material escrito ou executado por judeus, a fim de salvar crianças indefesas da exposição à doutrina sionista oculta?

 

As audições criaram polêmica. Eram bons argumentos. Mas não mudaram o fato de uma parcela pequena mas ruidosa da população clamar por uma regulação, e a indústria se amedrontar e adotar as sugestões do PMRC.

 

Mesmo assim a etiqueta acabou acontecendo. E a indústria não detectou queda nas vendas. A pressão das gravadoras nos autores para não serem rotulados foi interpretado pela maioria dos autores como censura.

 

Reagan teve que enfrentar em 86 o escândalo dos Contras, onde após uma investigação pelo Congresso americano ficou evidente que havia milhões desviados para apoiar os terroristas contra o governo nicaraguense por baixo do pano, além de provar que o governo sim negociou com os iranianos armas em troca de reféns apesar de Reagan sempre dizer `nunca negociar com terroristas`. Reagan não foi diretamente acusado. Sua popularidade despencou, mas conseguiu eleger Bush pai, que continuou e diversificou as loucuras intervencionistas de Reagan, que Bush filho perpetuou e desencadearam outros monstros.

 

A partir dos 90 o alvo passou a ser o rap e suas letras cruas e contestadoras. Então nessas rodadas seguintes de debates quem brilhou foi Ice T. Mas a etiqueta do PAL se consolidou apesar dos protestos.

 

Era época de talk shows, Oprah Winfrey organizou um debate onde estavam Tipper Gore, o líder da banda Dead Kennedys Jello Biafra, Ice-T e outros. A contra-capa do álbum Frankenchrist incluía a pintura ‘penis landscape’ do H R Giger, na mira do PMRC. Além disso, tempo depois Biafra iria participar na música “Freedom of Speech” do Ice-T, um verdadeiro manifesto contra o PMRC.

 

Ice-T se defendeu das acusações de ‘incentivar o estupro’ explicando que a linguagem que usa é das ruas e não existe essa defesa, além de dizer de não usar drogas, ir à escola mas que o PMRC pegava com pinças referências tiradas do seu contexto cultural.

 

Ice-T: O negócio é o seguinte: você tem que engolir a pílula toda, você ouve o meu álbum, você tem que engolir a pílula inteira. O problema com o Ice-T é que eu digo para não usar drogas, ir à escola, não ir para a cadeia, amar seu irmão, mas acontece que eu gosto de Freddy Krueger, se você abrir uma revista da Playboy eu vou dar uma olhada nela, então em outras palavras o que eu faço é mostrar-lhe uma pessoa inteira, todo mundo tem um algum vício, mas eu mostro a pessoa toda. O problema é que quando você mostra o vídeo de grandes apostadores você mostra a parte que não tem nada a ver com o assassinato real, aquele vídeo era sobre não ser um apostador e no final do vídeo eu acabo morto, você sabe.

 

É bom lembrar que liberdade de expressão para Biafra ou Ice-T era trazer o debate das ruas nas suas composições. Ser a favor de criar um partido nazi em pleno século XXI ou boicotar a vacinação numa pandemia não é liberdade de expressão, é liberdade de opressão.

 

Foi um interessante debate, mas a PMRC continuou ganhando batalhas: o Parent Advise Label reformulou sua etiqueta e marcou vários álbuns.

 

Ganhando batalhas ? Se olhar os indicadores da indústria hoje, o selo não faz com que a música ou o autor sejam menos ouvidos, em alguns casos é quase uma promoção e na maioria passa despercebido. Podemos pensar que o PMRC ganhou porque sua `marca` existe até hoje. Mas também podemos dizer que perdeu porque essa `marca` foi tão banalizada que não significa mais nada.

 

A autocensura das gravadoras se reduziu a um apito em algumas palavras proibidas. 

 

Afinal, o selo hoje faz parte do mercado fonográfico e da cultura musical. Num mundo sem álbuns ou CDs, os selos marcando como ‘explicito’ estão no título da música nos aplicativos que tocam as músicas com letras que contenham certas palavras tabu, que ninguém lê. No máximo a censura será a auto-imposta que não deixará ouvir claramente as merdas de putas censuras.

 

Sem conteúdo não há plataforma

Somos podcasters e temos programas onde entregamos episódios periodicamente para que os ouvintes possam disfrutar deles quando queiram, do jeito que quiserem.

Mas há distribuidores que se apropriam do áudio, o distribuem na sua rede, cobram assinaturas do ouvinte e não repassam esses valores para os produtores.

Foi a ferramenta do feed que deu ao meio do podcast a liberdade que o fez prosperar. É a liberdade do ouvinte que lhe dá esse poder, de ouvir o que quiser, quando quiser e como quiser.

Mas hoje é utilizado como um conteúdo dentro de plataformas. Essas plataformas não compartilham seus ganhos das mensalidades de ouvintes. Como se a obra fosse deles. Seus ganhos são privados, nosso conteúdo continua sendo público.

Hoje esses distribuidores são os principais meios de escutar podcasts no Brasil e também em outros países. Então se afastar dessas plataformas de distribuição seria se afastar do ouvinte, o que também não é justo.

No caso o feed é uma ferramenta útil, porém também é um empecilho porque permite que os distribuidores se apropriem do seu uso.

Mas o que acontece se não houver distribuição ?

Precisamos mostrar para as plataformas uma coisa importante: sem conteúdo não há distribuição. Sem produção de podcast não há conteúdo. Sem conteúdo não há negócio.

Considere colocar um episódio do seu podcast no seu site mas não no feed. Anuncie para os seus ouvintes onde está o conteúdo, sem deixar ele disponível em qualquer plataforma de streaming.

Pode também fazer um episódio ao vivo porém sem distribuir ele no feed. Quem ouviu, como numa rádio, não ouvirá mais esse conteúdo, o que o deixa mais relevante, mais efêmero, menos material, sem possibilidade de ser injustamente apropriado por ninguém mais de quem o fez, e quem o ouviu.

Essa é a essência de um programa de áudio. A nossa ligação como ouvintes será maior. E as plataformas saberão que estamos aqui.

Coloque a hashtag #conteudosemplataforma para marcar presença.

Esta idéia foi inspirada no movimento ATAC do ECDQEMSD.

ECDQEMSD (En Caso De Que El Mundo Se Desintegre) é um podcast desde antes de se chamar assim, já com áudios de 1999 e no ar até hoje. O Pirata e o Sr Lagartija conduzem o programa com estórias dos ouvintes.

No começo de 2022 soltaram o manifesto ATAC (Audio Transmisiones Aleatorias y Clandestinas – ou ‘transmissões de áudio esporádicas e clandestinas’) desafiando fornecer outra experiência, com áudios não armazenados posteriormente em nenhum servidor.

“O projeto A.T.A.C vai tentar recuperar a essência o meio do podcast que perdeu por acreditar que tinha chegado sua hora. Como se a bicicleta tivesse decretado o seu fim com a chegada do carro.

O rádio não é imagem. O podcast é rádio. O podcast não é imagem.”

Neste link está o manifesto completo

 

VNP #07: Saudade do que não foi

capa com tanque na rua em sepia

Uma reflexão sobre o sentimento de memória afetiva de algo que não ocorreu. No caso um sessenta e quatro que vive na memória de gente que sequer viveu nessa época.

Inclui a paródia “Assim sem você”

Episódio #16: La Grasa

Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

A estória do mais famoso álbum de Serú Girán, banda argentina de rock dos anos 80 chamado de Beatles argentino  formado por Charly García, David Lebón, Oscar Moro e Pedro Aznar.

A transcrição do episódio está aqui.

Narração do Expreso Imaginario por Sebs dos podcasts 3 Sonidos e Cerveza Barata.

Ouça o episódio aqui:

Gostou do episódio? Ouça a playlist das músicas tocadas no episódio!

 

Transcrição do episódio #16: La Grasa

Serú Girán em foto com as bocas com fitas representando a censura no país

La Grasa

“Adiós Sui Generis’ no clássico estádio Luna Park não foi o primeiro concerto de rock argentino. Mas foi o mais falado e que na perspectiva mudou o olhar para o rock tanto da produção fonográfica quanto das mídias tradicionais da época, o rádio e a TV. 

Curiosamente era a despedida do grupo liderado por Charly García e Nito Mestre -faziam parte dele também Juan Álvarez e Rinaldo Rafanelli. A pergunta entre os jovens era ‘como assim? Sui Generis está se despedindo?’ Para muitos Sui Generis era a melhor novidade do ano, mas já levava 6 anos na estrada, e para Charly já tinha acabado, queria seguir outros projetos.

Naquela época passavam meses e até anos para um sucesso se consolidar, muito mais num país atravessando repressão policial e golpe após golpe de estado, quando a cultura era um inimigo do estado.

Um dos grandes clássicos de Sui Generis é ‘Confissões de inverno’ que conta a estória de um garoto sem trabalho que passa frio e fome, que apanha da polícia mas tem esperança das coisas melhorarem. 

Muitos jovens se identificaram imediatamente com o grupo por esse tipo de rima popular cantada de forma rasgada de um folk autêntico e sulamericano.

As letras de Sui Generis questionavam a sociedade conservadora da época desde o olhar de dois adolescentes dessa mesma sociedade. Uma letra clássica dessa ótica está na forma do Natalio Ruiz, o homem do chapéu grisalho, que de acordo com a sua classe social (sua estirpe) não se atreve a pedir a mão de sua amada, escreve poemas de rimas antigas, e acaba morto para preencher mais um jazigo na Recoleta, o cemitério da alta sociedade. Outra é “Aprendizagem”, de rimas simples mas diretas, que descreve as mesmas experiências de escola que parecem um The Wall mas do outro lado do Atlântico :

“Aprendi a ser formal e cortês 

cortando o cabelo uma vez por mes”


“e tive muitos professores dos quais aprender,

só conheciam sua ciência e o dever

ninguém se atreveu a dizer uma verdade

o medo sempre foi bobo”

Carlos García Moreno, conhecido como Charly García ou só Charly, foi desde cedo um prodígio e sua boa posição social ajudou a que tivesse grandes mestres na música. A influência de sua mãe -que tinha um programa de música folclórica- fez com que conhecesse desde muito jovem grandes nomes da música folclórica como Eduardo Falú e Mercedes Sosa. Eles mesmos recomendaram que estudara música porque tinha ouvido perfeito, ou seja, reconhecia as notas só de ouvi-las, e assim acabou num famoso conservatório musical e saiu graduado e elogiado. Mesmo com uma forte formação clássica desde cedo entra na música ‘popular’ da época, o rock dos anos sessenta.

Em Sui Generis o já mostrava o poder de síntese nas suas letras, descrevendo em um parágrafo como foi sua experiência no serviço militar obrigatório no coro de “Botas Locas“:

“Eu fiz parte de um exército louco,

tinha vinte anos e o cabelo bem curto

mas meu amigo houve uma confusão

porque para eles o louco era eu”

 

O pior que além da loucura da lógica militar Charly menciona tangencialmente um acontecimento real: ele se fez expulsar do quartel fazendo uma cena com um cadáver alegando assim insanidade.

Mas Charly também tinha um mar de composições instrumentais que precisava expandir e no vivo fica claro com uma breve música. Um pouco de música clássica, um pouco de jazz, bastante de uma necessidade de um rock novo que na época era chamado de progressivo.

Fica evidente no ‘Un hada, un cisne’, uma música que descreve o amor impossível entre uma fada e um cisne, que no vivo se transforma numa peça de jazz de 27 minutos, ou na “Fuga do Paralítico” que também se expande no ao vivo. É um Charly que o público desconhece mas que claramente quer navegar mais perto do rock progressivo da época, afinal estamos em 1975 e bandas como Genesis, Yes e Deep Purple moram já no seu coração.

O mundo das baladas folk com alguma protesta tinham ficado para atŕas, ele já tinha conseguido alguns amplificadores e sintetizadores, nada fáceis de conseguir naquela época.

Após a dissolução amigável do Sui Generis, Charly tinha tanto material ainda no formato de Sui Generis que deu para montar um ‘mini-supergrupo’ de amigos chamado Porsuigieco: a formação era Raúl Porchetto e sua banda, os membros do Sui Generis, León Gieco e María Rosa Yorio, na época casada com Charly.

Alugaram todos uma casa, compuseram as músicas, arranjaram as já prontas e fizeram um único álbum de um cancioneiro meio hippie, meio folk.

María Rosa Yorio canta a belíssima ‘Quiero ser, quiero entrar’ que é a música de amor de Charly mais intensa :

“Me convida a ver tua historia

Não falarei que já a sei

me esconde nas memórias

quero ver, quero viver”

Ela já estava grávida do Migue, o único filho de Charly.

Ela também canta em dueto com Nito uma parceira entre León Gieco e Charly chamada “Todos los caballos blancos” nesse sentimento hippie com uma forte inspiração do folk americano, e ainda há outro folk de Gieco com o arranjo de Charly “La colina de la vida”. É uma época de músicas diretas de folk com ritmos onde dá para sentir os vento no cabelo e a vida na natureza. A vontade era de viver plenamente uma vida natural e sem limites.

Raul Porchetto era mais ciumento com suas composições, mas Gieco convida seu companheiro e ídolo Charly a modificar suas composições e com isso há várias colaborações riquíssimas com o tom folk de Gieco e os arranjos lindos e as letras afiadas de Charly como “Viejo solo y borracho” (velho só e bèbado) que entre outras ‘verdades de um velho que ninguém ouve” diz “Cristo foi morto por dizer que o lugar mais longíquo é este que estamos pisando“ ou “todos os dias caem para morrer sobre a terra e nunca mais se levantar”. É a mais pura filosofia hippie de aproveitar cada dia porque nunca será como hoje.

Sui Generis tinha sido ‘acompanhado’ pelo Comfer, a censura da época mas que no caso de Sui Generis não chegou a interferir diretamente pelo medo de uma repercussão negativa. Isso criou uma falsa aura de invencibilidade entorno de Charly, e León Gieco propôs que ele cantasse uma música que ele tinha certeza que seria censurada. Charly se recusou, e talvez com peso na consciência, presenteou seu amigo com uma música que tinha cantado somente ao vivo, “El fantasma de Canterville”. Tinha referências ao famoso conto de Oscar Wilde mas também ao estado de medo e de desaparecidos políticos dessa época conturbada. León Gieco cantou a música no seu disco solo mas teve que fazer ‘adaptações’ para poder publicá-la. Só que no PorSuiGieco “El fantasma de Canterville” foi proibida de aparecer no álbum e outra música foi incluída a último momento.

Charly ficou putaço e nunca aceitou essa censura, achava infame alguém querer alterar sua obra. Mas enquanto Charly se revoltava por uma única obra censurada, muitos de seus amigos tinham ficado na prisão e muitos outros já tinham fugido.

Muitos músicos precisavam prestar depoimento após apresentações, ou apanhavam regularmente da polícia, ou eram diretamente ameaçados ou ‘convidados’ a sair do país, tanto na Argentina quanto em outros países sudacas, como o grupo chileno Inti-Illimani que estava na Europa quando houve o golpe no Chile e nunca mais puderam voltar lá.

Billy Bond, um dos fundadores do rock argentino, do Billy Bond y la pesada del rock & roll, organizou o primeiro grande evento musical no Luna Park. Mas o show terminou numa confusão quando a polícia tentou expulsar algumas pessoas e o restante do público revidou e a polícia apanhou feio. Depois disso Billy Bond disse que achava ser seguido e tempo depois foi para o Brasil, virou produtor musical, fez parte do Joelho de Porco e nunca mais voltou a trabalhar na Argentina.

Depois do intervalo do paz e amor hippie do folk, Charly voltou para a cidade para tentar realizar o seu sonho: uma banda de rock progressivo mas com um tom sulamericano, argentino, algo único que os seus ídolos ingleses nunca poderiam fazer.

Assim forma “La máquina de hacer pájaros” com Carlos Cutaia, o arranjador que conseguiu adaptar com perfeição o musical Hair na Argentina e que estava muito antenado com a instrumentação das bandas progressivas da época. Na batera estava Oscar Moro de Color Humano e Pappo’s Blues, o proto metal argentino.

La máquina de hacer pájaros” é esse convite a uma poesia, que é o que resta fazer. Por isso seu segundo álbum se chama “Filmes” porque a realidade massacrante faz com que o único que tem por fazer é ver filmes -e esse é o título de uma das músicas do álbum.

“La máquina” é esse convite a desfrutar de um minuto de poesia diante da opressão do dia de um governo que não deixava ninguém nem respirar.

A banda foi também um feliz experimento para muitos músicos que já apostavam numa complexidade da cena do rock, e Charly tinha essa magia de realizar composições complexas, boas de ouvir e que chegavam a todos os públicos.

Com “La máquina” consegue a complexidade instrumental que estava procurando, com suas letras com queixas da opressão americana como em “Como mata el viento norte”, o vento norte sendo a influência norte americana apoiando ditaduras que condenam o continente ao atraso e o ostracismo mundial e que lentamente nos mata.

Por um lado quer respirar um pouco em paz:

“Não quero saber nada

com a miséria do mundo atual

hoje é um bom dia

há algo de paz

a terra é nossa irmã”

Mas Charly sabe que mora numa ditadura que o isola do resto do mundo:

“Marte não cede 

ao poder do sol

Venus nos apaixona

a lua sabe de sua atração

enquanto isso morremos aqui

com os olhos fechados

sem conseguir ver um palmo de nosso nariz”

Também tem a música ‘Hipercandombe’. ‘candombe’ é uma expressão musical e cultural uruguaia dos escravos vindos de Angola e que faz parte da miscigenação musical dos ritmos africanos com os da América do Sul. 

E Charly usa um novo candombe já rockeiro para descrever o destino do jovem médio jovens de evitar a polícia, do medo de ter cabelo comprido ou simplesmente de existir num ambiente militarizado e opressivo :

“Quando a noite te deixa desconfiado indo perto do rio

a paranoia é talvez nosso pior inimigo

cobres tua cara e teu cabelo também como se tivesses frio

mas na verdade você está tentando escapar da confusão”

A crítica acostumada com um Charly rebelde mas hippie ou folk e não no rock progressivo não entendeu bem ‘La Máquina’ no início; algumas das críticas apontavam que La Máquina era muito hermético. Musicalmente chegava para os músicos ou os críticos, mas não para o grande público. Charly era um músico formando sua identidade e entendeu o recado mesmo que sua relação com a imprensa fosse sempre conflitante: a verdade era que o Spinetta Jade e para o seu líder El Flaco Spinetta estava tudo certo ser um pouco hermético ou fazer uma música não tão comercial, mas para Charly o público geral precisava entendê-lo.

Nessa busca Charly lá por 78 sem querer monta outro supergrupo. Fizeram um concerto (“Festival del amor”), e com o dinheiro arrecadado Charly vai com sua namorada brasileira para Búzios e convence a David Lebón a tocarem juntos.

David Lebón tinha começado cedo ‘esse negócio do rock’. Viveu com os pais nos EUA dos 8 aos 17 anos, e ao seu pedido, a sua mãe o levou a um concerto dos Beatles ainda criança, e decidiu que era isso que queria fazer. David nunca parou de tentar ser músico, participando de tudo quanto era banda na sua adolescência já novamente em Buenos Aires: foi baterista em Color Humano, participou de várias bandas com Luis Alberto Spinetta, El Flaco, e na última reencarnação, Pescado Rabioso, estava como baixista.

Charly e David ficaram alguns meses em Búzios até chegarem numa sintonia, e daí alugaram uma casa em São Paulo em frente ao Jardim Botânico, prontos para montar a base da banda.

Chamam Oscar Moro que tinha feito as bateras da Máquina. Moro recomendou um baixista que ele tinha ouvido no grupo de rock progressivo Alas: Pedro Aznar, um meninão de 17 anos que já tinha fundado outra banda progressiva, Madre Atómica (impossível não ver a referência a Pink Floyd embora a banda esteja mais para um jazz-rock).

Um dos pontos que atraiu Charly era que Pedro Aznar gostava de misturar rock com tango, que era algo que Charly também queria fazer. Eram as idéias de fazer o rock nacional, de ter um toque que outros não teriam, de criar uma sonoridade especial.

No começo Pedro teve que conquistar seus amigos muito mais rodados mas a escolha acertada fica evidente no solo da primeira música do primeiro álbum da banda : Eiti-Leda

Eiti-Leda já existia e se chamava ’Nena’, mas a versão anterior foi finalmente sepultada por esta versão muito mais elaborada e crescida.

Serugiranística, e assim como outras músicas desse álbum e também do nome da banda, todos eles foram feitos escolhendo sílabas aleatoriamente mas com uma força nova e total. A banda era Serú Girán.

Existe uma música chamada Serú Girán todas com palavras inventadas por Charly e Lebón onde entre “cosmigonon” ou “paralía” estão “Eiti-Leda” (talvez de Eighty Letters ?) e Seminare.

Nesse primeiro álbum há outra composição de Charly com um quase homónimo afro-argentino, Carlos Alberto García López, el Negro García, um exímio guitarrista sem a fama de Charly mas que ele sempre valorizou e que depois o acompanhou na sua carreira solo. A música é Seminare e é um dos hinos do rock argentino que ficou eternizada na voz de Lebón.

Charly queria uma sonoridade e musicalização de rock progressivo, mas sua lírica era de gerar canções. Ainda a proposta musical era similar a La Màquina de Hacer Pájaros: fazer poesia, uma música plena, lírica no desastre cultural da ditadura. Segundo o grupo o pais precisava de poesía, mas o país estava imerso num problema muito mais concreto, muito mais básico.

Essa foi a interpretação comum: não conversava com a realidade do país. Por mais que fosse evidente o nível elevado das composições elaboradas, elas não conversavam com o ouvinte normal de rock, com o ouvinte de blues, com o ouvinte de tango, com o cara que comia um prato de massa e tomava um vinho barato, quem estava sofrendo uma ditadura ferrenha e mais um inverno econômico.

A Expreso Imaginario, uma das grandes revistas underground de cultura e música, fez uma crítica devastadora. Segundo a crítica pareciam dublês tocando, parecia que sua alma tinha sido roubada, alheios à realidade, muito embebidos da felicidade de Búzios.

Das discussões e conclusões da banda, começaram a surgir novas composições. Algumas delas estavam escritas como Noche de Perros mas foram totalmente reescritas e tocadas num ambiente mais hostil, mais cru da realidade de tensão criativa.

Assim nasceu o grande álbum de Seru Girán: La Grasa de las Capitales.

La grasa de las capitales é um canto ao grande problema argentino: as capitais concentram a população que nunca conversou com o resto do país, ficou brega e sem alma. O que importam teus ideais? Nada. A breguice e a mesmice dominaram tudo. E numa ditadura, como não é possível falar de temas importantes, as revistas publicam só farándula, só vida de artista.

Procurar a saída econômica fácil já fizemos, mas chega né?

A capa do álbum é uma paródia a uma Caras argentina da época. Na capa, um Pedro de gel no cabelo, terno e gravata, David Lebón de futebolista, Charly de frentista e Moro de açougueiro ilustram títulos falsos como esse tipo de revista fútil que costuma acompanhar a vida dos famosos.

Ao invés de notícias de verdade, a breguice vazia da vida dos artistas. A vida de Caras. Os pratos referidos dos famosos. Os namoros vazios dos atorzinhos de plantão.

As mudanças de ritmo e os riffs complexos dão lugar a melodias que nos levam a pensar. Onde estamos? Onde queremos estar? A urgência nos domina e percebemos que essa correria da cidade nos engana, é uma ilusão de urgência que só leva a mais um dia fútil para ganhar dinheiro para o patrão. A condução da base Moro-Aznar lhe dá o peso, a melodia dos pianos guitarras urgentes simulam essa pressa da cidade em chegar a lugar nenhum.

Ganhar o pão e vinho, ganhar o dinheiro do dia toda vez é uma ilusão de ir e vir que nos cega e não nos deixa ver que é uma corrida do rato num labirinto viciado. De que adianta seguir correndo? 

Chega de dançar nesse pool dancing do desespero.

A banda conseguiu aqui uma maturidade e integração que La Máquina não tinha e consegue se conectar com o público de uma forma nunca tinha acontecido: um rock elaborado, com letras atualizadas com a realidade opressiva e que o público conseguia cantar e ainda servia a todas as gerações.

 

O álbum segue com um lamento só na guitarra, São Francisco e o lobo confessando que após os homens o maltratarem e ‘abrirem feridas que jamais irão se curar’. Também há uma composição do Pedro Aznar, longa e um pouco descolada do álbum, complexa mas incompreendida. ‘O medo será a minha casa’.

A próxima música arranca a pele de uma pessoa dissimulada que não esconde o seu desprezo sobre o seu companheiro e Charly o compara à dor do cão Andalus de Buñuel.

As músicas nascem de melodias de Charly Garcia e tem colaboração conjunta de todos, como “Frecuencia Modulada” que descreve a rádio alienada que tanto conhecemos :

“Se na música que escutas não há vida,

se a letra não tem inspiração

mesmo aumentando o volume não há força

são os tempos que estão ocos de emoção

 

Hoje que estás no nada

se fecha em você mesma

e dá uma larga olhada

algo dentro teu tem que ter soar!”

Levanta a mão quem vê o mesmo movimento no Spotify !

Todos na banda deixam Pedro Aznar expressar a última palavra do baixo nas músicas.  Lebón passou a pontear e Aznar e marcar tanto os ritmos quanto a melodia, dando uma profundidade inéditas no rock. As guitarras são ponteios para reforçar um sentimento, ou rítmicas e o baixo aparece muito mais dando um peso único à sonoridade da banda.

O pessimismo lírico de Charly parece rodear o clássico e se apoia muito num tom do tango melancólico como “Os sobreviventes”. É quase um conto de zumbis onde os ‘sobreviventes’ estão cansados de tanto andar.

A letra já dá uma tônica de pessoas de eternos alheios imigrantes na sua terra e com isso uniu todos. Por que? Os argentinos se sentiam no seu hogar por acaso? Aqui a lírica de Charly se alia à musicalidade do grupo que compreende o sentimento lúgubre e potente dos sobreviventes a um sistema que oprime. Não há uma palavra mas a mensagem é completamente entendida.

Uma música nascida nas noites tristes de Búzios onde eles se sentiam pobres e famintos é “Noche de perros”. A intenção de um rock tangueiro sugerido em “Os sobreviventes” tem aqui a sua melhor expressão.

“Esta oscuridão

Esta noite de cão

Esta solidão

Que rápido vai te matar

Caminhas perdido nas ruas

Que costumavas andar”

Teu chão é alheio, tuas ruas são alheias. E tem que pedir dinheiro, você está só e sem ajuda.

A noite de cão é a longa noite de penúria numa ditadura que não deixa respirar. Uma longa noite que já levava mais de 5 anos e teria mais 5 para acabar.

“Eu já te vejo entre os carros pedindo perdão

o meu olhar tem toda a tua dor

A lírica rockeira misturada com um tango rasgado reclama centenas de anos de injustiças. Pois o tango na França pode ser relação e um namoro rebelde, mas na América do Sul tango é sofrimento, tango é dor! É algo que a banda vai explorar outras vezes: o sentimento de dor do país que nunca foi a partir da tristeza do tango junto com a potência do rock.

A confissão é de uma escuridão da alma. Essa solidão, esse escuro , era onde a sociedade estava, dentro de um tango noir que perpetuava a dor de milhares de desaparecidos, de milhares de vozes sem voz. A noite de cão para Argentina duraria mais alguns anos ainda.

“você não está só

se sabe que está muito só,

você não está cego 

se não vê onde não há nada”

O rock, o tango todos eles choram num blues rasgado e este sentimento será o que Seru Giran levará em outras músicas e que vai representar o sentimento de impotência e ao mesmo tempo de lirismo sobre a sua situação calamitosa.

Fã de Jaco Pastorius, Pedro Aznar criou o seu baixo frestless usando o baixo FAIM (Fábrica Argentina de Instrumentos Musicales) que ganhou quando tinha 5 anos. Arrancou ele próprio os trastes e foi com ele que tocou no primeiro álbum. Depois chamou um luthier amigo que restaurou o baixo colocando um braço novo também sem trastes, e é com ele que toca no La Grasa.

E termina com um lamento ao Hollywood que definha na sua própria futilidade. 

La Grasa, perfeitamente executado, contestador, foi uma machadada de rock nas nossas cabeças. FOi o álbum definitivo de Seru Girán, que teve outros álbuns depois, até melhor acabados, mas nunca com essa força nascida da impotência e ao mesmo tempo de tesão de toda uma nação.

O grupo acabou 4 anos depois com a saída de Pedro Aznar e a vontade de Charly de mudar novamente sua sonoridade, mas nunca mais participou de super grupos como Serú Girán.

 

VNP #06: O abismo

Uma pequena fábula, e depois uma reflexão-paródia de um de nossos brilhantes membros da cúpula.

Com as vozes de Cris e Julián.

A transcrição está aqui.

Com áudios de :

  • Presidente Lula em pronunciamento dia do trabalho 2010
  • Paulo Guedes – Brasil pós Pandemia
  • Osmar Terra em entrevista à RedeTV – Opinião no Ar
  • Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro
  • Natália Pasternak no Roda Viva
  • Pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro

 

 

Transcrição do episódio: O abismo

 

Era uma vez um grupo de colonos. Tinham passado dificuldades, mas depois de sacrificar frutos do mar num fogo sagrado, aparentemente tudo ia correr bem.

Eles vinham cantarolando como se estivessem bem, embora as notícias fossem péssimas. Os colonos estavam famintos, mas aquele baixinho de óculos e cara de sabichão tinha dito que logo iam chegar investidores das fontes aquíferas e iriam trazer trilhões de galões de água.

E chegaram a um obstáculo. 

Uma depressão grande para poder atravessar. 

 

O general Asterra Omar, especialista em obstáculos, tranquilizou o comando. Era um buraco profundo, todos iam ter que atravessá-lo e se encher de lama. Alguns até poderiam morrer na lama, sim, mas depois da lama haveria o outro lado e eles iam conseguir chegar lá. Era fácil. Todos os gráficos estavam do seu lado.

Não podiam dizer a todos que alguns iam morrer e o resto passaria por cima dos cadáveres porque era uma propaganda ruim, mas nos bastidores foi decidido que retroceder, jamais.

 

Então a ordem foi avançar.

Alguns que chegaram perto e que tinham estudo de terreno falaram “não é um buraco e não tem lama, é um abismo e o outro lado está muito distante, se tentar pular ou atravessar assim vamos morrer”.

Mas não foram ouvidos, o comando era atravessar, não ser maricas, parar de mimimi, e ter coragem para se sacrificar por todos, afinal, se alguns atravessassem primeiro, os outros poderiam ficar acima deles.

 

Soldados e colonos foram atravessando, gritando e desaparecendo. 

Outros grupos de colonos mais longe começaram a construir pontes, mas este grupo não, tinha certeza de poder atravessar mesmo ouvindo cada vez mais gritos, o desespero, e depois o silêncio de quem tentava atravessar.

Os corpos iam caindo sem fim.

As centenas viraram milhares, e os milhares viraram centenas de milhares. Quantos mais caíam no abismo, mais ficava evidente: era um abismo.

Nem mesmo a macabra ideia de atravessar pelos corpos ia funcionar. Mas aparentemente a alta cúpula de colonos cultivava uma predileção por rituais macabros. Mortes eram considerados sacrifícios por um bem maior, a colônia, e a eliminação de milhares era comparado ao ceifar do campo para depois florescer uma nova safra. Eram idéias impopulares que não saíam da cúpula porque seriam mal interpretadas fora dela. Por isso eles insistiram nessa ideia suicida aparentemente.

Como será que esta fábula irá terminar ? A alta cúpula de senhores que secretamente cultuam a morte conseguirão atravessar o obstáculo ? Será que os poucos dissidentes conseguirão impedir que o abismo se encha de corpos inocentes ? Quantos terão que morrer para perceberem todos que o abismo não poderá ser atravessado simplesmente jogando inocentes ao vazio ?

 

E enquanto isso, um membro afastado da cúpula, a esperança da ciência e da inovação, sonha um sonho …

 

Episódio #15: Mulheres da UTI

UTI estilizada

 

Este episódio faz parte da campanha #OPodcastÉDelas2021, veja mais em: https://opodcastedelas.com.br/

Neste episódo a Cris entrevista 4 profissionais da saúde que atualmente atuam na UTI de um importante hospital de São Paulo.

  • Thaís – nutricionista
  • Marlene – enfermeira
  • Maria Luiza – assistente social
  • Taciana – fisioterapeuta

Ouça no seu agregador preferido ou pode ouvir aqui :

 

Episódio #14: Breve estrela da Graça

Arte sobre capa do álbum ‘Grace’ de Jeff Buckley

 

Neste episódio vamos apresentar a breve vida e obra de Jeff Buckley.

As músicas utilizadas no episódio estão na playlist aqui.

A transcrição do episódio está aqui.

Ouça o episódio aqui:

 

Transcrição do episódio #14: Breve estrela da Graça

Um jovem de pouco mais de 23 anos chega na Big Apple no início dos anos noventa. Mesmo vindo do sul da Califórnia, sempre se sentiu um newyorker e já começa a respirar a cidade, as suas igrejas e muquifos prediletos, se mistura no Brooklin dos artistas, o submundo dos bares de shows underground.

Ele é Jeffrey Scott Buckley e assim que começou a fazer algum sucesso com a sua música decidiu que sua cidade seria New York. Trazia na sua mala alguns esboços de músicas suas, e muitas músicas da sua infância que o seu padrasto lhe apresentou: Yes, Genesis, o mundo do rock progressivo e principalmente Led Zeppelin.

Mas como está o rock nos anos noventa? Nos oitenta o rock foi destruído pelo punk, pelo reggae e depois pelo funk e rap. Tentou se reinventar, virou dançante, mas nada deu certo e essa foi a primeira de muitas mortes do rock. Os grandes nomes dos 70 se esconderam nos seus castelos. E já nos 90 os poucos representantes autênticos passaram a ser os jovens que surgem das garagens, dos pequenos bares, que agora conseguem com baixos orçamentos realizar concertos, gravar fitas improvisadas, CDs, gravar em estúdios caseiros. Querem dar uma voz autêntica, ganhar o suficiente para fazer sua arte sem deturpar seu toque pessoal.

Mas os noventa precisavam de mais simplicidade, mais realidade e performances que trouxessem novamente o que os anos oitenta, com seu pop técnico, tinha perdido. Aprender com os movimentos de rua como o punk, manter sua conexão com a realidade, e com a força de um rock menos pasteurizado. E assim nasce e se desenvolve o que será o grunge, as bandas de garagem, as gravações mais improvisadas das apresentações na rua e nos bares das cidades. Já em New York os músicos de rua tomam conta da cena rockeira da cidade, e Jeff respira esse ar de junk food, cerveja barata, microfones de karaokê, pombas sujas e amplificadores. Tudo era passageiro, nada interessava.

Jeff aluga um quarto qualquer e passa as semanas sentindo a cidade. Visita os bares, faz pequenas amizades e aos poucos o garoto californiano vai despindo sua pele do interior e trocando pela cor da grande maçã ao seu redor que o acolhe como mais um sonhador no lugar certo. 

Ele vinha de um berço de músicos: a sua mãe Mary era violoncelista, e seu padrasto Ron um amante do rock progressivo que sempre apoiou seus sonhos desde que ele disse que seria músico, desde comprar sua primeira guitarra como lhe apresentar aqueles que seriam seus ídolos como Al Di Meola e Led Zeppelin. O seu pai biológico Tim Buckley foi um importante músico do folk dos anos 60, mas se separou de sua mãe ainda grávida. Jeff contou mais tarde que só viu seu pai biológico Tim por alguns dias quando tinha 8 anos, então não o conheceu de fato.

Vendo Tim Buckley cantando e tocando guitarra as semelhanças são evidentes no tom da voz, mas eles tinham personalidades completamente diferentes, além de Jeff conseguir escalas mais altas com mais facilidade. Provavelmente na infância com sua mãe cresceu uma raiva sobre o pai ausente, mas o Jeff adulto já tinha perdoado o seu pai, e também não queria entrar em drogas pesadas como a heroína que levou seu pai a uma morte prematura em ‘75.

E por isso em “Mojo Pin” (que é o nome de uma dose de heroína) expressou seus medos e sua visão de ser um desperdício acabar a vida dessa forma. Já tinha descoberto, amado, odiado e perdoado o seu pai biológico antes de pisar New York, inclusive mudando seu nome de Scott Moorhead, seu nome do meio e o nome do seu padrasto (para sua família sempre foi Scottie), para Jeff Buckley talvez por um apelo mais vendável. 

A paixão de Jeff era colocar a guitarra no colo e tocar de forma sensual, afinadíssima e profunda nos pubs da cidade. Foi no Sin-é que o pessoal começou a reparar nele. O Sin-é, o seu bar predileto, onde sente a liberdade de criar seu espaço, deixa ele fazer suas performances com liberdade. 

Sua voz lembra a do seu pai e sua guitarra é indiscutivelmente única. Jeff passeia em tres escalas com facilidade e perfeição, suas performances intimistas e o timbre acurado e sensual de sua voz passeando em escalas como num transe devocional o destacam de outros performers rapidamente.

Ele faz algumas demonstrações nos pubs, conhece pessoas e assim chega até alguns locais onde as bandas se apresentam e dão seu show. Nos pubs Jeff improvisa versões das músicas do seu coração cheias do seu sentimento e sua guitarra profunda. Pode ser ‘Back in NY’ de Genesis, ‘Lilac Wine’ que Nina Simome imortalizou assim como versões cheias de sentimento como o Halleluyah de Leonard Cohen cantadas no solo com sua guitarra.

Alguns dos músicos das redondezas começam a rodeá-lo e ajudá-lo nas suas performances como Matt Johnson que será o seu baterista nessa época.

Jeff então é convidado a participar de uma homenagem ao seu pai Tim Buckley. Tim morreu de overdose de heroína em ‘75. Jeff o conheceu por pouco mais de uma semana ainda criança, e não tinha nenhuma afinidade com ele. Mesmo assim Jeff faz uma performance marcante na igreja de St Ann e Gary Lucas acaba reparando nele.

Gary Lucas era ex-membro da banda do Captain Beeffheart, o cara que fazia parceria nada menos que com Frank Zappa. Gary estava montando sua banda “God and Monsters”, sempre à procura de novos talentos nos pubs nova iorquinos. Começaram a tocar juntos, Jeff na banda de Gary Lucas, e Gary acompanhando suas performances nos bares. Jeff participou por um tempo da banda de Gary, mas depois acabou por se afastar da banda, mesmo que Gary continue o aconselhando por ver seu potencial como guitarrista, na sua voz, como jovem músico nos anos 90. Jeff sentia que havia um caldeirão dentro dele, e sentia que devia atender o seu chamado por apresentações e respirar o ar da cidade a sua volta. Buscava a proximidade e intimidade que os bares lhe davam, e não iria se sentir à vontade dentro da banda de Gary.

Mas foi o mesmo Gary Lucas que contatou conhecidos de gravadoras quando as performances no Sin-é já tinham consistência. Jeff conseguiu assim um contrato com a Columbia Records que lhe deu o norte para apresentar seu material e a confiança de colocar seu toque pessoal.

Desta época é o álbum que apresentou Jeff Buckley: ‘Live at Sin-é’, com performance onde os pratos, risadas e copos tinindo se misturam com batidas na guitarra de Jeff e sua banda. O álbum mistura pequenos monólogos de Jeff com suas performances intensas, que terminam com poucas e entusiasmadas palmas.

Sin-é significa algo como ‘isso aí’ em gaélico irlandês. Resume muito bem o tipo de performance de Jeff: limpa, autêntica, espirituosa. Musicalmente era o oposto ao grunge, mas no sentimento de entregar seu coração no palco não tinha nada a dever a um Kurt Cobain.

Jeff assim ia contra a tendência normal das bandas de fazer músicas fáceis de ouvir e LPs em estúdio. A intimidade do bar nova-iorquino tinha conquistado a alma de Jeff, que não tinha pressa para ficar famoso nem vontade de ser uma estrela do rock. Mas mesmo assim havia muito material e Gary organizou as gravações em estúdio com uma equipe altamente gabaritada. Desta época é o primeiro álbum puramente em estúdio e que vai lançar Jeff Buckley para os holofotes, entrevistas e o maravilhoso mundo da MTV: o álbum ‘Grace’.

Hoje ‘Grace’ está entre os 100 melhores álbuns de rock de todos os tempos e na época já era muito elogiado tanto pela crítica quanto por músicos como Paul McCartney ou Robert Plant.

O álbum abre com ‘Mojo Pin’, um lamento de um amor que se foi e a queda para mais uma dose. Há um pouco do destino suicida do seu pai na música, mas o que chama a atenção é o arranjo limpo, e o lado espirituoso e que sempre vai torcer pela vida e pelo amor que ficava plasmado nas letras de Jeff e na sua voz cristalina, pleno como um raio de sol do meio-dia. Os vibratos de Jeff são perfeitos e afinados, é um Jim Morrison afinado trinta anos depois.

E depois segue para ‘Grace’, seu hit mais famoso e onde está seu canto ao espírito humano, ao estado de graça que faz os atos humanos valerem a vida e a morte. 

Jeff foi sempre tão grato a Gary Lucas que lhe deu o crédito pelo arpeggio inicial e que separa a música nas suas tres partes, muito embora o resto seja o puro suco de Jeff Buckley. ‘Grace’ se converteu no seu hit e tem centenas de performances hoje de seus admiradores. Também resume o estado de espírito do disco que nos convida a se entregar ao gozo pleno do espírito livre e desimpedido que quer desfrutar da vida e assim reverenciá-la, viver um grande amor, um único amor, milhares de amores, uma persistência do amor através das gerações e isso é toda a música e o amor que seus pais lhe deram.

Talvez tenha herdado o pontilhado do seu pai biológico, mas herdou todo o amor pela música e pela vida que sua mãe e seu padrasto lhe deram, sua pequena Califórnia, seus irmãos e amigos de infância. Está tudo lá e essa é a graça alcançada.

Há várias outras músicas memoráveis no álbum, entre elas “Last Goodbye”, com guitarras que lembram violinos indianos, assim como “Dream Brother” onde a introdução é no dulcimer, uma guitarra medieval de 4 cordas. Há versões também como a versão de Halleluyah de Leonard Cohen e ‘Lilac Wine’ de James Shelton que Nina Simone imortalizou e foi recentemente performada pela Miley Cyrus. “Dream Brother” serviu para o Jeff fechar a estória com o seu pai como ‘Mojo Pin’. São músicas com uma intensidade única que o grunge tinha mas com uma qualidade musical e uma voz pura e bela que o grunge poucas vezes teve.

Há uma incessante busca em Jeff Buckley pela música e seu elo com o intocável, com o divino. Muito além de uma religião ou um deus, o divino é aquele sentimento de um amor tão puro que transcende a vida humana. A sua voz e guitarra tentavam preencher esse vazio e ao mesmo tempo revelavam a sua paixão pela imensidão e uma profunda tristeza nos seus mais sinceros ecos de sua alma.

Mas os problemas que Jeff já encarava são reais, e em Dream Brother deixa bem claro que é uma esperança vã esperar algo de quem não liga para você, como foi Tim Buckley para ele :

 

“Não sejas como aquele que me deixou tão velho,

não sejas como aquele que deixou para trás seu nome,

porque estão te esperando,

assim como eu esperei o meu,

e nunca ninguém veio”.

 

Muitos jovens abandonados em escolas, em ruelas e vilas viraram grandes nomes do grunge mas não conseguiram sair de um espiral de auto-destruição que os levou quase todos à ruína. Jeff encarou seus fantasmas de asas negras, olhou para o abismo, se redimiu e retornou pleno e com uma música reveladora e clara.

Mais tarde saiu outro álbum com material de suas apresentações na Europa antes da gravação do álbum em estúdio (Live from the Bataclan). Sai então de gira para promover o álbum, tocando geralmente em cafés ou pequenos teatros pelos EUA.

Nessas performances e essas buscas acaba por conhecer e entrevistar outro autor do divino e que se conecta musicalmente de uma forma muito especial com Jeff, Nusrat Fateh Ali Khan. Nusrat é herdeiro de uma linhagem de músicos qawwali que no caso ficou famoso com sua banda por começar a tocar em lugares fora do Paquistão.

Nos anos 90 crescia a world music e o mundo ocidental descobre uma infindável lista de músicos de outras partes do mundo. Entre eles, Nusrat Fateh impressionava platéias nos mais diversos festivais com sua voz profunda, a interpretação forte da música qawwali, as rápidas mudanças de tom e seu sentimento sempre à flor da pele.

A música qawwali é um canto devocional a Allah e sua criação. Por isso não há palavras ou letras porque Allah não pode ser representado, descrito ou mesmo nomeado. Isso pode ser interpretado também como que o criador do universo não pode ser definido ou encaixado em palavras, mas ficamos mais perto de entendê-lo quando reverenciamos e tentamos compreender a maravilha de sua criação.

As poucas letras ou frases das músicas vem de poemas sufis. Jeff conhecia esse sentimento, cantou músicas paquistanesas no Sin-é para levar o seu público a esse entendimento e tinha uma profunda admiração por Nusrat e sua música.

Mais tarde o já famoso músico pakistanês grava com Peter Gabriel fazendo parte da trilha musical do filme ‘A última tentação de Cristo’ de Martin Scorsese sobre o livro de Nikos Kazantzákis com uma versão de Jesus Cristo bem particular e claro que o ponto alto é a música da paixão de Cristo, uma paixão com um pakistanês e um senegalês nas vozes, duas vozes próximas ao sufis, à expressão musical do louvor no caso muçulmano, mas enfim, se não estamos falando do mesmo deus, estamos pelo menos falando da mesma devoção.

Jeff já percebe que tem material para um novo álbum. Através da Columbia entra em contato com Tom Verlaine (líder da banda pré-punk dos anos 70 ‘Television’) e começam a planejar a produção de um novo álbum com o título prévio de ‘My sweetheart the drunk’. Fizeram as gravações nos estúdios em Memphis, a terra de Elvis. Tom Verlaine tinha um toque especial para afinar guitarras e deixá-las com um som especial, mas não tinha muita experiência em produção e as gravações com Jeff eram tensas.

`Grace` já tinha saído com uma qualidade monstruosa para um primeiro álbum e agora queria mostrar até onde podia chegar. Suas composições são complexas e suas letras mais diretas sobre amor perdido ou um distanciamento romântico.

É nesta época que grava uma versão definitiva de uma das músicas que fazia um enorme sucesso nos shows: Vancouver. A música é composta como algumas outras junto com Michael Tighe, que também compôs músicas para Liam Gallagher e toca a guitarra no álbum de estréia de Adele. É uma composição típica dos noventa porém complexa e nos convida a flutuar com a suavidade da voz de Jeff.

Vancouver” tem uma complexidade rítmica inusual que as guitarras só embelezam, e uma beleza única para essa época.

É dessa época também “The Sky is a Landfill” que também mostra um corpo e uma consistência únicos. 

Também grava uma versão quase onírica de uma escura música de Genesis da sua época de progressivo “Back in NYC” que abre a segunda parte da quase ópera rock “The lamb lis down on Broadway”.

E também outra música do qual tinha só esboços e que puxam um lado profundo e romântico que aparecia nos shows mas não no estúdio, “Everybody Here Wants You”, que poderia facilmente ser seu novo hit. Estava ótimo. Mas algo ainda não o convencia, algo estava errado.

Fez toda uma sessão de gravações e ainda se apresentava no interior dos Estados Unidos. 

Depois das gravações das quais ainda não estava satisfeito se tomou uns dias de férias. Trabalhou sozinho, sabe-se lá em quê. Semanas depois reagendou entusiasmado com a banda para voltar a trabalhar num material novo para o álbum.

Enquanto a banda estava chegando novamente em Memphis, Jeff estava passeando com um amigo nos arredores e decidiu tomar um banho no Wolf River. Desceu o rio cantarolando ‘Whole Lotta Love” de Led Zeppelin.

Mas não voltou. Seu corpo foi encontrado 8 dias depois, em 6 de junho de 97, vítima de um afogamento acidental, sem drogas no seu corpo mais do que litros de música, gotas mortais de amor nas suas letras e deixando o coração de todos feito pedaços. Curiosamente Nusrat Fateh Ali Khan irá falecer em agosto do mesmo ano.

Meses depois o material foi publicado como ‘Sketches for my sweetheart the drunk’ como último álbum inacabado e póstumo deste jovem de trinta anos, vítima do seu amor pela música e com uma carreira brilhante interrompida pela fatalidade de nossas breves vidas.

Ao redor dos anos, ’Grace’ se converteu num álbum reverenciado e influenciador de bandas e cantores ao redor do mundo. Seu estilo profundo e intenso influencia jovens vozes geração a geração e vai nos ajudar a reverenciar a vida para todo o sempre.