Mazelas que todos conhecem
(mas que ninguém contou)
Quando podia, aquele homem alto de longa barba escura sentava a escrever. Quando não escrevia para o seu jornal, escrevia rimas de um jeito antigo que quase ninguém mais conseguia lembrar.
Aquele homem alto de longa barba escura e olhar sério escrevia contra o governo e isso o fazia ter que se deslocar. Alguns versos esporádicos foram escritos a favor da federação lá no último quarto do século XIX em diversos lugares do cone sul. Deve ter escrito estrofes quando ainda estava na fronteira seca entre Uruguai e o Brasil, no atual Santana do Livramento. E depois outras linhas já em Montevidéu.
Já em Buenos Aires, José Rafael Hernández y Pueyrredón, mais conhecido como José Hernández, foi proibido de escrever no seu próprio jornal, que foi fechado por acusações de ser um panfleto federal. Então passou a escrever do início ao fim a estória que há anos rondava sua cabeça:
Aquí me pongo a cantar
Al compás de la vigüela, Que el hombre que lo desvela Una pena extraordinaria Como la ave solitaria Con el cantar se consuela. |
Começo aqui a cantar
no compasso da minha viola, porque ao homem que o assola uma dor extraordinária como a ave solitária, no cantar se consola. |
É assim que começa o Martín Fierro, publicado ao longo de 1872 em jornais e republicado como livro no mesmo ano.
Já na segunda linha apresenta o seu companheiro de desgraças: a vigüela, uma velha forma de dizer violão. E curiosamente é estranha para o mundo do castelhano, onde se chama ‘guitarra’ pois só no português é que se diz ‘violão’ à guitarra acústica com forma de coração e que já era a mais comum na América do Sul.
A escolha do autor por vigüela é sonora, claro, é um sinônimo antigo e que por sua terminação tem as rimas que ele espera com ‘consuela’ e dá a oportunidade para explicar que ele se consola a si mesmo cantando como um pássaro. E o faz porque tem uma ‘pena extraordinaria’, ou seja uma dor inconsolável.
O Martín Fierro é um canto escrito em estrofes para imaginarmos o protagonista sentado numa roda ou numa pulpería (um bar/mercearia/farmácia daquela época), acompanhado do seu violão. A sua poesia é uma celebração ao modo de cantar em rimas dos payadores, que assim como os repentistas no Brasil, cantavam solo ou em duplas em rimas e até se desafiavam uns aos outros. A linguagem no livro plasmou a forma de pensar do gaucho utilizando o seu modo de falar, inaugurando a literatura gauchesca, numa poesia própria argentina que outras obras em espanhol não tem, mesmo escritas por argentinos.
Grande parte do poema é construído em estrofes de seis linhas chamadas sextinas. A primeira frase é livre, a segunda rima com a terceira e a sexta final, e no meio rimam a quarta linha com a quinta. Começa livre, continua rimando, constrói uma segunda rima, e termina rimando com o início.
“Cantando me he de morir
Cantando me han de enterrar, Y cantando he de llegar Al pie del eterno padre: Dende el vientre de mi madre Vine a este mundo a cantar.” |
Cantando hei de morrer,
cantando enterrado serei, e cantando chegarei ao pé do eterno pai; desde o ventre da minha mãe vim ao mundo a cantar. |
Os versos são em geral octossílabos, e mesmo que as sextinas não fossem tão populares na época, os versos octossílabos sim são mais populares no espanhol.
Há no poema todo o uso do gauchesco, da forma dos gauchos de falar, com muitas expressões do campo para qualquer momento e ocasião, exprimindo a sabedoria do homem do campo. E há a troca de letras como o h aspirado pelo ‘j’ , e o j invés do f :
(…)La cosa anda tan fruncida,
Que gasta el pobre la vida En juir de la autoridá. |
A coisa anda tão difícil
que o pobre gasta a vida fugindo da autoridade. |
juir: huir (fugir), autoridá: autoridad (autoridade) |
Todo o resto do canto será a longa descrição de suas penúrias como gaucho argentino, no seu caso a vida na guerra contra ‘o indio’ (pampas e tehuelches).
– Bio José Hernández
O autor do Martín Fierro, José Hernández, era filho dessa proto-Argentina pós independência. Sua mãe era unitária e sobrinha de um dos organizadores da reconquista de Buenos Aires, quando foi ocupada pelos ingleses em 1806, antes da independência, cujo episódio é o início da identidade nacional. Aliás, essa mesma família, os Pueyrredón, ainda está na política, onde o exemplo mais recente é a Patricia Bullrich, que em vários governos conservadores, assim como o atual de Javier Milei, foi Ministra de Segurança.
O pai de José Hernández comprava gado para as fazendas da familia, e tinha simpatia pelos federais, tendo trabalhado inclusive nas fazendas do líder federal Juan Manuel de Rosas.
E aqui vai uma breve explanação do que eram unitários e federais, a modo de introdução de um assunto bem áspero:
Os unitários queriam um governo central, em Buenos Aires, e apostavam no modelo agropecuário e exportador de matéria prima, com a metrópole ganhando importância no tabuleiro mundial e distribuindo a riqueza para o país. São em geral os que irão ver o restante do país como bárbaros e a cidade como modelo de civilização a ser seguida.
Os federais eram favoráveis a um maior equilíbrio entre as províncias, de investimentos para as regiões menos favorecidas se desenvolverem e de matrizes diversas de economia, também de exportação mas descentralizado.
Os detratores dos unitários dirão que são vende-pátria que preferem fazer negócio com os estrangeiros (em geral brasileiros ou ingleses).
Os detratores dos federais dirão que eram ‘coronéis’, líderes regionais populistas que usam o apoio do ‘povão’ com o pretexto para se manter no poder.
As lutas entre unitários e federais geraram as primeiras guerras civis pós-independência. Mesmo que ‘no papel’ os federais tenham vencido, Buenos Aires virou a capital do país e nunca perdeu a hegemonia.
O resultado da Argentina atual é dessa disputa, onde cada um deles ganhou e perdeu batalhas. Buenos Aires ainda é a capital, mas de um país federal -inclusive José Hernández junto com Dardo Rocha, foram políticos que promoveram a construção da cidade de La Plata para que seja a capital da província, e assim Buenos Aires seria uma capital da federação.
Na sua infância, José Hernández, que já era um pequeno nerd do século XIX e lia os clássicos, ficou numa fazenda de familiares no interior de Buenos Aires para tratar de problemas respiratórios após o falecimento de sua mãe um ano antes. A convivência com as pessoas do campo o levou abraçar essa vida e entender melhor os gauchos que trabalhavam na fazenda, aprendeu a andar a cavalo, a distinguir ervas daninhas de comestíveis e a caçar com boleadoras como os gauchos fazem, que aprenderam por suas vez dos povos indígenas chamados de pampas.
A definição de ‘pampas’ é controversa, mas o que se sabe é que é a etnia dos que povoavam as atuais províncias de La Pampa e Buenos Aires, se agrupavam em pequenos grupos familiares, caçavam ñandus (um parente da ema) e mamíferos pequenos como o carpincho (a capivara). Tinham comércio com diaguitas e outras pessoas de etnias do norte argentino e da Bolívia, por sua vez revendedores no império inca, e o nome original do rio da Prata seria pelos ornamentos dos pampas.
Os pampas, também chamados querandis, estavam emparentados com outras etnias como a mapuche, que habita o atual interior da Argentina e Chile, e outros como tehuelches, pehuenches e até talvez yánamas, no extremo sul do continente. Mantinham guerra ao norte contra guaranis e charrúas, e a posterior aliança de guaraníes e espanhóis irá fazer eles fugirem para o interior.
Jorge Luis Borges, o escritor, em mais de um de suas conferências afirmou que José Hernández não era popular em vida e sim seu irmão Rafael, que foi o irmão maior e o modelo, quando primeiro a mãe faleceu, e mais tarde o pai.
Hernández entendeu essa fricção constante do gaucho que precisa trabalhar a terra para o criollo, filho de espanhol nascido nas colônias, colono assim como os seus antepassados. Colono este que vê o indígena ora como um derrotado ora como uma ameaça, mas nunca um igual. E o gaucho é o recheio desse sanduíche, essa bucha de canhão entre o criollo e o índio malevo, rebelde. O gaucho é o mestiço cristianizado mas sem posses, os que se sentem os autênticos argentinos, mas que não são os donos da terra, a trabalham, seja semeando o campo, seja tocando o gado. Dos pampas, ranqueles, diaguitas e outros povos originários herdaram a vestimenta como o poncho ou o chiripá, as boleadoras para caçar, o chimarrão para tomar, e a pobreza. Dos espanhóis herdoaram a crença em Jesus Cristo, a bombacha, a guitarra, o idioma castelhano, … e a pobreza.
A independência do novo país, como vai acontecer em todo o continente, embora gostem de encher a boca de palavras de ter se libertado das garras da Europa e ser filho da liberdade, a verdade é que começa o último capítulo da extinção dos povos originários americanos em lutas sangrentas pelo território. Igualdade, liberdade, fraternidade mas só para os filhos dos europeus, os criollos donos das terras, e depois os imigrantes, mas nunca para os povos originários. E ela é feita a partir do sangue dos gauchos.
Tanto José como Rafael lutaram em diversas batalhas do lado dos federais e conheciam bem os dois lados dessa relação cruel do gaucho na batalha e na volta a sua realidade sofrida.
Porque os caudilhos inflamam as vontades populares, vamos para lá, vamos fazer uma constituição federal, aquele lá é um traidor da pátria, e por aí vai.
Mas quem é recrutado nessas lutas é o gaucho.
E quando as forças dos colonos enfraquecem, mapuches o querandies organizam malones (um arrastão nas terras de ‘cristãos’), é o gaucho que é recrutado para ir na fronteira. Além de perder suas posses, é forçado a enfrentar um povo que nunca lhe fez mal, mas que as cruentas embestidas o fará se converter no seu maior inimigo, quando talvez o verdadeiro inimigo estava atrás de uma escrivaninha no conforto da cidade.
Há quem compare os gauchos com os cowboys estadunidenses. Há semelhanças e diferenças. A colonização espanhola foi bem diferente, e o gaucho é muito mais próximo étnica e culturalmente dos povos originários (e afro), na sua vestimenta, modo de pensar, cultura, comida. Porém, o gaucho mesmo sendo metade indígena e originário dos escravos, não se sente como tal, e chama a si mesmo de ‘cristão’, numa guerra cultural de cristãos contra infiéis. Mais tarde, com a chegada constante de imigrantes europeus e do oriente médio, de sirio-libaneses cristãos, gregos expulsos por turcos, espanhóis, marroquinos e judeus, será aos poucos construído um novo gaucho onde o que sobrará dos povos originários será a vestimenta e alguns costumes, como tomar mate (chimarrão).
A principal diferença é que Hollywood transformou uma guerra sangrenta e injusta numa vida romântica e pastoral que só existiu na imaginação dos roteiristas, mas que se converteu num paraíso moral de uma vida ‘natural’. Natureza, quantas injustiças adoramos cometer no seu nome…
Na época em que começa a ser escrito o Martín Fierro, José Hernández já estava em Buenos Aires após ter percorrido várias províncias e ficado no exílio no Brasil e Uruguai, por causa de sua atuação política. Participou de governos federais assim como se retirou da vida pública ou do país quando na Argentina governavam os unitários e conservadores.
José e Rafael Hernández dirigiram um pasquim a favor do gaucho e contra o seu alistamento forçado. Ele é fechado pelo governo, José combate com escritos e nas fileiras junto a López Jordán, que perde e o força a ir para o exílio no Brasil em Santana do Livramento, fronteira com Uruguai, e depois para Montevideu. É nessa época que aparentemente começa a escrever o Martín Fierro, já em poemas. Tempo depois é ‘anistiado’ e volta para Buenos Aires. Começa então a publicar o Martín Fierro em pequenas entregas no jornal “La República”, a meados de 1872.
E agora vou contar a historia do Martín Fierro, e é óbvio pode conter algo que chame de spoilers, mas um olhar mais racional o fará entender que a leitura do poema não será estragada por um podcast produzido depois de mais de 150 anos. A leitura, nua e crua, frase a frase, estrofe a estrofe, é uma experiência particular que a narração dos fatos não haverá nunca de entorpecer.
Historia do Martín Fierro
Martín Fierro começa escrevendo sobre sua vida com esposa e filhos em algum lugar do interior do país (que pela época e descrição deve ser entre as províncias de Buenos Aires e Santa Fe, onde mapuches ainda lutavam pelas suas terras). Lá ele planta o que come e tem certa paz. Mas chegam os militares que o recrutam à força para lutar contra ‘o índio’. Fierro descreve a dura vida dentro do fortín, as fortificações de soldados para impedir os ‘malones’, as embestidas de índios pampas , mapuches que de vez em quando invadiam as terras dos colonos. Ou seja, tentavam reconquistar sua terra.
Tuve en mi pago en un tiempo
hijos, hacienda y mujer, pero empecé a padecer, me echaron a la frontera ¡y qué iba a hallar al volver! tan sólo hallé la tapera. |
Houve um tempo na minha terra
que tinha filhos, fazenda e mulher, mas comecei a sofrer, me expulsaram para a fronteira. E depois quando voltei só achei a tapera. |
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Aquello no era servicio
Ni defender la frontera; Aquello era ratonera En que sólo gana el juerte: Era jugar a la suerte Con una taba culera. |
Aquilo não era serviço
nem defender a fronteira; aquilo era ratoeira na que só ganha o mais forte: era brincar com a sorte com dados marcados. |
A taba é um jogo com o osso do pé do boi, quem chega mais perto de um certo ‘gol’, ganha. A ‘taba culera’ seria aquela raspada para pesar menos. |
Num momento da história é narrado de forma tragicómica o seu encontro com um imigrante italiano, que é tratado com mais demérito do que os próprios gauchos.
Era un gringo tan bozal,
que nada se le entendía. ¡Quién sabe de ande sería! Tal vez no juera cristiano, pues lo único que decía es que era pa-po-litano. |
Era um gringo tão boçal
que nada era possível entender Quem sabe de onde seria! talvez nem cristão fosse pois o único que dizia é que era papolitano. |
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Estaba de centinela
y, por causa del peludo verme más claro no pudo y esa jue la culpa toda. El bruto se asustó al ñudo y fí el pavo de la boda. |
Ele era o sentinela
e por causa da embriaguez não conseguiu me ver direito e isso foi o problema. O besta se assustou e eu fui o otário da vez. |
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Cuanto me vido acercar
“¿Quién vivore?”, preguntó: “Qué vivoras”, dije yo. “¡Hagarto!”, me pegó el grito. Y yo dije despacito: “Más lagarto serás vos”. |
Quando me viu me aproximar
‘quem vívore?’, perguntou ‘que vivoras o que’ respondi ‘hagarto’ me gritou eu falei devagarinho ‘lagarto é você’ |
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Ahí no más ¡Cristo me valga!
rastrillar el jusil siento; me agaché, y en el momento el bruto me largó un chumbo; mamao, me tiró sin rumbo que si no, no cuento el cuento. |
Foi aí, Cristo credo,
sinto o fuzil sendo carregado: me agachei e nesse momento o besta soltou o chumbo bebaço atirou sem pontaria não fosse isso nem aqui estaria. |
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Por de contao, con el tiro
se alborotó el avispero; los oficiales salieron y se empezó la junción: quedó en su puesto el nación y yo fi al estaquiadero. |
Pelo barulho do tiro
todos acordaram os oficiais saíram e começou o show ficou na guarda o estrangeiro e eu fui nas estacas. |
O castigo das estacas ou estaqueadero era o castigo preferido dados aos gauchos rebeldes ou que tentavam fugir. Eram colocados no chão amarrados de pés e mãos com punhais no chão e tiras de couro nos braços e pernas, usualmente molhados e que secavam no sol , apertando lentamente, além da privação de comida e água. |
A história continua com a deserção de Martín Fierro das fileiras , escapando de uma morte certa: o general estava reunindo tropas para atacar os ‘selvagens’, mas eles nem arma nem munição tinham. Fierro foge e procura por sua casa, mas a encontra abandonada, sabe por terceiros que sua esposa casou de novo e seus filhos estão ‘no mundo’. Nesta hora descreve que é a parte mais triste da historia, ele se revolta e decide , já que é um fugitivo, ser um ‘gaucho matrero’, fora da lei.
Há uma mudança clara no texto, as estrofes ficam mais livres de rima, e em quartetos, não mais sextinas. E se preparem que o momento é tenso.
Fierro, ainda dividido entre procurar os seus filhos, sabendo que é desertor e algo desesperado, vai a um baile, e fica bêbado. Insulta uma mulher a chamando de gorda e a provocando por ser negra “vaa … cayendo gente al baile”, a provoca procurando briga, ainda cantando um insulto racista popular:
A los blancos hizo Dios,
a los mulatos San Pedro, a los negros hizo el diablo para tizón del infierno |
Os brancos foram feitos por Deus,
os mulatos por São Pedro, aos negros os fez o diabo para servir de grafite no inferno. |
Aqui tem um duplo insulto, pois tizón pode ser um grafite, um palito queimado para escrever, como pode ser uma mancha, então ele também está dizendo que os negros servem para escrever assim como para manchar o inferno. |
O marido da mulher parte para a briga, Fierro lhe dá um soco e brigam de facas. Fierro acaba por matá-lo, e assim o deixa enquanto ouve a mulher chorar e bater nele, ao que ele, num momento de reflexão, perdoa a vida mesmo sendo insultado, já fez maldade suficiente. Depois como cristão vai se lamentar que sequer o enterraram, o que mostra o remorso do mal que fez:
Yo tengo intención a veces,
para que no pene tanto, De sacar de allí los güesos Y echarlos al camposanto. |
Eu tenho vontade à vezes
para que a pena não seja tanta de tirar os ossos dali e jogá-los num cemitério. |
Ainda depois cruza com um valentão do lugar, protegido do Comandante, que ele mesmo fere de morte e foge.
Fierro explica o rechaço que o gaucho sente da sociedade :
El nada gana en la paz
Y es el primero en la guerra; No le perdonan si yerra, Que no saben perdonar, Porque el gaucho en esta tierra Solo sirve pa votar. |
Ele nada ganha na paz,
e é o primeiro na guerra; não perdoam se erra, pois não sabem perdoar. Porque o gaucho nesta terra só serve pra votar. |
Para el son los calabozos,
Para el las duras prisiones, En su boca no hay razones Aunque la razón le sobre; Que son campanas de palo Las razones de los pobres. |
Para ele é o calabouço
para ele as duras prisões. Na sua boca não há voz ainda que a razão lhe sobre; pois são sinos de madeira os motivos dos pobres. |
A polícia o persegue por ter matado ‘um moreno e outro na pulpería’, é cercado, mas um dos soldados o ajuda e matam dois policiais, e os outros fogem. O soldado que o ajuda é Cruz e tem uma historia similar a Fierro, mas nas fileiras da polícia da província.
Após outras desventuras, decidem que essa nova sociedade os exclui, e decidem se afastar dessa sociedade e fugir para o oeste, decidem emigrar do seu próprio país e preferem as inclemências da paisagem do deserto do que viver nessa sociedade que os excluiu.
Se perdem pelo deserto a morar com os indígenas, e assim termina o primeiro livro do Martín Fierro.
Si hemos de salvar o no
de esto naides nos responde. Derecho ande el sol se esconde tierra adentro hay que tirar; algún día hemos de llegar… después sabremos adónde. |
Se iremos nos salvar ou não
disso ninguém sabe. Em frente onde o sol se esconde terra adentro teremos que ir um dia iremos chegar depois saberemos onde. |
No final do poema, Hernández deixa claro seu tom de denúncia pelo qual o poema foi escrito:
…y aquí me despido yo,
que referí ansí a mi modo MALES QUE CONOCEN TODOS PERO QUE NAIDES CONTO. |
…e aquí me despeço,
e que refiram así ao meu jeito mazelas que todos conhecem, mas que ninguém contou. |
A repercussão foi imediata: o livro foi praticamente o primeiro best seller argentino, e esgotou edições rapidamente. Seu personagem foi elevado ao lugar de herói argentino e entrou na cultura popular.
Após o sucesso do primeiro volume, Hernández decide voltar a escrever , embora seja um texto bastante diferente do primeiro. Para começar, é mais estudado, com menos sucessos e mais relatos de cada personagem, apresentando mais uma ‘filosofia gauchesca’ que em certos momentos é profética, em outras uma redenção. Vale lembrar que o primeiro volume é escrito durante o governo de Sarmiento, onde ele podia escrever, mas era opositor principalmente da visão dicotômica civilização versus barbárie, e durante o segundo volume Sarmiento não era mais presidente -havia um governo de continuidade com Nicolás Avellaneda, um ministro do governo de Sarmiento, mas pelo menos seu grande opositor estava fora do governo.
Na “Volta do Martín Fierro” passaram vários anos, e Fierro e Cruz voltam das tolderías e não são mais procurados pela justiça.
O primeiro momento de redenção acontece quando, após pesquisar um pouco, consegue reencontrar os seus filhos, que lhe contam suas desventuras, e aqui Hernández quer deixar claro como a sociedade é injusta com os filhos do gaucho.
O segundo e mais importante momento de redenção se dá numa famosa ‘briga das palavras’, a moda de payada, onde Martín Fierro duela nas rimas contra o Moreno, e perde. É um momento que homenageia os payadores (inclusive payadores afroargentinos), além de ser filosofia pura, com Fierro e o Moreno refletindo sobre a vida, o universo e tudo o mais.
Martín Fierro: ¡Ah negro! Si sos tan sabiono tengás ningún recelo:pero has tragao el anzuelo y, al compás del estrumento,has de decirme al momentocuál es el canto del cielo. |
Martín Fierro:
Ah negro se és tão sabido não tenhas nenhum receio: mas já mordeu o anzol e ao compassso do instrumento tens que dizer no momento qual é o canto do céu. |
Moreno
Cuentan que de mi color Dios hizo al hombre primero; mas los blancos altaneros, los mesmos que lo convidan, hasta de nombrarlo olvidan y sólo le llaman negro. Pinta el blanco negro al diablo, y el negro, blanco lo pinta; blanca la cara o retinta, no habla en contra ni en favor: de los hombres el Criador no hizo dos clases distintas. (…) Los cielos lloran y cantan hasta en el mayor silencio; lloran cuando cáin las aguas cantan al silbar los vientos, lloran cuando cáin las aguas cantan cuando brama el trueno. |
Moreno
Contam que da minha cor Deus fez o homem primeiro; mas os brancos altivos os mesmos que o convidam até de nombrá-lo esquecem e só o chamam negro. O branco pinta de negro o diabo, e o negro, de branco o pinta; blanca a cara ou retinta, não fala em contra nem a favor: o Criador nos fez homens de clases diferentes. Os céus choram e cantam até no maior silêncio; choram quando as aguas caem cantam no assobio dos ventos, choram quando as aguas caem, cantam quando brama o trovão. |
Fierro vai perguntando ao Moreno qual é o canto do céu, da terra, do mar, a noite, o amor, a lei, e a todas o Moreno responde. Na sua vez, o Moreno pergunta sobre qualidades e quantidades e outras sutilezas e traz à tona lentamente o fato de ser o filho do homem que tão injustamente Martín Fierro matou.
Hernández coloca a voz dos payadores essa sabedoria das forças elementais da natureza no momento de maior profundidade filosófica, não só para demonstrar a cultura desses homens ‘simples’ onde a simplicidade sempre foi confundida com burrice, a humildade confundida com pouco barbárie, por Sarmiento e outros liberais. À época da volta do Martín Fierro Sarmiento não estava mais no poder, mas sim um ministro que deu continuidade à obra liberal de extirpar da cultura argentina o negro, o índio e o gaucho.
É importante também ressaltar que José Hernández conhecia a origem afro argentina dos payadores, cujos nomes mais famosos são gauchos afro argentinos, sempre esquecidos na posterior reescrita branca da origem do país.
Após Fierro reconhecer a derrota do duelo das palavras evita o confronto físico e se afasta com os seus filhos. É a forma que encontra o autor de reconciliar a rebeldia do primeiro livro.
Essa solução não deixou felizes a todos. O próprio Borges escreveu um relato curto chamado ‘O fim’ com o Moreno e Martín Fierro por fim duelando de fato, e é um dos relatos na famosa recopilação de contos ‘Ficções’, escrito nos anos 40.
Nesta segunda parte do Martín Fierro há críticas políticas sobre a situação do gaucho, porque temos que lembrar que Martín Fierro é um manifesto contra a política geral argentina de deixar o gaucho como um símbolo nacional e ao mesmo tempo na prática é esquecido das políticas públicas.
Yo he conocido cantores
que era un gusto el escuchar, mas no quieren opinar y se divierten cantando; pero yo canto opinando que es mi modo de cantar. |
Eu conheci cantantes
que era lindo escutar, mas não querem opinar e se entretém cantando; eu canto opinando que é o meu jeito de cantar. |
Continuando com o lado reflexivo do segundo livro, há duas partes feitas para tecer um contraponto: no início é apresentado um velho traiçoeiro, o Viscacha, e depois um homem cujo nome diz tudo: o Picardía, que dá conselhos tortos. Picardía é o arquétipo do gaucho pobre que dá jeito em tudo. Teria sido brilhante se tivesse oportunidades mas nasce pobre, fica órfão ‘antes de saber chorar sua mãe’, dá jeito de evitar o convento entrando nas fileiras contra ‘o índio’, é patriota, tentando votar nos seus escolhidos mas o juiz não deixa.
Cuando se riunió la gente
vino a ploclamarla el ñato; diciendo, con aparato, “que todo andaría muy mal, “si pretendía cada cual “votar por un candilato”. |
Quando o pessoal se juntou
veio proclamá-la o cara dizendo com toda pompa que todo iria muito mal se cada um pretendia votar num candidato diferente. |
Y quiso al punto quitarme
la lista que yo llevé; mas yo se la mesquiné y ya me gritó… “Anarquista, “has de votar por la lista “que ha mandao el Comiqué.” |
Y quis na hora me tirar
a lista que eu levei; mas eu o evitei e me gritou “Anarquista, tu vai votar pela lista que mandou o comité”. |
Após se afastar do duelo de payadores, Martín Fierro dá conselhos (bons) aos seus filhos, incluindo este que, num lampejo de sabedoria, serve para os irmãos assim como para as nações do nosso pequeno cone sul :
Los hermanos sean unidos,
porque ésa es la ley primera; tengan unión verdadera en cualquier tiempo que sea, porque si entre ellos pelean los devoran los de ajuera. |
Os irmãos estejam unidos
porque essa é a primeira lei; tenham união sincera no tempo que for, porque se brigam entre eles, os outros fazem a festa. |
E depois dos conselhos, o Martín Fierro fecha com a profecia de que os gauchos irão celebrar sua vida e lamentar sua morte:
Y si la vida me falta,
ténganló todos por cierto, que el gaucho, hasta en el desierto sentirá en tal ocasión tristeza en el corazón al saber que yo estoy muerto. |
E sua a acaba a minha vida,
tenham isto por certo, que o gaucho, até no deserto sentirá nesa ocasião tristeza no coração ao saber que estou morto. |
E assim termina o canto, celebrando sua vida e suas misérias numa genuína humildade (muitas vezes vista incorretamente como sinônimo de pobreza material).
Análise
José Hernández descreveu forma crua e sem meias palavras o descaso do governo com os gauchos e a relação vil na guerra dos poderosos. Basicamente era esse um dos seus objetivos, onde o seu poema é uma demonstração, rima a rima, que a dicotomia civilização versus barbárie é falsa, pois o gaucho tem sua cultura, cultura esta desprezada pela elite portenha, que era alheia ao sofrimento de toda uma importante parte da sociedade. O principal motivo do Martín Fierro ter sido escrito foi dar uma resposta, em versos, à política de Sarmiento, que tratava o gaucho como ignorante, é uma resposta a todo um pensamento liberal de que tudo o que deve ser cultivado é o que vem da Europa.
O poema do Martín Fierro mostrou as raízes da cultura argentina, essa muito além do olhar depreciativo da cidade. E por isso passou a formar no imaginário argentino o protótipo de uma nação. A Argentina real do interior, com os desafios das colheitas, da vida dura de quem alimenta o gado do patrão que morava (a ainda mora) nas quintas ao redor da cidade. Mostrou que a humildade do gaucho não é sinônimo de burrice e sim de uma simpleza crua e autêntica. O caráter combativo da primeira parte e mais reflexivo da segunda deu uma profundidade ao personagem que olha o seu mundo com sabedoria, sabendo que está em extinção mas que mesmo assim se mantém altivo, e com essa atitude conseguiu a imortalidade.
Agora, a transformação do Martín Fierro num herói parece ter tomado o próprio José Hernández de surpresa, pois ele mostrou claramente que o gaucho era um fruto da injustiça que sofre, mesmo não sendo mais justo do que os seus opressores.
A aparição do moreno principalmente o seu filho no segundo livro é uma homenagem aos gauchos afroargentinos. Claramente Hernández percebe que o seu desventurado personagem se tornou um herói e há uma injustiça ali, mesmo que seja um testemunho do desaparecimento do gaucho afroargentino. É desconfiança minha mas colocar o filho do gaucho afroargentino ‘vingando’ Martín Fierro é uma justiça poética porque os muitos payadores eram negros ainda nessa época mesmo que tivessem começado a desaparecer.
E mesmo que tenha sido racista a menção ao gaucho afroargentino, no caso dos povos originários o problema ainda é maior.
Os traços racistas não estão só no personagem de Martín Fierro, são evidentes na cultura que descreve. Porém no caso do ‘índio’, ele era visto não só como alguém inculto, era traiçoeiro e vingativo, ‘sem lei’, nunca é um igual, e essa visão não era só do Hernández. O indígena não é um modelo a seguir e sim sua antítese.
Da vida nas tolderías, as vivendas dos pampas, Martín Fierro irá dizer :
Allí sí se ven desgracias
y lágrimas y afliciones, naides le pida perdones al indio, pues donde dentra roba y mata cuanto encuentra y quema las poblaciones. |
Ali vem-se desgraças
e lágrimas e aflições. Ninguém peça perdão ao índio, pois onde entra rouba , mata o que encontra e queima as pessoas. |
No salvan de su juror
ni los pobres angelitos: viejos, mozos y chiquitos los mata del mesmo modo; que el indio lo arregla todo con la lanza y con los gritos. |
Não se selvam do seu ímpetu
nem os pobres anjinhos; velhos, jovens e pequeninos mata do mesmo jeito; pois o indio resolve tudo com a lança e com os gritos. |
O negro mesmo um igual, gaucho como o Martín Fierro, é descrito numa contraposição ao cristão (branco):
A hombre de humilde color
nunca sé facilitar. Cuando se llega a enojar suele ser de mala entraña; se vuelve como la araña siempre dispuesta a picar. |
A homens de cor ‘humilde’
nunca sei fazer melhor. Quando se enfurece costuma ser de má índole; se transforma como a aranha disposta sempre a picar. |
Então são casos de racismo e xenofobia do Hernández e de uma geração que não vê nem afroargentinos nem povos originários argentinos como iguais. Gostaria de dizer que isso ficou no passado, mas infelizmente…
<Milei>
E já que estamos deixando clara a veia preconceituosa, precisamos acrescentar a xenofobia com o papolitano, que não é culpado nem do tratamento que recebe dos guardas nem do desconhecimento da língua. Mas o objetivo no caso do napolitano é descrever que o imigrante europeu recebe um tratamento gentil, enquanto o gaucho é considerado bruto e sem modos.
Também não podemos deixar de mencionar o grau secundário da mulher, relegada a poucas pinceladas idílicas à mulher de Fierro, onde outras mulheres são descritas como aproveitadoras ou sequer descritas. O Martín Fierro é um duelo, mas um duelo exclusivamente masculino.
Para com o assassinato totalmente desnecesário, colocá-lo como uma pessoa que reagiu ao insulto a sua mulher reforça ainda mais a crueldade desnecessária, e para mim o faz para que não vejamos Martín Fierro como um herói e sim como um tragicómico reflexo de uma sociedade preconceituosa e problemática. Hernández deve ter meditado bastante sobre isso, porque na segunda parte entra a redenção a um crime além de lhe dedicar sabedoria e poesia ao Moreno, filho do assassinado. Esse ponto da valorização poética nos deixará sempre com o questionamento de até onde Hernández descreve uma sociedade ou de fato pensa assim como os seus pares.
O argentino ter tornado Martín Fierro um herói parece falar mais do racismo arraigado na sociedade, e na falta dessa discussão até hoje, do que do seu autor. Então sim o Martín Fierro é racista, mas o problema não é esse e sim o atual argentino não perceber isso como um problema.
Todos esses vieses são de uma cultura, de uma nação, e não propósitos da trama do poema, ele está impregnado desses vieses assim como tantos outros relatos dessa época.
Inclusive há relatos bem piores, como o tom superior do Lucio Mansilla que escreveu o ‘Una incursión a los indios ranqueles‘, descrevendo estes povos originários como beberrões e corruptos. Além do ‘Facundo’ de Sarmiento, que é um retrato mentiroso de Facundo Quiroga criando um líder comunitário violento e bárbaro para combatê-lo depois, numa típica falácia do espantalho.
Talvez o Martín Fierro tenha começado como uma descrição em forma de protesto, mas sua obra sobrepassou essa primeira motivação, se transformando num clássico da literatura gauchesca, e por isso hoje dá título ao maior prêmio cultural argentino.
O Martín Fierro é um épico que inspirou escritores a olhar novamente para uma Argentina em transformação, ainda dando oportunidade ao próprio gaucho de se reconhecer e se dar o seu valor. Também mais tarde essa imagem será retrabalhada e discutida na música, no cinema e na literatura, mantendo viva a chama de um anti herói de uma época antiga, que se recusou a ser extinto e ainda luta no coração de uma nação.
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