Transcrição do episódio #9: Luca

O sul do sul do sul do mundo estava imerso embaixo de um oceano congelado. Alienado, esquecido no seu atraso e ainda convencido de que era o melhor governo do universo, lutava uma batalha entre seus pares que o consumia dia a dia enquanto alguns poucos enriqueciam e o resto minguava.

No país governava um governo militar como um ‘mal necessário’ para impedir que ‘o mal do comunismo se espalhe pelo continente’: assim como em outro países da América Latina na esfera de influência política americana da guerra fria, o importante era ter governos fortes que podiam fazer qualquer coisa, matar seus habitantes de fome, deixá-los na ignorância, mas nunca deixar o comunismo se alastrar.

Então a dura capa de gelo da repressão política mantinha a sociedade congelada e hipnotizada no patriotismo cego enquanto os anos passavam.

Poderiam passar mais 300 anos lutando contra o perigo do comunismo e vendo na TV receitas de tricô e comédias pastelão, mas os problemas econômicos fizeram o governo militar ver sua popularidade cair. 

E daí tiveram a pior das idéias: desengavetar um velho projeto de invasão das ilhas Malvinas para aumentar a popularidade.

Tropas foram levadas. Milhares de soldados chegaram nas ilhas, nossas ilhas, resgatadas das horríveis garras do imperialismo britânico, estávamos mostrando ao mundo que as Malvinas são argentinas, que a pátria e a soberania jamais será pisada, que…

Invadir as ilhas Malvinas funcionou muito bem. Por dois meses. Quando de fato o império chegou, a guerra foi curta, impiedosa, e o circo dos militares argentinos caiu de vez.

O governo se desmanchou como um castelo de cartas. A lenda de sua eficiência e patriotismo se desfez. A guerra comprometeu para sempre a sua imagem imaculada. E ainda havia as Madres de Playa de Mayo e outras entidades reclamando por desaparecidos, mostrando que  precisava acabar de uma vez essa maldita luta interna do terrorismo de estado contra o resto da população.

Em todos esses anos embaixo do oceano congelado, o rock tinha sido resistência, o folk virou música de protesto junto com a música regional, e a protesta se fez ouvir primeiro na classe média, depois nas classes mais baixas. Era uma raiva que estava latente esperando por ser ouvida.

Os escândalos e os problemas econômicos fizeram o governo militar fugir e voltar correndo para os quartéis depois de muitos abusos de poder e de perder uma guerra, uma guerra injusta que não devia sequer ter sido provocada. A capa congelada que mantinha o sul do mundo na sua redoma branca começou finalmente a se quebrar.

Com a democracia, uma enxurrada de ar novo entrou levando o país numa correnteza que o tirou do final dos anos sessenta e o levou em meses até o começo dos oitenta.

Soda Estéreo oscilava entre um gótico e um punk bem comportado no seu simulacro de rebeldia como em ‘Cuando pase el temblor’ que fala mais de sua adolescência pulsando do que da terra tremendo.

Outros como Charly García não se davam ao luxo de sair mas encomendavam pilhas de discos e assim Bob Marley, Weather Report, The Clash entraram no cardápio. Charly Garcia também produziu jovens músicos na tentativa de modernizar o seu próprio repertório, o que funcionou, mas ele não conseguiu parar de ser Charly Garcia e sua música continuava a fazer sentido mas somente na direção do pop asséptico dos yuppies. Guitarras clean, reggae sabor lavanda, teclados de brilhantina.

Os velhos rockeiros perceberam que iriam ficar antiquados muito rapidamente e alguns como Miguel Abuelo embarcaram para os Estados Unidos para se ‘atualizar’.

Miguel Abuelo fazia sucesso com reggaes clean como ‘Sin gamulán’ ou ‘Mil horas’ onde a letra sugere ter um foguete na calça misturado com queixa de existirem guerras. O pop comportado invadiu as pistas das novas boates de Bs As com novos nomes, como Virus. Virus era uma banda de La Plata comandada por Federico Moura que também fazia sucesso com letras insinuantes mas ainda com uma música muito dependente do pop americano.

Mas estava explodindo o punk nas ruas das cidades de sub empregados, filhos da depressão dos anos oitenta, e então uma banda improvável de formação impossível surgiu como um foguete desde o fundo do oceano: Sumo.

Era puro punk, reggae e também ska, com músicas cantadas às vezes em inglês, às vezes em espanhol, às vezes nos dois idiomas.

Muitas delas tinham duplo sentido como “Nextweek” que parece Nesquik, o achocolatado mais famoso na Argentina. Luca na verdade pede desesperadamente por heroína, um pó amarronzado como o achocolatado, assim como Tim Maia pedia chocolate.

Com “Nextweek” Luca Prodan estava exorcizando demônios.

Luca era filho de uma senhora escocesa de família de comerciantes que casou com um italiano também comerciante. Meio italiano e meio escocês, inserido à força na alta sociedade inglesa, foi criado com frieza mas nas melhores escolas, tendo compartilhado aulas com o próprio príncipe Charles no Gordonstoun, um famoso e prestigiado colégio escocês. Era internato, então ele morava sozinho na Escócia enquanto seus pais moravam em Roma. A rotina do colégio era massacrante para o rebelde Luca, e em 1970 e ainda com 17 anos, um ano antes de concluir seus estudos, fugiu do colégio e depois de desaparecido foi procurado até pela Interpol (seus pais achavam que tinha sido sequestrado), e foi finalmente encontrado em Roma, onde tinha ficado esse tempo todo e só foi descoberto por um acidente bobo de trânsito.

Não se identificava com essa escola de líderes e sim com os esquecidos de sempre, com a escória orgulhosa de sua estirpe escocesa, com os ghettos das ex colônias britânicas, com os estrangeiros que sofriam bullying. Um deles, Timmy Mackern, de pais argentinos e que tinha estudado com ele, continuou seu amigo após os estudos e o encontrou em Londres.

Luca tinha empregos temporários e usava o tempo livre para visitar os shows dos bares underground dos ghettos onde os que aprendeu o punk surrado dos bairros de desempregados londrinos, o ska já misturado das colônias, o reggae que começava a conquistar os britânicos.

Sua inteligência e sua inovação musical o levaram a trabalhar em gravadoras mas seu ímpeto autodestrutivo o levava também a longas sessões de heroína. Maconha com seus colegas caribenhos, heroína dos londrinos, a vida de Luca ficou imersa numa névoa onde ele estava satisfeito.

Mas um dia sua irmã Cláudia saiu junto com o seu namorado de carro. Deixaram o carro ligado enquanto injetavam juntos uma última dose de heroína morrendo intoxicados de monóxido de carbono.

O suicídio inesperado de Claudia e o seu namorado bateu forte em Luca. Ele sentiu isso como um fracasso pessoal já que Cláudia tinha começado com a heroína junto a ele, e percebeu que precisava mudar de rumo se não queria terminar igual. E não, ainda não queria morrer como fica claro na música ‘Warm mist’, dedicada a Cláudia.

O pai de Timmy faleceu e ele voltou para Córdoba, na Argentina, e passou a viver por lá. Vendo seu amigo mais do que abatido, o chamou para viver lá, se desintoxicar, talvez começar de novo.

Luca deixou tudo para trás para viver no sul do sul do sul do mundo. Talvez fosse o reduto do terceiro mundo que esteve sempre esperando para ele brilhar. Abandonou de vez sua adicção pela heroína e a trocou pela música e altas ingestões de genebra.

Sumo começou primeiro em Córdoba e depois em Hurlingham, um distrito da grande Buenos Aires com uma tradição de famílias de operários ingleses. Eles ensaiavam na casa de Germán Daffunchio e depois tocavam nos ‘pubs’ da região. Sumo foi uma banda que nasceu underground, ganhava adeptos nas centenas a cada apresentação nos bares como Einstein onde também se apresentavam ‘Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota’ e outras bandas entre o rock, o punk, o reggae e o ska.

Inicialmente eram mais de uma banda: a Hurlingham Reggae Band, Ojos de Terciopelo e Sumito, depois resumidas todas a Sumo. Começaram basicamente os mesmos músicos em todas elas: Germán Daffunchio na guitarra, Stephanie Nuttal na bateria, Alejandro Sokol no baixo e vozes e Ricardo Curtet também na guitarra.

Stephanie tinha vindo do Reino Unido a convite de Luca para formar a banda, mas depois da guerra de Malvinas as hostilidades com ingleses eram constantes. Luca nunca tinha tido uma bandeira e estava mais mimetizado, e era homem. Uma mulher baterista de uma banda punk na Argentina nos anos oitenta bem depois de uma guerra era coragem demais até para uma mulher como Stephanie, e ela voltou para o Reino Unido. Ela foi substituída por Alberto “Superman” Troglio. Ricardo Curtet também sai da banda depois do nascimento do seu filho, na época em que iriam entrar Diego Arnedo no baixo e por último Roberto Pettinato no sax e mais tarde ia também integrar a banda o grande guitarrista Ricardo Mollo.

Até para eles era estranho os mesmos integrantes tocarem reggae e punk pesado, mas os próprios fãs comemoravam e dançavam as músicas, e eles decidiram unir as bandas. Seu reggae e ska com inspiração junkie usa e abusa de ecos, baixos profundos e batidas contagiantes. Era um ar fresco, uma ilha de alívio para um jovem trabalhador no final do dia.

Umas das mágicas de Luca era escrever músicas com um enorme respeito à música regional argentina que se misturava com a música que o mundo estava ouvindo como em Regtest.

A sua idéia de reggae era resistência, uma mensagem profunda que pudesse chegar no máximo de mentes do terceiro mundo, como uma mensagem de esperança, ao menos de lhes dar um momento de sossego onde os jovens que nem trabalho direito tinha, pudessem descansar e dançar um pouco. O seu ska era quase um escapismo, até um ska junkie e recheado de referências a viver num mundo opressivo. O seu rock era uma explosão de críticas a uma sociedade que veladamente era machista e cheia de complexos de classe que sequer entendia direito seus problemas.

Suas músicas eram entregues em fitas cassete no final dos shows. No começo, de graça. Depois, compradas. E hoje são relíquias. Seu primeiro álbum, ‘Corpiños en la madrugada’, não foi gravado em estúdio. A febre se espalhou rápido no rock ausente e o pop vazio que para a maioria nada dizia. O punk de letras fortes, o reggae sincero e cru, o jeito de Luca, ora agressivo, ora introspectivo, fascinava a platéia.

Usavam muito eco e superposição de instrumentos. Havia muitas referências junkies nas letras e no inglês escondiam mensagens para não deixá-las tão evidentes.

Sumo sai dos bares underground do interior de Buenos Aires e explode na Argentina quando aparece em festivais de música renovando totalmente a cena do rock, mas mesmo assim sempre ficaram no underground.

Depois de aparecer em festivais e se consolidarem na cena underground argentina, conseguiram um contrato com a CBS e gravaram seu primeiro álbum em estúdio: “Divididos por la felicidad” numa clara homenagem à Joy Division. 

O lançamento coincidiu com uma apresentação num dos grandes estádios : o show no “Obras Sanitárias”, e pouco tempo depois tocaram junto aos Paralamas do Sucesso novamente no mesmo estádio. Também foram na mesma época para Uruguai.

Os primeiros dois grandes hits foram ‘Los viejos vinagres’ e ‘La rubia tarada’.

Uma música falando dos velhos que reprimem a atitude jovem de se renovar. Velhos não em idade e sim na sua atitude mesmo, como fica evidente na letra onde critica os jovens preocupados com sua aparência.

No final da música cita uma famosa frase de um poema de Rubén Darío ‘juventud, divino tesoro’ que se converteu numa consigna quando alguém tinha alguma atitude escrota, como para exorcizá-la e era cantada em coro nos festivais e nos bares onde Sumo tocava. Essa música ia ganhar sua versão de estúdio somente no segundo álbum.

A outra música criticando os jovens que valorizam a aparência e uma tentativa de viver num mundo de privilégios e ignorando o resto, na forma de uma ‘loraburra’ (rubia tarada) e um ‘pseudo-punkito’, um menino classe média que adere à moda punk mais pela moda que pela atitude. Luca renega os dois e declara que prefere beber uma genebra numa esquina qualquer e que essa seria a verdadeira Argentina, e com isso conquistou o coração de muitos jovens de classe baixa que não se identificavam com o rock progressivo por ser culto, nem o pop por ser da classe média, e nem com a música regional ou o tango por ser reverenciada pelos conservadores. 

A músicas das ruas era o punk, o reggae e o ska. E o rock estava na força deles todos, no seu interior.

A genebra já era muito consumida por ser mais barata para ficar bêbado mais rápido, e tem uma ressaca melhor que a de vinho barato.

Outro grande sucesso no primeiro álbum foi uma música com letra cedida pelo Indio Solari, o líder dos Redonditos e amigo pessoal deles, que falava dessa sociedade reprimida e com muitos problemas a resolver: “Mejor no hablar de ciertas cosas”.

É uma letra que mais sugere do que explica, que coloca esse sentimento de que há uma Argentina que precisamos entender e que está aparecendo mesmo que não se fale dela.

Depois do primeiro álbum começam a chover propostas para tocar desde nos grandes festivais, seus hits tocam pouco mas tocam nas rádios, mesmo que não nos horários pico, e aparecem até nos programas de música da TV. Sim, a TV dos anos 80 era bem estranha.

O sotaque despersonalizado de Luca (‘la rubia’, ‘arasou a tu ciudad’) deixava os jornalistas intrigados que ele ridiculariza na sua pronúncia errada de palavras inglesas.

Mesmo assim o passado junkie de Luca e seu jeito impessoal de ver o sucesso da banda é interpretado pelos meios como arrogância, quando era indiferença. Para ele o que importava era fazer shows intensos, músicas intensas, não cantar afinado ou sorrir para a câmera.

Luca dava tudo no cenário de uma forma que deixava impressionados até os punks mais destrutivos, faziam shows exaustivos toda semana e ainda bebia a sua adorada genebra até cair.

O segundo álbum “Llegando los Monos” saiu quase na sequência, afinal a produção musical do grupo tinha começado 5 anos antes e já tinham muito material. É o disco mais celebrado deles até hoje e tem várias músicas consagradas como “El Ojo Blindado”, “Estallando desde el océano”, “Nextweek”, “Los viejos vinagres” e “Heroin”.

Ele foi apresentado no estádio Obras e tocado no Uruguai e depois no Chile  na Villa del Mar num festival com bandas argentinas e chilenas.

A maioria das músicas eram punk rock mas há reggaes memoráveis como “Que me pisen”, uma crítica anti nacionalista, ou “No good” onde narra como era um namorado desprezado pelos sogros por não ter um emprego fixo ou uma profissão.

Certa vez antes de começar um ensaio ouviu o batera Alberto ‘Superman’ brincando de marcha e Luca sentou na bateria para mostrar como tocar da forma que ele tinha aprendido no colégio. O espírito escocês apareceu e ele lembrou das gaitas imaginando um novo tema. Mollo conseguiu reproduzir as gaitas na guitarra para soarem como os clãs na Escócia. E assim Luca conseguiu a base para uma das músicas mais potentes de Sumo, inspirado num grito de guerra de clãs: Crua Chan. 

Luca conta a estória da batalha de Culloden, quando os clãs da Escócia em 1746 se uniram contra os ingleses de casaca vermelha. Com isso associou a Escócia do século XVIII à Argentina que tinha acabado de lutar e morrer uma guerra contra o mesmo inimigo.

Foi sua declaração final para entendermos que ele se sentia como um dos caídos pelos ingleses. Gritou na nossa fuça a diferença óbvia entre um inglês dominador e um escocês dominado. Ele descreveu os escoceses como os argentinos, caídos em batalha e orgulhosos de morrer em armas.

É um rock intenso com a força da marcha e a intensidade dos perdedores que jamais se rendem, que irão lutar até em Wembley, até nos pubs.

Crua Chan abria muitas vezes os shows para fazer a galera pular como nunca, e era um dos bis mais pedidos.

Sumo lança seu terceiro disco, mais elaborado, no seu auge: After Chabon, que abre com Crua Chan e tem muitas outras músicas que viraram clássicos, pérolas do rock argentino, como ‘No tan distintos’ ou ‘Mañana en el Abasto’ mostrando mais de um Luca introspectivo.

A rotina ficou forte. Tinham shows toda semana, geralmente mais de um, muitas vezes em mais de uma cidade.

Enquanto saía o terceiro disco “After Chabon” participaram de festivais muitas vezes junto com outra banda amiga e que já teve integrantes tocando nas duas bandas: “Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota”. O público era o mesmo, a vontade de dançar e de protestar também.

Era era a rotina que Luca queria: shows, muitos shows. Fins de semana ensaiando ou descansando para pensar novas músicas. Sua cabeça fervilhava de idéias. Mas ficava mais magro a cada dia.

Seus shows ficavam cada vez mais cheios , a febre estava só começando no interior e começaram a viajar mais longe.

A rotina exaustiva de shows já funcionava há meses em que Luca comia fast food e bebia litros de genebra. Estava magro e sem forças.

Fez um show em dezembro de 1987 em que não lhe restavam forças, saiu cedo, foi dormir. E nunca mais acordou. Em 22 de dezembro os seus amigos de banda foram chamá-lo mas não acordou mais. Tinha 34 anos.

A causa da morte foi paro cardíaco. Provavelmente o último empurrão foi a bebida, mas o seu corpo já tinha sido afetado. Sabemos por quem. Por ela, sua noiva mortal da qual teve mais de uma overdose quando morava em Londres.

A sua noiva mortal o perseguiu na Argentina, mesmo não tendo consumido, estava na sua cabeça, saiu de suas veias mas ficou nos seus pensamentos. Ela, o chamando para o sono eterno. Tão suave e enganadora como uma propaganda de xampu.

Depois de sua morte os integrantes de Sumo formaram duas bandas: Divididos e Las Pelotas. A lenda diz que saíram de um comentário único (“Divididos ? Uma ova!”), mas também ‘Divididos’ era um quase codinome de Sumo desde o álbum ‘Divididos por la felicidad’.

O final dos anos oitenta terminou de forma trágica no rock argentino: logo depois de Luca morreram Miguel Abuelo em março de `88 e em dezembro do mesmo ano morreria Federico Moura, da banda Vírus, os dois vítimas da AIDS.

O que surpreende em Luca é que naquele momento em Londres Luca podia ter morrido. Ou desistido. Mas levantou, quis continuar, começou de novo, do zero, quis ter uma vida no sul do sul do sul do mundo, se dedicar completamente a sua paixão, a música, recheá-la com suas letras, seus anseios, suas preocupações.

Nos mostrou o óbvio, que éramos uma sociedade careta e que não se conhecia, nos mostrou que estávamos numa redoma da qual tínhamos saído e não voltariamos nunca mais. Quis nos dar oito longos anos de música, rebeldia, nos entregando sua alma até seu último suspiro sem pedir nada mais do que poder gritar com liberdade, nos fazendo dançar para espantar velhos fantasmas e também refletir e sermos melhores.

Ganhou milhões de fãs latinos que o idolatram até hoje e que festejam sua música rebelde que iniciou um ciclo de uma forma única e autêntica, uma voz desde os caídos na relva escocesa até os caídos nas ilhas esquecidas do sul, na vida injusta dos subúrbios, dos que precisavam uma voz de alento, um grito de protesto, uivando para a liberdade.

Apocalipse – Transcrição do episódio

Acabou.

O planeta como o conhecemos acabou. Finalmente o destruímos.

A nossa casa planetária derrete lentamente no esgoto que a deixamos agonizando em chamas e sangrando detritos nucleares. Provavelmente vai sobreviver a nós, a última de muitas extinções, provavelmente o planeta irá se reerguer em alguns milênios, um suspiro para a vida. Tá, você achou melodramático, mas é isso. Daqui a milhares de anos outras espécies irão recriar a vida, mas agora ela acabou para nós, malditos primatas.

Seguindo as instruções de Gustavo e seus amigos (ou era Geraldo e seus alunos?), irei resgatar tres obras da humanidade para lançar ao espaço, tres obras que traduzam o que algum dia já fomos, o que já conseguimos ser.

Uma música. Um livro. Um filme.

Uma música.

A música que escolhi foi “Op. 35 Scheherezade”, de Nicolay Rimsky-Korsakov, composta ao redor de 1888 do nascimento do nazareno.

Rimsky-Korsakov foi um dos cinco grandes compositores russos do século XIX que se juntaram para compor uma música que fosse autêntica russa. Eram César Cui, Aleksandr Borodin, Mily Balakirev, Modest Mussorgsky e Nikolay Rimsky-Korsakov, chamados de Os Cinco. Residiam na época nas imediações de São Petersburgo e se juntavam para criticar, discutir e aperfeiçoar suas obras em conjunto.

Os Cinco eram compositores que se apreciavam, criticavam e ajudavam mutuamente. Nicolay terminou junto com Glazunov (seu pupilo na época) a ópera “o Príncipe Igor”, obra de Borodin que morreu subitamente e deixou a obra inacabada. Várias obras de Mussorgsky e Korsakov foram compostas na mesma época e com influências cruzadas.

Assim como César Cui, Nicolay era de família de militares e compôs várias obras em alto-mar, visitou grandes portos da época incluindo Londres e Rio de Janeiro, leu muitas obras clássicas, e suas obras lembram as ondas do oceano, o vaivém do mar, a inclemência das forças naturais.

Korsakov passou anos aperfeiçoando e completando uma de suas obras primas, “Scheherazade”, sua sinfonia em 4 atos – Prelúdio, Balada, Adagio e Final.

“Scheherazade” faz referência a uma das obras literárias mais ricas da humanidade: As Mil e Uma Noites, escrito não por um autor mas sim por muitos, compilado várias vezes, e onde seus autores se perderam nas areias do tempo. Areias árabes e de desertos africanos, de beduínos, mercadores, viajeiros e sultanatos poderosos. É provável que tenha começado na Pérsia, e se espalhado no mundo árabe depois.

A estória começa justamente com um poderoso rei persa, Xariar, que descobre que sua mulher o trai com um escravo, mata os dois, e decide que não ficará mais de uma noite com a mesma esposa. Seu amor se converte em ódio, para o poderoso rei nenhuma mulher é confiável, então toda noite dorme com uma mulher diferente, e a mata ao raiar do dia.

Num primeiro momento a estória vai parecer machista (e claro que é, fruto do seu tempo), mas se tentarmos compreendê-la alegoricamente, não é o que fazemos até hoje se entender a mulher como a lua, e toda noite, uma noite diferente ? Somos reis da nossa vida, e a estória das Mil e Uma Noites é a nossa vida, todos os humanos vemos a morte do dia e o renascer do próximo. As Mil e Uma Noites tem seu próprio código onde o homem rico é um homem em toda sua plenitude, realizado, e os infortúnios são provas para uma evolução espiritual.

O rei então mata cada mulher ao raiar do dia, até aparecer Scheherazade. Ela conta no meio da noite uma maravilhosa estória para o rei, mas a interrompe quando chega o dia, prometendo terminá-la na próxima noite. O rei então perdoa sua vida. Na próxima noite, Scheherazade conta o final da estória, e faz a menção a uma nova, que conta até a metade, prometendo terminá-la na próxima noite. O rei então perdoa sua vida. Na próxima noite, Scheherazade conta o final da estória, e faz a menção a uma nova, que conta até a metade, … e assim sucessivamente por mil noites.

“Mil noites” é também uma forma de dizer ‘para todo o sempre’, ou ‘até a eternidade’.

No Mahabharata, a saga indiana compilada pelo poeta Vyasa, essas hipérboles são escritas como “assim como as pedras na margem do rio Ganges”, ou seja, incontáveis.

A estória principal é somente um recurso literário para poder concatenar indefinidamente um conjunto de contos originalmente contados por separado. “As mil e uma noites” eram um conjunto de fábulas, relatos, que foram ao longo do tempo compilados numa ordem específica. Para juntar as estórias é que existe a estória principal de Sheherazade, para que exista uma desculpa e poder contar estórias, que tiveram versões até terem uma versão escrita. Outras obras similares como a Ilíada provavelmente tiveram várias versões, mas se perderam ou nunca foram escritas.

Compilamos estórias para poder lembrá-las. Assim como a poesia usa a rima para facilitar a lembrança do texto, precisamos dessa continuidade para lembrar da estória. Assim foi que a tradição oral coletou o que hoje conhecemos como a Ilíada, o Mahabharata, o Panchatantra, a Bíblia (sim, a Bíblia. Fábulas. Bíblia).

Um dos personagens mais conhecidos das Mil e Uma Noites é Simbad o Marujo, que abre a obra russa de Rimsky-Korsakov. As viagens, a bravura e a inteligência de Simbad inspiram o começo da obra. Simbad traz outra idéia: a estória dentro da estória, pois um Simbad pobre lamenta suas desventuras na porta de um homem rico, que casualmente também se chama Simbad e o convida a entrar na casa e saber como o Simbad marujo ficou rico.

E depois acham que ‘Pai rico, pai pobre’ é uma novidade… essa confrontação do sucesso e do infortúnio, a realização e a desventura é um conflito tão antigo que talvez seja até anterior à própria existência do ser humano, e nas Mil e Uma Noites é narrado na forma de aventuras com um fundo moral, de como seguindo os passos da verdadeira religião nos aproximamos de Alá que nos leva, depois de muitas provações, ao merecido sucesso.

Simbad o marujo conta a primeira estória, onde perde o dinheiro, compra um barco, navega, encontra o que acha ser uma ilha mas é uma baleia enorme onde cresce até vegetação, consegue vender suas mercadorias, voltar e compensar o que perdeu.

Assim, estou aqui contando a estória sobre Scheherazade de Rimsky-Korsakov, que conta a estória das Mil e Uma Noites onde Scheherazade conta a estória de Simbad o marujo, que conta sua estória para Simbad o carregador, e assim estamos abrindo matrióscas literárias, bonecas russas uma dentro da outra.

Korsakov assim nos maravilha contando uma estória oriental para narrar sobre a riqueza de sua mãe Rússia, um russo do século XIX afirmando a identidade russa contando as estórias milenares do oriente, uma estória dentro da outra. A estória humana é uma sequência de matrióscas culturais até o infinito.

Simbad rico conta estória trás estória pagando para o Simbad pobre por cada uma delas, e no final das estórias se despede desejando sorte ao novo Simbad que terá a oportunidade de ser um comerciante, triunfar na vida de forma justa em nome de Alá e com isso seguir os desígnios do Altíssimo. Um final circular com a bendição do criador do infinito.

As “Mil e Uma Noites” tem outras estórias memoráveis, como a sequência famosa de Ali Babá e os 40 ladrões, os assaltantes que escondiam suas ganâncias numa caverna que abria mediante uma senha ‘Abre-te, Sésamo!’. A estória de Ali Babá também tem o mesmo antagonismo do vencer na vida, no caso com um irmão rico e um irmão pobre.

A sinfonia em vários momentos mostra uma riqueza que evoca os palácios do sultão, a riqueza que simboliza o bem vencendo o mal, a diversidade de viajantes que vendem suas mercadorias ao redor do mundo conectando oriente e ocidente.

Korsakov usou o tema oriental, as viagens marítimas de Simbad, para contar a estória na forma de uma matriósca musical onde os temas se entrelaçam, desenvolvem e voltam a sua origem renovados e completos, que homenageia o passado e o reinterpreta para um futuro de integração numa Rússia idealizada como o elo entre oriente e ocidente.

Ok, então Sheherazade será a música para preservar para o futuro, e com ela as Mil e Uma Noites

Na música já escolhi a referência de um livro, um clássico. Mas agora preciso escolher de verdade um livro.

Uma música. Um livro. Um filme

Um livro.

No século XXI surgiu um conceito esquisito de que se comentamos uma obra do começo ao fim falando sobre a trama, cometeremos spoilers, que seria contar coisas que tiram a ‘descoberta’ de quem não conhece a obra. Uma bobagem que reduz a experiência a uma contação, mas ok, quem entende os jovens?

O livro que decidi salvar pode ser totalmente comentado, sem spoilers, pelo menos da trama principal.

Como isso acontece ?

Acontece que a maioria das obras descrevem uma linha do tempo, com eventos sequenciais, mesmo que sejam contadas numa ordem diferente da cronológica são sequenciais.

Somos levados pelo autor a uma sequência de corredores atrás da verdade, ratinhos seguindo o cheiro do queijo saltitando pelos corredores de um labirinto, procurando a lógica para desvendar o mistério, até encontrar a saída. Chamam de spoiler falar da roupa do ratinho ou marcar essa saída numa linha tracejada.

Mas… e se a obra não for um labirinto ? Porque o livro que escolhi é ‘Rayuela‘, ‘O jogo da amarelinha’ de Julio Cortázar.

Rayuela‘ foi escrito de forma não estruturada. É uma novela separada em 155 capítulos, todos eles mais ou menos de uma folha ou duas, no máximo cinco. A gente pode ler a novela na ordem que quiser. Podemos ler sequencialmente, podemos ler na ordem proposta pelo autor, ou podemos ler na nossa própria ordem. Porque não há uma ordem definida. É uma não-novela, uma contra-novela. É possível entender a trama, conhecer os personagens, entender o porquê de cada capítulo à medida que a gente lê, sem precisar ler numa ordem pré-determinada.

Isto significa que cada leitor que decidir uma ordem de leitura, irá ler praticamente uma obra diferente. A obra se desenha a si mesma para o leitor, se mostra de forma diferente para cada um que a tentar desvendar. Se uma novela clássica de detetives é um labirinto, ‘Rayuela’ é um quebra-cabeça visto de cima. Diria até que é um quebra-cabeças incompleto porque a escrita de Cortázar é surrealista, não fala de fatos a seguir como um ratinho seguindo pistas, descreve o que os personagens entendem e sentem e é dessa forma que vamos deduzindo o que acontece.

A trama não é o que acontece. A trama é o emaranhado de sensações dos personagens atrás de cada pedrinha, de cada propósito que os leva para algum lugar,  casinha a casinha pulando da terra ao céu. Como nossos pequenos projetos na vida, planejamos pequenas metas, quando a alcançamos, jogamos a pedrinha novamente, subindo até o céu.

O nome da obra já é uma provocação.

Julio Cortázar, além de escritor, era professor de literatura mas chegou um momento em que a seqüencia de governos totalitários o forçou a sair de sua terra. Mas ele nunca deixou esses questionamentos de lado.

Na obra tem vários personagens importantes, mas não um protagonista. Os que mais se parecem com protagonistas são Horacio Oliveira e Lucía, La Maga. As ocasiões em que estão juntos ou separados, quando aparece Rocamadour, o filho da Maga, são centrais para entender a obra.

Há outro personagem, um quase alter ego de Cortázar, Morelli, que nos explica o ir e vir dos personagens, um escritor que comenta sua vida, a obra, faz uma interpretação da sua situação quase como um narrador dentro da estória, só que interpretando, se julgando, procurando entender o que acontece.

‘Rayuela tem tres partes: “Do lado de cá” que acontece em Buenos Aires, “Do lado de lá” que acontece em Paris, e “Dos dois lados” que acontece em qualquer lugar, ou em lugar nenhum, só na cabeça dos personagens.

…e se engana quem acha que são só devaneios de personagens etéreos. Acontece que por trás das reflexòes há morte, desencontros, amores profundos e solidão. As passagens em Paris são intensas mas melancólicas, são exilados à força que precisam trabalhar e estudar fora da Argentina ou Uruguai porque não podem se realizar nos seus países de origem, são lugares que os expulsaram com suas políticas obtusas, com sua recusa a crescer.

A escrita com um forte pé no surrealismo e ao mesmo tempo a obra desestruturada que parece nos descrever pequenos pedaços de cada situação fazem com que pareça a simples vista que o assunto é simples, mas é muito mais complexo, muito mais profundo, e quem lê vai lentamente afundando na lama da compreensão humana, desses pequenos fantoches de si mesmos, de suas lutas, de seus desencontros.

Rayuela é uma obra completa e incompleta ao mesmo tempo, como a vida humana. É uma obra não sequencial que precisa da intensa compreensão do próprio leitor, e ao mesmo tempo fruto de um tempo de conflitos existenciais fortíssimos, e por isso será o livro que levarei para preservar de nossa extinção.

Eu sei que estou trapaceando. Com a música levei também um livro, com o livro levei vários livros, e com o filme também vou falar de um livro. Ou vários. Ou todos.

Uma música. Um livro. Um filme.

Um velho clássico, é isso que vou resgatar, a versão cinematográfica de um famoso livro de ciência-ficção dos anos cinqüenta: Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, dirigido por François Truffaut em 1959.

O filme começa com uma narração em off apresentando o título, os atores, a produção, equipe técnica, direção, tudo isso enquanto vemos antenas de TV. Não há nenhum texto escrito no filme, nem na sua apresentação nem na estória que justamente narra um futuro distópico onde os bombeiros procuram e queimam livros -o título faz referência à temperatura na qual o papel vira cinzas.

A humanidade rejeitou o conhecimento das gerações anteriores. O conhecimento traz dúvidas, e é muito mais maleável e calma na sua homogeneidade uma sociedade sem dúvidas e sem memória.

Guy Montag, o protagonista, é um líder dos bombeiros, hábil encontrando e queimando esses pequenos depósitos de confusão. A sua esposa Mildred, do lar, tem uma TV quadrada e plana na parede principal da casa, e ‘participa’ de uma novela com uma pequena fala e uma decisão na estória, uma decisão tão fútil como sua excitação de estar ‘participando’.

Depois de vermos Montag em ação algumas vezes, descobrindo e queimando livros, vemos ele no trem bala em trilhos suspensos, onde pessoas aparentemente calmas não sabem o que fazer com suas emoções. Ele conhece Clarisse, uma jovem professora infantil. Clarisse, de cabelos curtos, é personificada pela mesma atriz que faz de sua esposa Mildred, de mechas loiras e longas.

Caminhando juntos até suas casas ela começa a fazer algumas perguntas :

“É verdade que muito tempo atrás bombeiros apagavam incêndios ao invés de queimar livros?”

“Que idéia estranha, casas são a prova de fogo”

“E por quê você queima livros ?”

“É um trabalho como outro qualquer. Livros são… lixo. Bobagens. Deixa as pessoas infelizes.”

“Você é feliz ?”

Montag fica com essas perguntas na cabeça. Participa de novas ações, mas aproveita para pegar alguns livros escondidos. Começa a ler alguns às escondidas.

Mildred tem uma crise, ‘esquece’ quantas pílulas tomou e tem uma overdose. ‘É muito comum’ dizem os técnicos que a atendem ante o olhar perdido e estupefato de Montag. ‘Vamos renovar o seu sangue e rapidamente estará novinha em folha. Quiçá até com fome, ou querendo algo a mais’ diz o técnico numa piscadela.

É assim que Montag começa a questionar sua aparente felicidade, a felicidade aparente de uma sociedade que não resolveu seus problemas existenciais, suas dúvidas profundas, apenas finge que não existem.

Nesse momento de crise é que Montag acompanha Clarisse para o que deveria ser o seu novo emprego de professora só que é um fracasso. E para coroar a crise, a amiga da Clarisse é descoberta. Ela tinha uma enorme biblioteca na casa, um porão completamente repleto de livros, que ela sequer esconde.

Uma parte memorável do filme é o discurso do chefe de Montag sobre o por quê dos livros serem desnecessários e prejudiciais, é cheio de falácias mas necessário ser ouvido para entender o argumento da ignorância hoje tão utilizado:

Veja, Montag. Toda esta filosofia, livremo-nos dela.  É ainda pior que as novelas.  Pensadores, filósofos, todos dizendo exatamente a mesma coisa.

“Eu é que tenho razão. Todos os outros são idiotas.” Num século, nos dizem que o destino do Homem está predefinido. No seguinte, dizem que ele tem liberdade de escolha.  Não passa de uma moda, só isso.  Filosofia...

Como vestidos curtos este ano, vestidos compridos no próximo.  Olhe. Todas estas histórias sobre os mortos. Chama-se ‘biografia’.  E ‘auto-biografia’.  “A minha vida”. “O meu diário”. “As minhas memórias”.  “As minhas memórias íntimas”.

Claro que, quando começaram, era apenas uma vontade de escrever. Depois, após o segundo ou terceiro livro, tudo o que queriam era satisfazer a sua vaidade, destacarem-se no meio da multidão, ser diferentes, poderem olhar para os outros a partir de um pedestal.

Ah, um premiado pelos críticos.  Este é um dos bons. Claro que tinha os críticos do lado dele. Cara sortudo.

Me diga só uma coisa, Montag, adivinhe, quantos prêmios literários foram dados neste país, em média por ano?

5, 10, 40? Hmm? Nada menos que 1,200! Qualquer um que escrevesse alguma coisa estava destinado a ganhar um prêmio.

Ah, Robinson Crusoé. Os negros não gostavam desse por causa do personagem Sexta-Feira. E Nietzsche. Ah, Nietzsche. Os judeus não gostavam do Nietzsche.

Agora, aqui está um livro sobre o câncer do pulmão. Todos os fumantes entraram em pânico, por isso, e para a paz da alma de todos, vamos queimá-lo.

Ah, agora este deve ser muito profundo. A Ética de Aristóteles. Qualquer um que tenha lido este deve acreditar que está um degrau acima de quem o ainda não leu. Está vendo? Não é nada bom, Montag. Todos temos de ser semelhantes.

A única maneira de sermos felizes é que todos sejamos iguais.

Por isso, temos de queimar os livros, Montag.

Como se a busca do conhecimento fosse uma busca do ego, como se professores fossem doutrinadores de suas verdades e filósofos fossem vendedores de dogmas.

Os oficiais queimadores de livros comentam que a casa deveria estar vazia, mas a sua dona está lá, ri baixinho enquanto eles colocam os livros para serem queimados junto com a casa. Os bombeiros a advertem para sair, mas ela afirma que os livros são a sua vida, que ela conversa com eles. E num momento de descuido, ela mesma joga o fogo nos livros já repletos de gasolina e queima junto com eles, num protesto e ao mesmo tempo numa posição muito clara de preferir morrer a viver uma existência vazia. Montag fica profundamente chocado com a atitude dela e fica evidente na sua expressão que entendeu o recado: não dá para viver sem livros, não dá para viver sem memória.

Montag passa então a ler incansável -até para as amigas da esposa. Percebe que sua vida anterior acabou e orienta sua amiga Clarisse a fugir. Mas sua esposa Mildred está cansada disso, foge e o denuncia. Quando Montag está pronto para presentar sua demissão, é convencido pelo chefe a fazer uma última busca.

A próxima casa a limpar é a sua. Ele é forçado a queimar seus livros e na discussão mata o seu chefe que queima com os livros, e Montag foge. Após uma perseguição, Montag consegue se livrar dos seus captores, e é ajudado a fugir onde também está a Clarisse.

No meio da floresta, longe dessa humanidade doente, existem pessoas que preservam livros. Como não podem lê-los, os decoram e os queimam, preservando os livros onde não podem ser achados: nas suas mentes, passando de uma geração a outra recriando uma tradição oral.

E assim ainda resta uma esperança para a humanidade. O final do filme é melancólico pelo que a humanidade se tornou, mas com uma ponta de esperança, onde os livros vivos se misturam na paisagem, se preservando até que possam voltar a uma vida plena, representando a persistência da humanidade mesmo na adversidade.

E é por isso que vou preservar este também: “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury por François Truffaut, um dos gênios da nouvelle vague, dos grandes diretores da Europa que se reeguia da guerra e mostrava uma nova interpretação que Hollywood ainda não entendeu.

Creio que posso tentar preservar outra obra. Ainda dá tempo. Poderia falar de outra obra musical, que pudesse nos ilustrar, talvez, … a nossa … persistência… ?

Transcrição do episódio #05: “O que nós fizemos ?”

Feio“.

Um dos temas mais desestruturados, improváveis, desconexos da extensa carreira de Miles Davis. E para chegar não faltou a coragem de atravessar uma improvável sequência de momentos musicais de sua vida.

Miles Davis já tinha conhecido o bebop de primeira mão com Charlie Parker. No começo de sua carreira tocou com o quinteto do Bird, fazendo apresentações primeiro nos famosos bares de jazz de New York depois em zig zags malucos ao redor do país, e mais tarde percorrendo Europa show atrás de show.

As crônicas narram altas festas e longas sessões de heroína (que na época do quinteto todos os integrantes usavam), mas quem vê a sequência de datas das gravações não imagina como faziam com essa rotina puxada de gravações, vivos, ensaios. Provavelmente deixavam para dormir para outra vida.

Até parece impossível dizer isto, mas após a fase com o Charlie Parker Quintet, antes dos anos 50, Miles tenta carreira solo e começa a montar sua própria banda. Já? Mas como?

Miles foi um menino que nasceu para a música. Embora fosse de uma família de classe média onde não havia músicos profissionais, sua mãe era professora de música, que gostava de piano, mas Miles ganhou seu primeiro trompete aos 13 anos e já tocava nas pequenas bandas na East St Louis , Illinois, dos anos 30. A educação de seus pais lhe dizia que devia estudar na famosa Julliard School.

Mas o espírito rebelde o levou até encontrar a melhor educação boêmia nos bares onde as bandas famosas tocavam. E tão precoce era Miles que passou a tocar ainda jovem junto aos grandes como Charlie Parker, o Bird e depois Coleman Hawkins, e antes dos 25 anos já tinha sua própria banda.

Assim como a banda floresce (e John Coltrane está nessa banda), o uso da heroína os faz ter improvisos erráticos, e falhas em marcar as apresentações.

Miles escondia dores nas suas cordas vocais e seja para apagar a dor, seja para aumentá-la depois, a heroína foi aquela companheira que vai destruí-lo lentamente entre momentos de adicção forte e outros de abstinência. Mas consciente de poder ser muito mais, renasce em ’55 numa brutal performance em Newport junto ao grande Thelonious Monk tocando um de seus clássicos: ‘Round Midnight.

Brilha novamente, toca suas melhores melodias com John Coltrane, o jovem virtuoso que ele ajuda assim como foi ajudado ele mesmo pelo Bird.

Tempo depois desfaz o quinteto e inova novamente trazendo um condutor que o ajuda a revolucionar seu jeito de interpretar: Gil Evans, que ele conhecia do começo de sua carreira. Nos primeiros anos Miles tinha estudado música de orquestra e eles dois tinham essa preferência, além dos dois serem apaixonados pela sonoridade dos compositores espanhóis como Joaquín Rodrigo, autor do famoso Concierto de Aranjuez.

Miles encontrou seu tom com Gil Evans, misturando com perfeição a música de orquestra com o mais fino da improvisação jazzística. Coltrane se atirava em solos rápidos e virtuosos de um jeito que só um gênio como ele poderia fazer. Miles sabia que não poderia seguir esse caminho, então criava ambientes e jogava o ouvinte neles. Seu trompete preenchia os vazios com tons inusitados, às vezes calmos como o mar, às vezes tensos de um detetive descobrindo um mistério proibido.

Já esta fase mostra a predileção de Miles pelas bordas do jazz, ao encontro de sonoridades e preferências musicais que vão além não só do bebop.

Kind of Blue é filho desta época e é para muitos o ápice de Miles Davis. Porém sua incansável criatividade traria ainda mais surpresas.

Coltrane já tinha construído seu brilhante Giant Steps. Outros compositores estavam navegando entre o free jazz, os standards ou recheando as tardes da TV com algo mais light e compreensível para o homem branco de classe média que se supunha estava do outro lado do aparelho. Porém uma moda ia deixar todos eles em segundo plano. E, além de geniais, estes músicos não gostavam de ficar em segundo plano. Era uma moda que ganhou uns nomes estranhos e depois todo o mundo chamou de …rock.

Um ritmo idiota, uma merda de uma música de quatro compassos, tocada por músicos que mal sabiam segurar seus instrumentos. E as meninas deliravam. E era contagiante. E os caras aplaudiam que nem imbecis. E a febre estava só começando. Era a banalização de tudo que a música moderna podia oferecer, eram músicas fáceis, letras de namoro ou de carros, vulgares como um chiclete na calçada, barulhentas.

O rock deixou perplexo o jazz, que ficou limitado às festas caretas dos brancos encurralados que odiavam essa moda desordenada. Paradoxalmente, o rock bebia diretamente da mesma fonte do jazz, do swing, dos guetos das cidades, do ritmo acalorado dos elevadores, da necessidade dos jovens de fugir desesperados de uma necessidade imperiosa de produzir numa era de consumismo ditada por uma geração repressora e filha das guerras.

Mas Miles estava preso no espiral criativo que a heroína lhe permitia: quando a depressão o pegava desprevenido, os anos se passavam sem ele perceber nos braços de sua noiva mortal.

E os anos se passaram.

O rock agora estava enchendo os bolsos das gravadoras, e as gravadoras enchendo os jovens músicos de aparelhos, instrumentos, estúdios, giras, tours, LSD, e o rock saiu do seu claustro de música de vagabundos, ganhou as ruas, ganhou criatividade, e também conseguiu ganhar uma diversidade na composição que deixou a turma do jazz perplexa.

O rock ficou famosinho, complexo, casou com a política, se engajou na militância contra a guerra que mandava seus filhos a uma Kali sempre faminta de sacrifícios humanos, flertou inclusive com todos os povos e todas as origens.

Muitos compositores e músicos da velha guarda torceram o nariz para essa novidade de música que falava de amor fácil e sentimentos fúteis. Mas não Miles. Sua necessidade de novas experiências o fez compreender que era ele que deveria mostrar o rumo.

Em 69 os malvados eram os russos soviéticos e os EUA estavam envolvidos em vencer a corrida espacial e chegar até a Lua.

E Miles Davis estava germinando um renascer do jazz.

Em fevereiro de 1969, já com algumas composições vagas em mente e muitos músicos para ajudá-lo, Miles começa uma nova gravação, que seria chamada de “In a Silent Way“. Foi gravado em uma sessão, e eram dois temas: “Shh peaceful” e “In a silent way“. Assim como o rock progressivo , os temas dessa época são em geral longos. Estavam se desvencilhando da ditadura da canção que impunha até 5 minutos para poder tocar nas rádios e ser popular nos bailinhos. Mas estes intérpretes estavam percebendo que havia um enorme espaço por álbuns conceituais e longos a serem apreciados por um público que agora tinha tempo e disposição por ouvir música, desfrutar do encarte, curtir um som, algo que não acontecia desde a música de orquestra.

Mas “Silent Way” era como uma planície calma desde onde Miles enxergava uma montanha enorme de jazz fusion.

Continuaram tocando Silent Way junto com outras músicas do antigo repertório de Miles, com algumas novas músicas do Zawinul como “Directions”. E começaram a surgir músicas novas. A primeira foi “Sanctuary“.

E onde está a melodia em “Sanctuary” ? Onde está a frase que vai nortear os improvisos ? Todos os instrumentos tem um momento de destaque mas não são necessários solos virtuosos e longos e sim momentos de reflexão onde o ambiente é o importante. Onde estão os tons para encontrar a estrutura principal ? Ao invés disto temos um ambiente tenso, uma melodia que parece circular ao nosso redor. Miles nos mostra seu santuário de ídolos antigos, répteis lovecraftianos, velhos deuses dormindo num crescendo que nos escancara esse medo inenarrável a esses deuses antigos esperando nossa atenção a eles para renascer !

Após a gravação em fevereiro de ’69 do que depois seria ‘Sanctuary’, Miles forma definitivamente os integrantes da banda que irá gravar com ele a partir do quinteto de antigamente, que eram Chick Corea no piano, Jack DeJohnette na bateria, Dave Holland no baixo e Wayne Shorter no saxo. A eles se somam Herbie Hancock e Joe Zawinul nos teclados, Lenny White na bateria e percussão, Don Alias e Jumma Santos nas congas, John McLaughlin na guitarra e Bennie Maupin no clarinete.

Isso mesmo: duas congas, duas baterias, dois baixos, dois pianos elétricos (Herbie Hancock se reveza com Chick Corea no lado esquerdo, e Joe Zawinul fica no lado direito). Essa é a base dupla junto com os quais os ventos (clarinete, trompete e vários tipos de saxs) irão improvisar juntos (e imagine gravar tudo isso em 8 canais!).

Eles gravam em tres sessões entre 21 e 23 de agosto de 1969 o álbum que será publicado somente em março de 1970. “Bitches Brew” foi publicado com um álbum duplo em vinil.

A apresentação do disco é a faixa “Pharaoh’s Dance” de Joe Zawinul e leva todo o lado A do primeiro disco, cujo lado “B” é a música título da obra, “Bitches Brew“. “Pharaoh’s Dance” partiu de uma idéia de Zawinul e é creditada a ele, mas as sugestões de Miles para os músicos e as edições posteriores junto a Teo Macero, produtor de Miles Davis, transformaram totalmente a música em termos de tema principal, e forte nas suas nuances rítmicas e propostas musicais.

Aparentemente Miles já tinha a idéia de destruir completamente a melodia da música para deixá-la atonal e psicodélica para que os músicos pudessem dançar em cima dela como uma procissão de jovens bruxos sacrificando antigos deuses do jazz tradicional numa pira fantasmagórica, dançando no amanhecer do sol de uma fusão de um jazz com ritmos latinos, com pianos elétricos, congas, saxos encarregados do ritmo e com guitarras enlouquecidas criando espirais até o infinito.

Uma constante no álbum é que Dave Holland no baixo e Jack DeJohnette na bateria são os que levam a melodia e o sentido da música para algum lugar conhecido por humanos. O ritmo em “Spanish Key” é contagiante e convida o improviso e até um swing dançante.

Os outros instrumentos improvisam chegando em dimensões não conhecidas e voltam em ráfagas como metralhadoras esquecidas numa batalha antiga. É uma batalha onde todos são vencedores e onde o ritmo celebra o improviso fantasmagórico e bestial.

Segundo Teo Macero isso aconteceu nas gravações de todas as músicas. Jack DeJohnette, responsável pela percussão junto a Lenny White, disse sentir que as indicações de Miles faziam com que compreendesse sua intenção, mas não muito mais do que isso. John McLaughlin, num dos tres dias que duraram as sessões de gravação na Columbia Records, saindo da sala perguntou para Herbie Hancock “você tem idéia do que nós fizemos? O que nós fizemos?” e Hancock respondeu: “Bem-vindo às sessões de gravação de Miles Davis“.

Zawinul também estava descontente porque não tinha gostado das gravações e tinha falado isso diretamente a Miles Davis. Estavam na limousine de Miles, com um Zawinul carrancudo. “Não gosto, não gostei do que tocamos“.

Meses depois entrou novamente na gravadora, ouviu um som que lhe chamou a atenção e perguntou à secretária “Uau, que som é esse?” e a secretária respondeu “esse som é o senhor tocando com Miles ‘Bitches Brew‘”.

Zawinul percebeu depois que faltava a santa mão da edição, da combinação do que foi executado e da música que estava tocando na cabeça de Miles, do que os editores iam cortar e do que iam enfatizar. Zawinul iria ficar tão entusiasmado que muitas das sessões já na sua própria banda carregavam o mesmo sentimento, o mesmo brio.

O ponto central da obra é “Bitches Brew“, que toma todo o lado B do primeiro disco.

Para nos levar à tensão inicial só ouvimos uma nota no baixo repetidamente num ritmo onde parece pontuar somente os espaços vazios, e as deixas do trompete dizem tudo dessa rebeldia chocante, atonal e inesperada. O trompete vai nos guiar numa viagem psicodélica que o jazz jamais tinha mostrado, muito menos com essa força. Miles então constrói um crescendo a partir desses poucos espaços.

Os efeitos no trompete, os pianos elétricos de Corea e Zawinul sugerindo giros temáticos ao redor de si mesmos, os devaneios do saxo, todos praticamente girando em torno uns dos outros perseguindo sua identidade num crescendo construído ao redor da mesma variação tonal e que cai uma e outra vez na mesma tensão inicial, porém cada vez mais maduro, mais contundente, mas deixando um amargo sabor de ter sido levado até uma planície de sons plenos numa noite sem lua, e deixado lá para contemplar a maravilha de um fusion que estava nascendo do free jazz e do rock sinfônico e da psicodelia.

Um questionamento que a gente precisa fazer para entender este disco gira em torno do que seria uma música “agradável”. O caminho mais direto para agradar no sentido musical é deixá-lo confortável, que sinta o ritmo e se deixe levar, mas nessa época o rock estava deixando de ser só bonitinho e agradável, e estava se questionando. Se a arte veio também para nos questionar, Miles e seu grupo navegam pelo free jazz, que seria o extremo oposto ao agradável. Num extremo temos a possibilidade de fazer o pessoal se mexer, dançar, desfrutar da música, como é uma salsa, um mambo, a música latina como um todo, que se prestava muito muito a improvisos deliciosos, e do outro lado a bagagem de profissionais do jazz inspirados num novo tempo.

Mas como um budismo musical, o ‘caminho do meio’ foi o fusion, com muitas variações, e no caso de Bitches Brew a intenção toda foi a de juntar esses dois mundos. E com isso os integrantes ficaram inspirados por quase uma década em explorar esse vasto mundo entre os ritmos africanos, latinos e o mais puro jazz.

Bitches Brew” inspirou as interpretações do free jazz dos anos ’70, isso fica evidente nos solos das apresentações da música ao vivo onde Wayne Shorter persegue Keith Jarrett desesperadamente, ante um Miles Davis mais contemplativo. Ela usa ainda mais profundamente todos os músicos numas idas e vindas que mesmo com psicodelia à toda, é o mais puro jazz fusion num ímpeto, brio, tesão contagiante que fecha o primeiro disco e com isso sua proposta revolucionária.

As outras faixas como “Miles runs de voodoo room” são variações extremamente criativas aos temas de “Pharaoh’s Dance“, ou anti clímax do tema central como “Feio” onde além dos músicos já citados participa Airto Moreira fazendo a cuíca seguir o trompete de forma sensual e estranha, ficando ainda mais psicodélica do que o tema central. Esta foi a última música que irá compor o álbum duplo e foi gravado em janeiro de ’70. O disco será definitivamente lançado em março de 1970.

O álbum demorou para fazer sucesso mas depois foi uma referência para os ouvintes de tanto do jazz quanto do rock, e Miles saiu definitivamente do underground para o estrelato como mentor de um novo jazz. Virou um sucesso e foi assim que os integrantes da banda passaram a interpretá-las nas mais diversas formas, desde o free jazz até o fusion.

A maioria dos integrantes entendeu o recado e no restante da década formaram as maiores bandas do jazz fusion, que juntava os elementos do jazz, do rock latino e do rock mais sinfônico para gerar harmonias complexas e ritmos que preencheram o underground instrumental dos anos 70 :

  • Herbie Hancock, um dos mais jovens integrantes dessa super banda e que já era membro do quinteto/sexteto compartilhando o piano com Chick Corea, formou depois o lendário Headhunters caindo de cabeça no funk instrumental e levando o fusion a outro patamar. É claro que terá o crítico que irá dizer que aquilo não é jazz, é hip-hop, funk, soul, mas quem sou eu para criticar Hancock, que passeia até hoje entre todos esses estilos com garbo e elegância ?

 

  • Wayne Shorter e Joe Zawinul irão fundar juntos a banda mais bem conhecida de jazz fusion: Weather Report. A eles irá se juntar mais tarde uma lenda do jazz, um mestre do baixo que irá inspirar também muitos rockeiros: Jaco Pastorius. Zawinul era já um tecladista e compositor de jazz bem resolvido que emigrou para os EUA atrás da diversidade de sons latinos, afros, europeus, que tanto o fascinavam.  Wayne Shorter já era um saxofonista criativo mesmo jovem, e um amigo pessoal de Miles. Compartilhava com ele o gosto por solos curtos, e tinha várias composições que foram utilizadas como base em “Bitches Brew”. No Weather Report conseguiu desenvolver solos mais elegantes junto com uma base de ritmo latino -Alex Acuña, percussionista peruano, foi uma das grandes bases percussivas do Weather Report.

 

  • Chick Corea, que também junto com Stanley Clarke, Al Di Meola e outras feras irá formar umas das lendárias bandas de jazz fusion dos 70: Return to Forever, e que irá ganhar o Grammy de 1987 com MusicMagic. Corea já tinha uma forte formação clássica e o aprendizado com Davis vai ajudá-lo a voar nas composições. Return to Forever evoca tanto ritmos latinos quanto da Espanha, tem seus momentos mais rockeiros e seus momentos mais sinfônicos.

 

  • John McLaughlin que depois irá fundar junto com Jean-Luc Ponti a Mahavishnu Orchestra. O nome da banda deriva da devoção de vários dos integrantes ao guru Sri Chinmoy que recomendou incluir ‘Mahavishnu’, e também recomendou inclui ‘Narada’ ao Michael Walden, o percussionista. A ‘Mahavishnu Orchestra’ foi outra grande banda do jazz fusion com grande influência clássica e de longos e virtuosos improvisos. McLaughlin também homenageou Miles e o reverenciou com músicas magníficas.

 

Enquanto muitas bandas de jazz fusion foram se consolidando e enriquecendo seu repertório, Miles foi aos poucos sumindo e deixando novamente sua noiva mortal entrar pela porta dos fundos. Levou quase dez anos para se reerguer, brevemente, mas diversas doenças nunca mais o deixaram, e o levaram ao seu destino final na porta dos anos 90, embora o eco de suas criações seja imortal.

 

#04: Evita- transcrição do episódio

O século vinte começa tenso e conflitante no sul do sul do sul do mundo.

Após um longo tempo de domínio pelos conservadores, uma pressão constante da classe média argentina agora força o governo a estabelecer as regras para a primeira eleição presidencial pelo voto secreto.

Argentina seguia uma tendência mundial das democracias emergentes do século tentando varrer para o tapete os anos de governos conservadores que fraudavam ou compravam as eleições. O país começava a se enxergar como nação dentro de um crescimento econômico dado por uma Europa consumida por uma guerra terrível, incapaz de prover as máquinas das recentes indústrias, faminta pelos alimentos que América do Sul lhes dava, e ainda exportando trabalhadores que fugiam do caos da Grande Guerra. Europa sem querer gerou o cenário que empurrou o continente sul americano para a modernidade. Mas a diferença social era enorme e as velhas feridas de injustiças passadas ainda estavam abertas, e ainda ia jorrar mais sangue.

Os conservadores acharam que ganhariam mais uma, mas em 1916 Hipólito Yrigoyen, da Unión Cívica Radical, é eleito o primeiro presidente pelo sufrágio secreto, obrigatório e universal.

Universal… ? Não mesmo! Só os homens votavam. Era chamada de universal porque não votavam só alguns privilegiados e sim todos os habitantes… do sexo masculino.

Porém Yrigoyen conversa com os sindicatos ao invés de mandar a polícia bater neles nas greves, como era praxe até então, e uma nova aliança se inicia. Os trabalhadores já mais organizados e que queriam ver também os frutos dessa prosperidade, passam por primeira vez a enxergar o governo de igual para igual e não de baixo para cima.

Infelizmente essa aliança não dura muito tempo: os grupos socialistas são mal vistos no mundo todo depois da revolução russa, são perseguidos ferozmente, e os trabalhadores que organizam greves sofrem retaliações brutais. Somente a Semana Trágica cobra centenas de mortos além de ser o começo do fim do novo governo.

Para ter um contexto do conflito que ocorreu na Semana Trágica, ele começa no início de 1919 numa empresa metalúrgica no centro de Buenos Aires, numa greve que já durava um mes e pedia pautas revolucionárias como descanso no domingo e pagamento de horas extras. Não entraram na pauta práticas corriqueiras como trabalho infantil.

Os donos das indústrias se negam a ceder, e os manifestantes são reprimidos pela polícia, acionada por eles ante a indecisão do governo em intervir ou não. Quanto pior a repressão, mais trabalhadores protestam, mais tumulto, maior a repressão policial numa espiral de violência onde as mortes se alastram e a cidade vira um caos, entra em intervenção ante manifestantes cada vez mais numerosos e ataques da polícia além de ataques anônimos de grupos como a Liga Patriótica.

A Liga Patriótica era um grupo de extrema direita que se opunha à chegada de imigrantes, considerados a escória da Europa, elementos indesejados que iriam tirar o lugar dos ‘criollos’, os nascidos no país na emergente industrialização. Era composta por paramilitares e organizados por jovens da alta sociedade da época que se mascaravam para cometer atos violentos como invasões, mortes de líderes gremiais ou incêndios em barracos ocupados por imigrantes.

Mesmo intensamente reprimida, as manifestações conseguem suas reclamações, mas Yrigoyen não terá mais um governo de paz. A industrialização da jovem república já cobra suas primeiras vítimas.

Filha bastarda de um membro do partido conservador, María Eva Duarte nasce em 1919 numa fazenda na região de Los Toldos, no meio do nada da pampa argentina. Mas a jovem Evita, inquieta, criativa e forçada a viver nas sombras de ser filha bastarda, sai de casa onde morava com sua mãe e seus irmãos e vai tentar uma vida melhor na cidade grande, Buenos Aires.

Mantém trabalhos improvisados para sustentar uma carreira artística, e aos poucos entra no mundo do rádio teatro. Passa fome por longos meses. Quando não é ignorada, é maltratada por colegas, como toda pequena menina do interior, mas mesmo sem estúdios prévios, começa a conseguir alguns papéis. Estreia no teatro em “La señora de Perez”, mas nos anos 30 o rádio já era o principal meio de comunicação, deixando o jornal para atrás e invadindo os lares de todo o mundo. Ela embarca nessa onda e aos poucos sua fama vai aumentando junto com as radionovelas que invadem todas as casas, junto com outras modalidades que o rádio vai inaugurar, como os programas de palco.

Yrigoyen já tinha mandado matar opositores, realizado intervenção em províncias do interior e com isso perde o apoio da Igreja Católica e finalmente grupos das forças armadas conspiram contra ele.

Os contínuos fracassos econômicos somados à crise mundial de 29 desestabilizam de vez o governo, e, numa prática que vai ser cada vez mais corriqueira, Hipólito Yrigoyen sofre um golpe de estado no ano seguinte.

Assim começou um modelo que a Argentina ia repetir o resto do século: um golpe apoiado pelos conservadores, que na crise econômica perde o apoio popular, eleições ou golpe populista, que quando perde apoio da igreja e/ou das forças armadas, sofre um golpe dos conservadores, para começar o ciclo novamente.

Após a queda de Yrigoyen opositores são perseguidos, em geral radicais e socialistas, (Yrigoyen vai para a prisão na ilha Martín García, no meio do Rio da Prata) quando as urnas apontam uma direção contrária ao seu desejo, as anula e proclama outro vencedor, manipula ou congela preços, tenta controlar as diversas atividades econômicas de uma moeda desprestigiada no mercado mundial. Foi um governo elitista tão odiado que entrou para a estória pelo nome de ‘A década infame’.

Os governos mundiais atingidos pela crise adotam políticas conservacionistas, fecham seus mercados e o sul do sul, dependente da exportação de carne e grãos, vê seus clientes fecharem suas portas, barganhar para descer os preços, exigir mais controle nos frigoríficos, o que leva à falência dos produtores e o desemprego dispara.

Desemprego alto, moeda desvalorizada, baixa auto estima do país: o adubo perfeito para que nasçam os salvadores da pátria de corte nacionalista, e ainda a época era de fascistas.

Em 1943 um novo golpe de estado por um novo comando militar põe fim no regime de supremacia conservadora e começa uma nova onda, agora populista. Entre os militares do novo regime se destaca um jovem coronel muito amado pela tropa chamado Juan Domingo Perón.

No novo regime, Perón assume o Departamento do Trabalho (uma pasta menor naquele então) e pelo fato de ter contato com os sindicatos e por apoiar mudanças para melhorar as condições dos trabalhadores rurais e depois também da indústria, essa sub pasta pouco importante passa a ter o nível de importância de Ministério, e sua atuação cada vez mais popular faz ele chegar até a vice-presidência.

Um terrível terremoto deixa em ruínas a cidade de San Juan, capital da província de San Juan, aos pés da cordilheira dos Andes. As estatísticas contam entre 7 a 10 mil mortos, e até 250 mil feridos e afetados, uma das piores catástrofes naturais do país. São organizadas coletas de roupas e alimentos, e na principal delas a mini estrela do rádio Eva Duarte conhece um dos principais representantes do governo organizadores da coleta: Perón.

Na época Evita era solteira e Perón era viúvo, sua anterior esposa tinha morrido de câncer de colo uterino em 38. Guarde essa informação, caro ouvinte.

Eva namorada de Perón passa a fazer parte de filmes e a ter um lugar de destaque na rádio que tempo depois será controlada pelo governo: radio Belgrano. As conquistas do governo são anunciadas no cinema antes dos filmes e nos intervalos comerciais das radionovelas. É o casamento dos sonhos entre uma comunicadora popular e um governo ávido pela propaganda para se identificar com o seu povo.

Mas a fama de Perón provoca a inveja dos seus opositores no governo, apoiados pelos ruralistas que viam nele um incitador de massas. Os opositores se organizam e num complô conseguem que Perón renuncie aos seus cargos para ser preso na ilha Martín García.

É um tiro no pé. Porque poucos dias depois, no famoso 17 de outubro de 1945 conhecido hoje como Dia da Lealdade, os sindicatos organizam uma manifestação de 300 mil a meio milhão de pessoas, talvez a maior manifestação popular do país, pedindo a soltura de Perón. Ficam gritando seu nome desde a praça em frente ao balcão onde estão os ministros e Farrel, o presidente militar da época, até Perón sair no balcão e garantir que fica até as eleições. O governo encurralado organiza as eleições, Perón casa com Evita e ganha as eleições no ano seguinte ante o olhar raivoso e estupefato dos conservadores.

Até esse momento a primeira-dama era sinônimo de uma velha e respeitada senhora da alta sociedade, casada com seu velho e poderoso homem forte do partido conservador. Sua função se limitava a ficar como figurante nas fotos e liderar organizações beneficentes. Susanita, personagem da tirinha ‘Mafalda’, de Quino, descreveria a beneficência daquela época:

“Fazendo festas com peru, leitão e tudo isso para arrecadar farinha, macarrão e essas porcarias que os pobres comem”.

Mas Evita primeira-dama é diferente, se apropria da fundação; ainda por cima se envolve como nenhuma outra fazendo pedidos diretos ao General, visitando favelas, entregando cestas de final de ano, e revoluciona totalmente a fundação tradicionalmente mantida pela primeira-dama, que é dissolvida e anos depois chamada ‘Fundación Eva Perón’, a auto-promoção ideal para preencher sua vontade política.

A atriz, aproveitadora, a ‘puta’ ainda por cima trocava o nome da fundação pelo seu ! É claro que os oligarcas iam odiá-la !

É assim que Evita reinventa o conceito de primeira-dama para sempre no mundo.

A fundação é convertida numa central de arrecadação que recebe desde doações de pessoas influentes que querem participar do novo círculo do poder, além de parte do imposto de casinos, multas sobre impostos devidos por donos de grandes fortunas e de empresas, e com o dinheiro inaugura ambientes esportivos populares, casas de veraneio, lares para mulheres solteiras se alojarem na cidade (inclusive com creches porque muitas eram mães solteiras), escolas para mulheres, transformando seus locais de atendimento em distribuição de benefícios e também de QG informal dos partidários da “Señora” (Evita).

Assim nasce o mito Evita. Para a alta sociedade ela era fútil e desonesta, competia em elegância, vestia Dior e aparecia na Time, mas para a classe trabalhadora era uma caridosa benfeitora, a mão direita de Perón, que trabalhava em horários exaustivos recebendo milhares de pessoas, principalmente mulheres para ajudar com alojamento, medicamentos, roupas, e como muitos queriam agradar o novo governo é claro que Evita era o elo de um caminho de duas vias, um ganha-ganha populista porém que resolvia de fato problemas práticos.

Evita soube também aproveitar um momento em que Perón não era bem visto lá fora, e desfilou na Europa como o seu representante, inclusive ganhando a Grão Cruz da Ordem de Isabel da Espanha pela sua obra com os mais necessitados, além da doação milionária de grãos numa época em que Espanha passava fome. Também foi para Portugal, Itália e França e recebida pelo papa Pio XII.

Evita era tudo isso: bonita, inteligente, que colocava a elite no bolso, instrumento político para agradar as massas. Diva, deusa, ‘Chefa Espiritual da Nação’. Sempre solícita com seus ‘grasitas’, ‘descamisados’. Como um lugar de fala, antes sequer de existir esse conceito, tratava as pessoas comuns com carinho usando os termos que os engomadinhos usavam com desprezo. Ela tinha passado fome de verdade, tinha nascido à margem e por isso tinha todo o direito de chamá-los de ‘mis grasitas’, ‘meus breguinhas’. Porque era um deles, uma delas, até por isso muitas das ações eram direcionadas principalmente para as mulheres.

Evita também não era bem vista por alguns dos conselheiros peronistas porque viam nela uma imagem que começava a ser maior que o próprio líder. Os discursos eram feitos para exaltar Perón, mas as pessoas adoravam ouvir os discursos pela voz de Evita. Ela passou também a representar a idolatria ao grande líder, ao mesmo tempo que lhe fazia sombra.

Mesmo na eleição, uma das pautas da chapa de Perón-Quijano foi o voto feminino, mas sem dúvida foi Evita quem fez o maior número de discursos, os mais inflamados, quem mais pressão fez no Congresso. Levou um ano para ser negociada e finalmente votada, mas foi uma conquista que não teria sido possível sem ela já que o congresso tinha muito voto conservador.

Com a força das mulheres ao seu favor, Evita funda o Partido Peronista Feminino para organizar a primeira geração de mulheres parlamentares, e para dar voz às futuras votantes e que já estavam presentes em passeatas e mobilizações.

Embora as conquistas da era peronista sejam inegáveis, não deixavam de ser parte de um modelo assistencialista que precisava passar a um patamar de igualdade que nunca saiu do paternalismo e da adoração ao líder supremo.

As crianças aprendiam a ler exaltando Perón e Evita em livros didáticos. O rádio começava todas as manhãs com exaltações ao líder, e até hoje quando há um dia sem nuvens (o que no Brasil é chamado de ‘céu de brigadeiro’) é chamado de ‘um dia peronista’ (claro que hoje é com sarcasmo).

Sabemos que estamos na frente de um homem excepcional, sabemos que estamos na frente do líder dos trabalhadores, do líder da Pátria, porque Perón é a Pátria e quem não está com a Pátria é um traidor.

Como todo populismo de recorte fascista, o peronismo não aceitava vozes contrárias, seja dos conservadores por perderem seus privilégios ou verem trabalhadores descansando no domingo (ooooohhh!), seja das vozes mais independentes, dos socialistas, que entendiam suas ações como populismo barato e que pediam por mais igualdade e menos idolatria. Muitos colocaram o escudo peronista na lapela só para agradar um governo intolerante com a oposição, os que não o fizeram foram perseguidos ou exilados, em geral identificados como traidores à pátria, como fazem os governos totalitários para manchar a trajetória de quem não os apóia.

O HPV, ou Vírus do Papiloma Humano, é uma infecção de transmissão sexual que provoca desde papilomas, pequenas verrugas na vagina e útero, até o câncer de colo de útero nas suas cepas mais malignas.

Enquanto isso Evita se auto impunha dias exaustivos de trabalho, porém começaram a acontecer desmaios e idas urgentes ao médico. Em uma delas retirou o apêndice, mas aparentemente o médico viu mais coisas. E aqui a estória toma rumos difíceis de narrar. O que sabemos é que os médicos acabam por diagnosticar um câncer de colo do útero. Quando souberam exatamente e quando a situação foi comunicada a Evita vai depender de quem narra os fatos. Aparentemente esconderam o verdadeiro diagnóstico por meses, ou ela escondeu isso do resto do país, ou de comum acordo o partido escondeu tudo isso para se apropriar da narrativa.

Quero comunicar ao povo argentino a minha decisão irrevogável e definitiva de renunciar à honra com a qual os trabalhadores e o povo de minha pátria quiseram me honrar.

Para as eleições de 1951, Evita queria ser vice da chapa de Perón. Era muito apoiada pelas pessoas da rua, as mulheres, a CGT e os dirigentes sindicais. Estar na chapa de Perón seria a justa coroação de sua meteórica carreira política. Mas depois de muitas idas e vindas ela rejeitou essa nomeação, ante a frustração de toda uma nação. E pouco tempo depois a doença de Evita foi ‘un secreto a voces’, uma verdade que ninguém falava mas todos sabiam.

Foi a primeira eleição com voto feminino, e Evita votou desde o leito do hospital. Perón teve uma eleição massiva, mas Evita cada vez aparece menos nos eventos oficiais e vai aos poucos definhando ante o olhar de todos, como na cerimônia de posse onde mal podia se manter em pé.

Evita passa para a eternidade em 26 de julio de 52 e recebe o maior funeral que o país já teve. Tres anos depois de sua morte, antes de terminar o seu mandato, Perón é derrocado, exilado, o peronismo banido e se torna uma palavra proibida. Temendo revoltas, o corpo de Evita já embalsamado sofre numa saga nos quais seus inimigos a escondem para impedir que seja adorado. Hoje repousa no maior e mais luxuoso cemitério da cidade que a viu brilhar, fugaz, e morrer com 33 anos de idade.

Eu acredito ter feito tudo o que esteve nas minhas mãos para cumprir com o meu voto e minha dívida. Não tinha então, nem tenho agora, mais do que uma só ambição. Uma só grande ambição pessoal: de que quando seja escrito este capítulo maravilhoso da Historia que com certeza será dedicado a Perón, falem de mim, de que houve do lado de Perón uma mulher que se dedicou a levar ao presidente as esperanças do povo, que Perón transformava em maravilhosas realidades, e que a essa mulher o povo chamava carinhosamente Evita, somente isso, Evita.

Episódio #03: Cabeça de Vaca: transcrição do episódio

 

(…) ao irem rio Iguaçu abaixo, era tão forte a correnteza que as canoas corriam com muita fúria. Logo adiante do ponto onde haviam embarcado, o rio dá uns saltos por uns penhascos enormes e a água golpeia a terra com tanta força que de muito longe se ouve o ruído.

Comentários“, Álvar Núñez Cabeça de Vaca

 

Álvar Núñez Cabeza de Vaca nasce aproximadamente em 1490 em Jerez de la Frontera, a ponta sul da Espanha que faz divisa com Portugal. São os anos em que o reino espanhol vai expulsar da península definitivamente os reinos musulmanos e que vai descobrir as terras na América, o começo da era de ouro do império espanhol.

O nome materno ‘Cabeza de Vaca’ seria uma corajosa conquista de um antepassado de Álvar quase trezentos anos antes do seu nascimento, na véspera da batalha de Navas de Tolosa em 1212, entre os almôades e os espanhóis liderados pelo rei Afonso VIII.  O antepassado de Álvar marcou com a queixada de uma vaca um atalho entre as montanhas que levou os espanhóis até os acampamentos dos almôades, que perderam a batalha. O império almôade era marroquino e dominou o norte da África e sul da Espanha entre os séculos XII e XIII. Como agradecimento ao pastor, o rei espanhol deu a ele o sobrenome de Cabeza de Vaca e um título de nobreza para a família. A batalha de Navas de Tolosa marca a virada em favor dos espanhóis na reconquista da península ibérica e por isso é tão importante para a história espanhola.

Aparentemente Álvar Núñez fica órfão de pai e mãe muito cedo, se alista no exército e serve nas expedições do rei Fernando de Castela em diversas guerras entre reinos italianos e espanhóis. Aos trinta e cinco anos de idade, já bastante experiente, embarca por primeira vez para América para tentar a sorte de se arriscar e enriquecer. Ele era um nobre por valentia e não por poses e mesmo assim é nomeado tesoureiro da expedição, um título que demonstra a confiança que a coroa tinha nele.

Ele faz parte da tripulação de Pánfilo de Narváez que tinha a missão de contatar a recente capitania de Cuba e explorar a região onde se dizia haver uma baía imensa e rica. Pánfilo de Narváez era um típico ‘conquistador’ espanhol: trata todos os não cristãos como inferiores e não mede esforços para lograr enriquecer o mais rápido possível.

Pánfilo de Narváez também já tinha fama no Caribe, e da pior espécie: tinha participado em Cuba do massacre de Caonao, quando centenas de indígenas oferecendo alimento foram massacrados pelos espanhóis que entenderam ser uma ameaça, evento descrito pelo frei Bartolomé de las Casas no seu famoso ‘Brevísima relación de la destrucción de las Indias‘. Narváez tinha também perseguido Hernán Cortés que foi invadir o México desobedecendo uma ordem direta, porém no confronto de espanhóis contra espanhóis perdeu um olho, e foi beneficiado pelo rei com o título de Adelantado para conquistar La Florida, atual estado da Flórida.

Narváez zarpa de Cádiz, sul da Espanha, em 1527, para na atual República Dominicana, perde alguns homens que preferem ficar, outros que morrem de febre, aguarda o tempo melhorar, vai para Cuba, toma alguns cavalos, aguarda o tempo melhorar, e parte para a Flórida com tres embarcações.

Aguardar o tempo melhorar não foi repetido sem querer, é algo constante para todos esses primeiros conquistadores: todos eles enfrentaram as dificuldades de navegação no Caribe e muitos deles encontraram a justiça da natureza dormindo para sempre no fundo do mar.

Dos seiscentos homens em cinco embarcações do começo da viagem desde a Espanha, serão agora quatrocentos em tres embarcações que se dirigem para a Flórida, mas perto do fim da viagem enfrentam as tormentas da região, naufragam, se separam e acabam sobrando alguns poucos no meio da desconhecida baía da Flórida.

Logo após o naufrágio os espanhóis conseguem se reagrupar e tentam em vão entrar terra adentro. São terrenos desérticos e sem habitantes, o que significa que são inóspitos e por isso os conquistadores não se aventuram onde não há ninguém.

E quando tem habitantes, não são nada amistosos e os invasores são expulsos.

Sem as embarcações são presa fácil de todo tipo de ataques, passam fome, sede, e não conseguem locais de descanso, mas mesmo assim sobem pela península, sempre ao norte e seguindo o Golfo de México, até chegar no atual Alabama, onde estão os Apalaches.

Esperavam habitantes que os ajudassem, mas os apalaches se organizam para um ataque que elimine os espanhóis. Perdem homens, cavalos e num ato de desespero constroem embarcações com resto de árvores até sua própria roupa. Pánfilo de Narváez cansa de tentar entrar rio acima e encara o Golfo do México com canoas, e a natureza faz justiça afundando ele na tentativa de enfrentar as terríveis correntezas da região.

Álvar cai doente como muitos espanhóis, mas é dos mais resistentes, e que sempre consegue comida, inclusive também ajudando seus companheiros e carregando eles por kilómetros. Em outras situações consegue revender objetos e circular por entre as tribus como um vendedor ambulante, às vezes vendendo somente conchas marinhas ou objetos de corte que ele mesmo faz.

Até onde sabemos pelo relato de Álvar Núñez no seu livro batizado de ‘Naufrágios’, sobraram somente quatro náufragos da expedição original: Alonso del Castillo Maldonado, Andrés Dorantes de Carranza , um escravo berebere chamado Esteban, provavelmente o primeiro africano a pisar o território do futuro Estados Unidos, e ele mesmo Álvar Núñez.

Eles são feitos escravos, são trocados uma tribo após outra e passam fome e privações. Em um momento crucial alguns índios caem doentes e Álvar, talvez imitando um velho xamã, consegue curar alguns deles mediante uma estranha imposição de mãos e muita reza. Álvar fica nessas terras aproximadamente 6 anos, aos poucos ganhando prestígio entre os habitantes dessas terras (que já seria aproximadamente em Houston), e depois, já com muitos habitantes dessas terras que o seguem, se lança ao sul pela costa do Golfo do México decidido a encontrar outros espanhóis.

A viagem será mais longa do que Álvar nunca poderia ter imaginado. Os quatro náufragos, sempre juntos e seguidos de um séquito de homens, mulheres e crianças, caminham em direção oeste, indo desde o atual Texas até Chihuahua no México, e chega até Sinaloa após atravessar o deserto de Sonora, sempre com índios que o seguem, muitas vezes tendo que abençoar comida, crianças e pessoas por onde passa.

Àlvar sempre dialoga com os habitantes procurando lugares conhecidos ou habitados por espanhóis. Dificilmente se zanga, e quando o faz recusa a comida ou dormir com os habitantes do lugar, que ficam com medo do xamã branco e o acompanham, mesmo atravessando o deserto. Dessa forma Álvar Núñez consegue finalmente chegar até a atual Culiacán (chamada de San Miguel), já no conquistado México, território ainda chamado de Nova Galicia.

Ele não era um cristão comum: os índios que o seguiram por milhares de kilômetros não querem se separar de seu benfeitor, e desconfiam, com razão, que serão escravizados, porque os cristãos matam, sequestram, escravizam ou saqueiam a quem encontram a seu passo, enquanto que Álvar comparte o que tem com eles e os trata como iguais. Álvar convence seus seguidores a ficarem para serem cristianizados, mas muitos são escravizados por outros espanhóis, e outros fogem.

Após uns meses de descanso, com roupas de cristão e depois de uma saga de quase 18 mil quilômetros e dez anos mais velho, Álvar Núñez Cabeza de Vaca volta para Espanha em 1537.

E aparentemente a estória deveria terminar aqui. Álvar Núñez sobreviveu a comandantes gananciosos e estúpidos, a naufrágios, a aborigens, à fome, à caminhada mortal de toda a baía do Golfo do México até a outra ponta do continente, e ainda à volta para Espanha. Era de se esperar que termine seus dias revivendo sua jornada ao redor de uma chaminé e contando estórias para os seus netos.

Mas Álvar não se aposenta tão cedo, continua como membro da corte sempre querendo ajudar seu rei, o que o leva a uma segunda viagem ainda mais incrível do que a primeira.

 

Segunda viagem

As notícias da América não eram nada boas: Pedro de Mendoza tinha fundado Buenos Aires, mas meses depois foi sitiado pelos índios querandíes que mataram a população de fome. Pedro de Mendoza foge com alguns dos seus tentando voltar à Espanha, mas morre no caminho de volta. Outros sobrevivem como Juan de Ayolas e Domingo Martínez de Irala e sobem rio acima ao longo do rio Paraná, até a atual Asunción del Paraguay.

A coroa espanhola estava preocupada com os portugueses navegando na América do Sul, talvez navegando demais, talvez passando a franja   muito mal definida em tratados e que nem cartógrafos estavam de acordo onde ficavam, e preocupado também com os conquistadores que faziam o que queriam nas terras do rei se aproveitando da longa demora das viagens e da pouca e confusa comunicação desses tempos.

E também era difícil seguir o business plan do rei espanhol: ainda não havia notícias do que acontecera ao certo em Buenos Aires mas era sabido que a sede agora estava em Asunción del Paraguay. Nomeia então Álvar Núñez como adelantado del Río de La Plata.

Adelantado era o título dado para um procurador do rei nas terras além-mar, uma espécie de governador que levava o plano principal das terras ocupadas e tinha voz de mando em todo o território a ele assignado.

Álvar Núñez chega a Santa Catarina em janeiro de 1541. Ele se informa com os indios guaranis que conhecem a região e inicia uma viagem a pé pela estrada de Peabiru desde Santa catarina até Assunción del Paraguay. O tato com os indígenas fica claro por dois fatores:

  • As pouquíssimas baixas de espanhóis, que morrem por causas naturais
  • As indicações dos índios na travessia são premiadas por Álvar com anzóis, lanças e outros presentes, pelos quais os guaranis são sempre amistosos, e até previnem os espanhóis para evitar as correntezas dos rios

Álvar Núñez desta forma é o primeiro espanhol a testemunhar a força descomunal das cataratas do Iguaçu, testemunha as imensas e complexas povoações de guaranis ao longo dos rios Iguaçu e Paraná e continua a travessia ao longo do rio Paraná, até chegar nos assentamentos de Assunción del Paraguay.

 

Esse rio Iguaçu é tão largo quanto o Guadalquivir e está situado a vinte e cinco graus. É muito povoado em toda a sua ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além de mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel.

Comentários“, Álvar Núñez Cabeça de Vaca

 

Álvar Núñez consegui um feito raro: a sua travessia pela estrada de Peabiru feita pelos guaranis, por quase mil quilómetros por meio da mata, foi realizada praticamente sem baixas de espanhóis e sem batalhas, demonstrando como governar pela justiça e pela recompensa dos povoados sem os maltratos que outros conquistadores utilizaram como moeda comum. Ele já tinha andado pela América e sabia muito bem se comunicar sem precisar da espada.

Em Asunción governava Domingo Martínez de Irala, que não gostou nada da chegada de um adelantado com poderes diretos do rei que pudesse colocar em cheque o seu domínio.

Álvar tentou um governo de harmonia entre indígenas e colonos mas não foi recebido com bons olhos pelos espanhóis. Depois de várias dissidências, Álvar foi colocado em prisão por ‘abusos de poder na repressão de disidentes’ e enviado para Espanha, onde teve que defender sua honra ante uma corte e já desprovido de poderes reais.

Álvar Núñez Cabeza de Vaca morreu em Sevilla, anos depois de reestabelecer sua honra mas sem nenhuma posse e velho demais para encarar novas aventuras.

 

Episódio #02: B de Bowie – Transcrição do episódio

David Robert Jones (David Bowie) tem quase 700 músicas originais ao longo de 50 anos de produção musical.

Além de um compositor prolífico, obsessivo e complexo, namorava como ninguém o glamour da fama de um rock star, e alcançou o estrelato quando quis e como quis.

Mas, por outro lado, foi um compositor muito consciente do seu tempo, que navegou em todas as tendências da música contemporânea, e em cada uma delas tem pérolas muitas vezes desconhecidas por não estarem em álbuns famosos, ou por não virarem hits conhecidos. Também formou bandas com músicos consagrados aos quais influenciou, e pelos quais se deixou influenciar, o que era uma honra para o músico e para Bowie era mais uma oportunidade de expandir e ampliar seus próprios horizontes musicais.

Não vamos falar dos grandes sucessos de Bowie -do Major Tom do Space Oddity, ou de Changes, Life on Mars, Rebel Rebel, Ashes to Ashes, ou Let’s Dance, que também gosto demais!- mas hoje o foco é o lado B de Bowie, um Bowie tão brilhante quanto excêntrico e desconhecido e que merece muito ser ouvido.

É bem provável que você conheça a persona mais famosa de Bowie , Ziggy Stardust. Afinal ele inspirou do glam até o punk rock, um personagem que associou de forma magistral o imaginário da exploração espacial com o distanciamento e isolamento que os jovens sentiam diante uma geração de velhos repressores, jovens que preferiram se esconder nas viagens psicodélicas e que encontraram um ser humano menos racista, menos sexista, menos retrógrado.

Ele acabou com as apresentações do Ziggy subitamente, perto de 74, mandou embora os músicos da banda e começou uma nova banda do zero. Também estava lendo muita coisa, e musicalmente se sentia atraído pela música americana. As leituras o levaram para escrever as músicas de Diamond Dogs, especialmente a leitura de 1984 de George Orwell. É nessa época que escreve ‘Big Brother’, uma descrição do grande irmão como a faria John Winston, o protagonista da novela, já depois de uma lavagem cerebral, onde Bowie usa uma orquestração magnífica com um refrão inflamado como a devoção ao Grande Irmão.

Vamos ouvir então “Big Brother” do disco Diamond Dogs de ’74, junto com “Chant of the ever circling skeletal family“, a continuação que é um coda psicodélico de coros com gritos ‘brother!’ , uma guitarra hipnótica e um final inesperado.

Não, a memória do seu celular está ok, o seu player não quebrou, não é vitrola, é só Bowie que te trola e repete ‘Bro’,’Bro’ em loop !

Bowie faz uma nova viagem para os Estados Unidos e fica fascinado por tudo, pela cultura, pelas roupas, pelo soul, RnB, música toda regada a quilos de cocaína em que chafurdava a Los Angeles dos anos setenta. Mesmo com a aura hippie invadindo San Francisco, Ziggy Stardust tinha desaparecido e uma nova persona começava a emergir do seu interior.

Carlos Alomar o apresenta aos melhores inferninhos e companhias musicais, iniciando uma das grandes parcerias de Bowie. Alomar contou uma anedota da época na qual certa vez depois de uma noitada daquelas, chegou com Bowie na sua casa já entrada a manhã, e sua mãe, preocupada com tal figura pálida e magérrima, preparou um almoço latino-afro-americano reforçado (imagino que foi frango caipira, arroz, feijão, salada) e como Bowie sempre foi um gentleman, sentou à mesa, almoçou e agradeceu, claro, para voltar depois a sua vida de vampiro londrino admirador do real american way of life.

Nessa época já em ’75 grava ‘Young americans‘ como uma homenagem a esse Rhythm & Blues que tinha acordado o jovem Bowie para a música, que ele sempre tinha admirado e que agora tinha conseguido ouvir de primeira mão. Desse álbum são famosos a música título ‘Young Americans’ como também a música ‘Fame’ que gravou com John Lennon, mas vamos ouvir uma obra prima pouco conhecida, composta por Bowie e perfeitamente executada por Luther Vandross e sua banda, com um coro maravilhoso envolvendo um cânone dificílimo de cantar, contrapondo as vozes e o sax, a música Right.

Bowie nas gravações de Young Americans

Nessa época já crescia em Bowie uma nova persona, uma personagem de um homem pálido, distante, um último romântico num mundo frio e ausente: o Thin White Duke.

Bowie decidiu que deveria apresentá-lo, e compôs uma apresentação dentro da música “Station to Station“, faixa título de seu próximo álbum.

Station to Station” é uma peça operística de dez minutos que junta os vagões de um trem com os devaneios bowísticos de um ser romântico com as idas e vindas de alguém que não poderá ser freado (e por algum motivo Bowie confessou não lembrar como as gravações aconteceram, provavelmente por estar totalmente focado na composição num céu de champagne e cocaína, e assim Bowie canta que é tarde demais, é tarde demais).

Mas outra música que reflete muito bem o espírito do Thin White Duke é “Stay“, ainda influenciado pelo soul e partindo de um ritmo na guitarra de Carlos Alomar onde Bowie divaga e implora que fique com ele uma figura idealizada, ou talvez sua esposa Angie com a qual se amavam e se odiavam tanto, numa letra melancólica que reflete uma dificuldade de sincronizar os sentimentos com a pessoa amada.

Bowie fica mais introspectivo, começa a ler vorazmente sobre ocultismo, a admirar a nova cena eletrônica principalmente alemã, e acaba por conhecer uma outra figura do glam rock que também tinha musicalmente se reinventado: Brian Eno. 

Eno fazia parte com Brian Ferry, Phil Manzanera e outros de uma das incompreendidas bandas do glam rock no início dos setenta: Roxy Music. Nessa época Eno se vestia com roupas brilhantes, com penas, salto alto, e fazia loucuras psicodélicas no sintetizador. 

Brian Eno con Roxy Music, no sintetizador

Depois teve desentendimentos musicais com Brian Ferry, saiu da banda, fez outra banda breve chamada 801, porém na turnê se acidentou gravemente de carro e ficou hospitalizado mais de 6 meses . As suas buscas o levaram para uma música mais contemplativa, e era essa virada na qual Bowie estava interessado.

Com Brian Eno, Bowie irá ter o que para mim é sua época mais brilhante, a chamada trilogia Berlin: os álbuns Low, Heroes e Lodger.

Low é um álbum profundo, rico em ambientes numa contemplação e desprovido da vontade de criar hits ou impressionar multidões, completamente diferente de tudo que Bowie já tinha feito: eles dois compõem em parceria, usando e abusando de teclados e sintetizadores. E destas longas sessões de composição e edição que nascem sucessos como “Speed of life” ou “Sound and Vision” e “Warsawa, uma peça inspirada numa música tradicional polonesa, mas também uma música melancólica onde Bowie alcança esses raros momentos de iluminação que temos na contemplação da vida, que lembra de como às vezes parece que sempre erramos do mesmo jeito, como se andássemos em círculos repetindo os erros e cujo título é quase uma crítica risonha disso: “Always crashing on the same car“.

Low foi gravado nos alpes suíços, mas em Heroes, David Bowie, Brian Eno e a banda estavam em Berlin, respirando o ar dos habitantes do muro da vergonha, sentindo a opressão da guerra fria, ouvindo os primeiros punks ainda cibernéticos ou eletrônicos, ou crus como os Pixies de Iggy Pop, que Bowie estava ajudando e produzindo, até tocando timidamente como mais um músico, deixando Iggy ser a figura do palco.

Desta época de Heroes começa a parceria com Robert Fripp e surgem além da música tema do álbum outras obras como Beauty and The Beast e Joe The Lion.

Brian Eno, Robert Fripp e David Bowie durante as gravações de 'Heroes'

Mas deixem apresentar para vocês uma outra obra prima desconhecida, inspirada na força motriz alemã que estava reerguendo a nação, simbolizada nos seus antigos foguetes V2, e em Florian Schneider, o genial fundador do Kraftwerk e é com essa inspiração que nasce V2-Schneider.

Brian Eno tinha produzido pouco tempo atrás uma banda promissora ainda desconhecida chamada ‘Talking Heads’ onde tinha conhecido um dos jovens guitarristas que agora estava na banda de Frank Zappa, um tal de Adrian Belew.

Ainda na Alemanha, Bowie soube que Zappa estava de turnê.

Por recomendação de Eno, Iggy Pop e Bowie foram ao concerto, e num momento em que Zappa solava, Belew aproveitou para se aproximar e tietar Bowie, dizer quanto o admirava. “Ah, é?”, disse Bowie. “E você gostaria de tocar na minha banda ?”, e assim à queima-roupa Bowie roubou o guitarrista de Zappa, que tinha o espírito perfeito para o próximo álbum: “Lodger”, um álbum totalmente inspirado nos assuntos randômicos, aleatórios, que dominam nossa vida. Bowie até se negou a dar dicas sobre as músicas para assim inspirar improvisações libertárias de Belew.

David Bowie e banda no Musikladen, 1978 (Carlos Alomar e Adrian Belew entre outros)

Neste disco tem outra obra excelente e desconhecida chamada “Boys Keep Swinging” onde um cínico Bowie brinca com a construção de gênero social e sem sentido num mundo conservador e machista (inclusive onde no vídeo promocional Bowie se caracteriza em tres personagens mulheres). Se repararem no solo nesta música poderão ver que foi construído a partir de vários takes de improvisos separados na guitarra.

Depois desta trilogia Bowie começa a tentar a fama.

Nas gravações de ‘Heroes‘ , Bowie tinha conhecido Robert Fripp que passa a ser a guitarra líder no seu disco ‘Scary Monsters‘. Essa faixa título é uma associação entre zombies e a forte adicção às drogas, mas que foi um fracasso de público, porém pavimentando o caminho ao estrelato que depois conseguiu com “Let’s Dance“.

A música que ficou um ícone dos anos 80 e que está neste álbum é ‘Ashes to Ashes‘, e também está a famosa ‘Fashion‘, porém vamos ouvir um outra obra desconhecida que talvez descreva os relacionamentos passageiros de Bowie dessa época, se sentindo um pouco usado ou em relacionamentos pouco maduros, adolescentes, música que tem um contraponto e um solo maravilhoso de Fripp: “Teenage Wildlife“.

(Os músicos dos anos sessenta e setenta se perderam completamente nos anos 80 e muitos nos 90 também. Vamos pular… mais… mais um pouco … mais… Tá bom!)

Na metade dos noventa já tem um Bowie repaginado, antenado com novos tempos. Além de dois enigmáticos, inovadores e densos álbuns como Outside e Earthling, um Bowie assumidamente cyberpunk monta Bowienet, uma rede que foi portal, discador e provedor de internet, a última novidade de um mundo novo.

Earthling tem aquela foto icônica com fundo teletubbies com Bowie de costas vestindo uma union jack rasgada. Mais uma vez pioneiro, nesse álbum está ‘Telling Lies’ que foi lançada previamente na rede, chegando a 300 000 downloads em ’96 quando a lançou -e não se engane, são números astronômicos para a época e o primeiro single lançado na rede por um grande artista.

Capa de Earthling

Mas essa velocidade toda para repentinamente em 2002 quando um malestar na turnê de Reality faz Bowie interromper turnê, aparições públicas, faz uma cirurgia cardíaca, e depois passa a viver mais recluso, a se dedicar a sua esposa Iman – Zara Abdulmajid e sua recém nascida filha Alexandria.

David e Zara (Iman) festejando aniversário de casamento

O hiato acabou subitamente em 2013, e Bowie estava no seu segundo álbum de músicas inéditas desde a sua volta quando a morte exigiu o seu corpo finalmente e de uma vez por todas, talvez tentando completar o que seria sua última trilogia, nunca saberemos.

Para fechar então vamos ouvir do seu penúltimo álbum The Next Day uma composição desta última fase mas pouco conhecida, com uma letra forte sugerindo um demônio ou assassino serial tirando o pior de nós nesses tempos estranhos: “If you can see me, I can see you”.

 

#01-El Eternauta – Transcrição do episódio

Começava agitada a segunda metade do século XX. Época de guerra fria, o mundo dividido em dois: de um lado o bloco influenciado pelos Estados Unidos e do outro lado pela Rússia soviética (URSS). Europa estava se reerguendo, Gringolândia eufórica, latinoaméricas crescendo num momento econômico favorável mesmo que governadas por caudilhos nacionalistas. Ainda era o tempo do rádio e a TV era para poucos. Carro era para poucos.

Porém a comunicação conectava a sociedade do mundo todo, mesmo dividida na guerra fria, começava a se conhecer.

A música conectava essas culturas, assim como o rádio, e também as revistas e uma invenção de início de século e que agora era muito popular: as histórias em quadrinhos.

Mas Oesterheld estava cansado de estórias de heróis americanos.

Héctor Germán Oesterheld, geólogo de formação, tinha começado escrevendo estórias para crianças e agora já era um famoso roteirista de quadrinhos. Tinha escrito Ernie Pike, um correspondente de guerra, onde o famoso desenhista ítalo argentino Hugo Pratt usou o rosto de Oesterheld para desenhar o protagonista, um rosto que parecia talhado no aço. Também tinha escrito Sargento Kirk, ambientado no faroeste americano mas que originalmente seria um gaúcho da fronteira, idéia vetada pelos editores por considerar mais charmoso usar nomes gringos, talvez para homogeneizar as estórias das revistas. Eles compravam estórias de fora e de roteiristas locais, e as estórias eram similares se citavam os mesmos interesses que os americanos gostavam de ler: segunda guerra, cowboys, gangsters contra super-heróis.

Então em 4 de setembro de 1957 a revista de quadrinhos adultos Hora Cero apresenta a primeira edição do Eternauta, escrita por Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López. Hora Cero é revista da sua própria editora La Frontera, controlada pelos irmãos Jorge e Héctor Oesterheld.

Oesterheld já nessa época estava casado com Elsa Sánchez e tinha 4 filhas: Estela, Diana, Beatriz e Marina. Moravam num bairro nobre no grande Buenos Aires, onde recebiam desenhistas e onde planejava suas estórias.

Francisco Solano López era homónimo e parente do presidente paraguaio que invadiu Argentina para defender uma frente uruguaia, fato que foi considerado um ato de guerra e desencadeou a Guerra da Tríplice Aliança onde Argentina, Uruguai e Brasil dizimaram o Paraguai. Solano López tinha um traço forte, realista, e já tinha feito outras estórias com Oesterheld como Bull Rocket, um sucesso da revista Misterix.

Mas chega de introdução e vamos à estoria do Eternauta.

  • O plot

“Estou na Terra, suponho”

A estória começa com o escritor, Germán, olhando as estrelas, sentado no seu estúdio, quando um homem se materializa na cadeira na sua frente. “Estou na Terra, suponho” diz a figura. Será o protagonista que irá narrar a estória para explicar o que aconteceu.

Ele é Juan Salvo, El Eternauta, viajante do tempo. Juan começa a contar o que irá acontecer daqui a alguns anos.

A estória de Juan Salvo começa numa casa típica dos anos 50 na grande Buenos Aires quando ouvem algumas informações do que parece uma experiência atômica no Pacífico -coisa da época, afinal, a estória é escrita em plena guerra fria.

Sua mulher Elena e sua filha Martita estão dormindo nos quartos; Juan Salvo está com seus amigos Favalli, Polsky e Lucas, jogando truco. Um típico fim de noite nos arredores da cidade.

Mas a vida deles está para mudar completamente: ‘ouvem’ um silêncio total na rua, há um apagão e olhando pela janela vêem uma neve mortal, flocos de uma neve florescente que toca as pessoas e as mata em segundos. Eles testemunham a morte do vizinho da casa da frente ao abrir a janela e sua esposa morrer junto quando vai ver o que ocorreu. É o primeiro indício do que percebem depois ser uma invasão extraterrestre de níveis globais.

O primeiro inimigo é o medo: num momento de loucura, Polsky sai correndo aflito pela sua família, e morre na frente da casa. Os personagens irão ver o seu cadáver muito tempo, como um aviso permanente da presença de invasores e do perigo mortal que estão correndo.

Favalli, que tem conhecimento de engenharia e é o cérebro da equipe entende o que aconteceu e rapidamente projetam um traje para sair na neve mortal e conseguir alimento e se situar do que está ocorrendo. Improvisam um traje com luvas, restos de equipamento de mergulho e restos de látex, construindo o que será a mítica imagem do eternauta andando pelas ruas da cidade.

“Chegou o momento. Duvidei. A porta, ainda que não muito grande, me separava da morte que reinava lá fora. Abri-la era se jogar no meio da nevada mortal.

Mas tinha que sair. Tinha que abandonar a casa, aquela ilha de vida perdida no oceano de morte. Assim como Robinson Crusoé para chegar no barco encalhado teve que se lançar ao mar, … abri a porta.”

Depois o perigo serão os sobreviventes: Lucas é morto por alguém desesperado pelo seu traje. A lei da selva se instala num thriller que depois iremos ver em toda estória de zumbis.

Favalli e Juan se convencem de que não podem ficar na casa e se organizam para pegar alimentos e fugir para algum lugar mais afastado.

Logo Favalli, Juan e depois outros sobreviventes organizados pela polícia e exército começam a percorrer o que sobrou da cidade, citando lugares famosos como a General Paz, uma famosa estrada que liga o subúrbio à cidade, o estádio do River Plate…

“Enorme, impressionante, erguia-se ante nós a complicada estrutura de cimento. Os pilares, não sei por que, me pareceram as estranhas patas de um monstro colossal, um monstro que esperava nos ter a distância para atirar.”

Os próximos inimigos serão cada vez mais sofisticados: primeiro encontram seres parecidos a enormes besouros do tamanho de um ser humano, que chamam de ‘cascudos’, que podem ser mortos facilmente. Porém depois de analisar eles, percebem que seus animais inimigos são um exército dirigido por outra raça através de dispositivos atrás da cabeça.

Quanto mais avançam, pior ficam os inimigos: máquinas que lançam raios, ou que produzem visões fantasmagóricas, seres enormes como elefantes que chamam de ‘gurbos‘ também dirigidos pelos inimigos, que não se mostram.

A estória do Eternauta aparecia em pequenas entregas de 3 páginas por edição, e a sua primeira parte tem quase 200 páginas. Sua riqueza e complexidade deixava os leitores pendentes a cada entrega e ao longo dos próximos anos seria a estória mais lida e esperada na cidade.

Na famosa ‘batalha de River Plate’ quando estão vencendo ‘cascudos’ são surpreendidos por homens-robô, pessoas que foram capturadas e que tem um dispositivo na nuca, assim como os ‘cascudos’, convertidos em soldados comandados à distância. Mas por quem?

Depois de vencidos os homens-robô, o que abala muito a luta, o inimigo oculto ilude a resistência com visões que confundem a tropa e os fazem lutar entre si, até Juan Salvo encontrar e destruir o dispositivo que lançava as visões.

Após muitas batalhas, acabam por encontrar quem acham ser o inimigo : um ser humanóide de cabelos loiros e pontudos, de orelhas longas e olhar sério, com dezenas de dedos em cada mão e que dirigem os exércitos através de painéis clicáveis, alavancas e botões, seres que eles passam a chamar de ‘Os mãos”.

Após várias lutas conseguem capturar um ‘mão’ e outra surpresa acontece: os mãos não são os invasores, são um povo escravizado que quando sente medo, uma glândula inserida artificialmente solta um veneno que o mata em poucos minutos. Os invasores são ‘Eles’. O ‘mão’ já vencido canta uma canção triste sobre seu planeta. Os malvados também tem um lado poético, e essa riqueza é que completa a estória, assim como as observações dos seus heróis ao longo das descobertas de como tentar vencer o inimigo.

Não há no Eternauta nenhum desenho claro de como seriam ‘Eles’, os verdadeiros invasores. Na única ocasião na qual Juan quase captura um, ele parece uma sombra e consegue escapar, como se pudesse adotar qualquer forma, como uma nuvem compacta e que se esvai quando corre perigo.

A primeira parte do Eternauta termina com Juan Salvo acidentalmente acionando um dispositivo que o transporta para um local além do espaço-tempo, e de lá termina sua narração, volta para sua casa e aparentemente esquece toda a estória, sendo Germán quem precisará escrever tudo para tentar que acreditem nele.

(Fim do plot – Eternauta 1)

Oesterheld queria uma estória que tivesse ciência-ficção com pessoas normais. No princípio sua inspiração foi Robinson Crusoé, onde a ilha é sua casa, no meio de uma cidade sem vida. Porém El Eternauta é uma saga de sobrevivência coletiva diante de uma catástrofe global.

Lembrando que foi escrito antes dos anos 60 a estória tem várias inovações que conquistaram e ainda conquistam os leitores:

  • é totalmente ambientado em Buenos Aires, seus personagens caminham por lugares conhecidos, próximos do leitor que assim se envolve no enredo
  • os heróis são pessoas comuns: Favalli, de ascendência italiana, Polsky, do Leste Europeu, Elena e Martita, a família típica.
  • Os antagonistas são sofisticados, completos, tem problemas, são quase ‘humanizados’ mesmo sendo alienígenas. Alguns são meros animais escravizados, outros têm personalidades complexas com os Manos.
  • todos esses elementos comuns da ciência-ficção numa estória acontecendo próxima ao cotidiano do leitor conquistou gerações e permitiu a Oesterheld criar personagens complexos
  • havia também em Oesterheld a confiança de estar fazendo história numa mídia reconhecida como underground, escura, não literatura. E revolucionou o que hoje chamamos de graphic novel para dar um nome bonito e complexo para uma nova forma de literatura que estava se formando ainda.

No Eternauta, Oesterheld mostra que o herói é o coletivo, os sobreviventes que se organizam. A ciência-ficção está nas soluções que eles geram para sobreviver, e nas invenções dos invasores. A sua assinatura, os personagens comuns, reais, locais, não idealizados de heróis americanos. Os locais próximos como a toma do estádio River Plate, os soldados andando pela Avenida Las Heras até Plaza Italia geram uma proximidade no leitor, que se identifica com os personagens por serem próximos, com o ambiente, e com a invasão.

Mesmo com a popularidade da revista, não pagava as contas e os Oesterheld fecham La Frontera, Hora Cero se reduz e Oesterheld procura trabalho em outras revistas. As suas filhas saíram de colégios privados para escolas públicas, e os tempos com uma nova ditadura e uma mudança na visão da realidade pelas filhas e pelo Héctor acabam por politizar ainda mais suas estórias.

Argentina vivia nessa época os tempos tumultuados pós peronismo de ditaduras e opressões. O peronismo estava proibido, e agremiações e organizações sociais passam a pressionar para trazer Perón do exílio. Entre essas organizações uma defende a tomada de poder e a volta de Perón: Montoneros.

Os Montoneros ganham destaque nacional quando sequestram o general Eugenio Aramburu, principal líder militar envolvido na derrocada de Perón em 1955 (ou seja, um velho inimigo). Aramburu é julgado e executado pelos Montoneros e nesse ato começa uma guerra envolvendo peronistas de direita, peronistas de esquerda e grupos armados como a Triple A (Alianza Anticomunista Argentina) que querem eliminar os ‘subversivos’, ou seja qualquer indivíduo que se identifique com as mesmas idéias socialistas destas organizações de extrema esquerda.

As filhas de Oesterheld se integram aos Montoneros e o pai passa a apoiar também essa causa. O humanista Oesterheld, cansado de ver os tanques impedindo as democracias, apóia os jovens que pegam em armas para derrubar o governo.

Oesterheld não pegou em armas, ou pegou se pensar que suas armas eram as palavras: fica responsável pela coordenação da divulgação do movimento, publicando pasquins da organização para disseminar suas idéias. Sai da casa então para um local desconhecido.

Perón, que no exílio exalta os ‘jovens valentes’ das organizações que realizam atentados e manifestações para a sua volta, quando já está no poder se desentende e força sua ilegalidade, chamando eles agora de ‘alguns imberbes’ que estariam atrapalhando a manutenção da ordem, e os expulsa dos movimentos sociais. Isso cria um racha no peronismo, e com isso mais atentados, mais confusão, e Montoneros acaba por se isolar e entrar lentamente na clandestinidade.

Pouco tempo depois Perón morre , assume a vice presidente, sua última esposa Isabelita, que não consegue manter o governo coeso, os atentados de um e outro lado continuam e a crise do governo, pela sua própria inépcia, desencadeia o desejo da população de uma ‘volta à ordem’.

Montoneros assim se transforma na desculpa perfeita para a nova ditadura argentina, chamada de “Proceso de Reorganización Nacional”, aplaudida pela população cansada de bombas e lutas urbanas, porém apoiando com isso a mais sangrenta ditadura que a Argentina já sofreu (e olha que em matéria de ditaduras sangrentas Argentina goza de exemplos com requintes de crueldade).

Oesterheld, na clandestinidade, contrata Alberto e Henrique Breccia (pai e filho) para uma obra sobre o Che Guevara, morto recentemente. A obra será proibida e retirada de circulação e Oesterheld perseguido.

Mas enquanto isso ele deixa secretamente em locais combinados os roteiros para uma nova série do Eternauta. Roteirista e desenhista não podiam se falar embora os roteiros chegassem pontualmente para serem desenhados. E assim nasce

  • El Eternauta parte 2

A segunda parte começa no final da primeira, Germán insistindo que conhece Juan Salvo e Juan que não lembra de nada mas abriga Germán. Porém todo o cenário desaparece e a casa de Juan Salvo é transportada para 200 anos no futuro.

No futuro não existe Buenos, Aires, só planícies quase desérticas, barrancos onde alguns homens sobrevivem como homens das cavernas, animais e plantas sofreram mutações, há homens-robô e sub-humanos que caçam homens a serviço de “mãos” que mantém seu domínio numa fortaleza.

Juan Salvo tem agora poderes telepáticos, força sobre humana e nenhum remorso. Em várias operações sacrifica linhas de combatentes (e até a sua família) para conseguir o objetivo final de derrotar o ‘Ele’ que queria fugir do planeta não sem antes destruir as forças dos sobreviventes sacrificando 500 homens como combustível para a nave.

Logo começam as dissidências com Solano López que vê o lado político influenciar a obra e quase interrompe o trabalho algumas vezes.

A qualidade do desenho, agora colorido, é muito superior embora a trama da primeira parte seja mais cativante. Oesterheld tenta nos surpreender a cada página, mas aos poucos a estória é a luta de um líder quase sobre humano contra a opressão dos ‘Eles’, que também não aparecem embora Juan Salvo lute contra um deles envolto numa nuvem, que seria o seu traje espacial.

Na estória há uma menina jovem, Maria, que o Germán idealiza fantasiando poder no futuro viver com ela. Há quem veja nela uma personificação de suas filhas, envolvidas numa guerra e embora sejam meigas e doces, tomam posição na luta.

O povo das cavernas luta para manter sua humanidade diante de um inimigo muito mais perigoso e que os esmaga como a formigas. Não podemos negar nos identificar com essa ficção com um pé na realidade.

Realidade esmagadora : pouco antes de ser publicado El Eternauta parte 2, a filha menor, Beatriz, é morta numa operação pelos operativos que perseguem os Montoneros. É a única filha que Elsa, a mãe, consegue sepultar.

Oesterheld é capturado e fica detido em Campo de Mayo e levado a vários outros locais.

Diana, com um filho de 2 anos e grávida de outro, é sequestrada aparentemente numa emboscada em Tucumán, interior da Argentina. Seu corpo jamais foi encontrado. Passam a engrossar a longa lista de números na macabra estatística de ‘desaparecidos’ que contam com aproximadamente 30 mil pessoas cujo destino desconhecemos e cujos corpos viraram pó, como eliminados pelo raios dos ‘Mãos’ contra o povo das cavernas. Aparentemente Diana só ficou viva até dar à luz.

Marina é sequestrada, também grávida, aparentemente torturada e morta após dar à luz seu filho, de paradeiro desconhecido.

Estela é morta aparentemente também grávida, e cai junto com o seu companheiro. Seu filho de três anos é recuperado anos depois pela sua avó, Elsa. É possível que tenham levado o neto de Héctor Oesterheld até seu cativeiro para mostrar o destino que suas filhas levaram, ou quem sabe com remorso para mostrar o neto que jamais iria ver crescer.

Oesterheld finalmente desaparece ao redor de 1977 provavelmente em Mercedes. O corpo jamais foi encontrado.

Todas suas filhas mortas, três delas grávidas. Após o massacre desta família, sobreviveram somente a avó e dois netos. Os outros dois filhos que aparentemente nasceram em cativeiro de suas mães, o paradeiro é desconhecido.

Elsa foi uma das Abuelas de Plaza de Mayo, familiares que pacifica mas enérgicamente pediam respostas para saber onde estavam seus familiares, sequestrados, humilhados, mortos e ajudaram a recuperar e manter a memória desta guerra injusta e sangrenta.

Além destas sequências houve uma terceira parte do Eternauta, porém não foi nem roteirizada nem desenhada pelos autores principais e por isso não acho que valha a pena comentar aqui.

Houve também uma deplorável tentativa de associar a imagem do Eternauta com o já falecido Néstor Kirchner, aparecendo em lambe-lambe e graffitis da cidade na época da Cristina presidente a figura do Kirchner no famoso traje do Eternauta.

Também houve a tentativa de realizar um filme nessa mesma época, mas os idealizadores abandonaram o projeto quando viram a tentativa do uso da imagem do personagem pelo governo.

A óbvia correlação da invasão alienígena com o imperialismo é fruto tanto das idéias recorrentes na ciência-ficção e das distopias de totalitarismos como das ideologias de esquerda e Oesterheld fez brilhantemente uma obra de ciência-ficção baseada diretamente na sua vida conturbada de um país conturbado numa época de confronto direto, fez uma obra a partir de sua leitura filosófica contada através da ciência-ficção.

Oesterheld mudou para sempre as estórias em quadrinhos. Combateu com a palavra as forças que se opunham a sua orientação política, mas essa oposição era o inimigo do estado e sofreu por isso, assim como suas filhas. El Eternauta é sua obra principal, hoje um clássico mundial do comic e uma referência de sua época e do graphic novel.

Descanse em paz viejo Héctor, a sua luta não foi em vão.