Episódio #03: Cabeça de Vaca: transcrição do episódio

 

(…) ao irem rio Iguaçu abaixo, era tão forte a correnteza que as canoas corriam com muita fúria. Logo adiante do ponto onde haviam embarcado, o rio dá uns saltos por uns penhascos enormes e a água golpeia a terra com tanta força que de muito longe se ouve o ruído.

Comentários“, Álvar Núñez Cabeça de Vaca

 

Álvar Núñez Cabeza de Vaca nasce aproximadamente em 1490 em Jerez de la Frontera, a ponta sul da Espanha que faz divisa com Portugal. São os anos em que o reino espanhol vai expulsar da península definitivamente os reinos musulmanos e que vai descobrir as terras na América, o começo da era de ouro do império espanhol.

O nome materno ‘Cabeza de Vaca’ seria uma corajosa conquista de um antepassado de Álvar quase trezentos anos antes do seu nascimento, na véspera da batalha de Navas de Tolosa em 1212, entre os almôades e os espanhóis liderados pelo rei Afonso VIII.  O antepassado de Álvar marcou com a queixada de uma vaca um atalho entre as montanhas que levou os espanhóis até os acampamentos dos almôades, que perderam a batalha. O império almôade era marroquino e dominou o norte da África e sul da Espanha entre os séculos XII e XIII. Como agradecimento ao pastor, o rei espanhol deu a ele o sobrenome de Cabeza de Vaca e um título de nobreza para a família. A batalha de Navas de Tolosa marca a virada em favor dos espanhóis na reconquista da península ibérica e por isso é tão importante para a história espanhola.

Aparentemente Álvar Núñez fica órfão de pai e mãe muito cedo, se alista no exército e serve nas expedições do rei Fernando de Castela em diversas guerras entre reinos italianos e espanhóis. Aos trinta e cinco anos de idade, já bastante experiente, embarca por primeira vez para América para tentar a sorte de se arriscar e enriquecer. Ele era um nobre por valentia e não por poses e mesmo assim é nomeado tesoureiro da expedição, um título que demonstra a confiança que a coroa tinha nele.

Ele faz parte da tripulação de Pánfilo de Narváez que tinha a missão de contatar a recente capitania de Cuba e explorar a região onde se dizia haver uma baía imensa e rica. Pánfilo de Narváez era um típico ‘conquistador’ espanhol: trata todos os não cristãos como inferiores e não mede esforços para lograr enriquecer o mais rápido possível.

Pánfilo de Narváez também já tinha fama no Caribe, e da pior espécie: tinha participado em Cuba do massacre de Caonao, quando centenas de indígenas oferecendo alimento foram massacrados pelos espanhóis que entenderam ser uma ameaça, evento descrito pelo frei Bartolomé de las Casas no seu famoso ‘Brevísima relación de la destrucción de las Indias‘. Narváez tinha também perseguido Hernán Cortés que foi invadir o México desobedecendo uma ordem direta, porém no confronto de espanhóis contra espanhóis perdeu um olho, e foi beneficiado pelo rei com o título de Adelantado para conquistar La Florida, atual estado da Flórida.

Narváez zarpa de Cádiz, sul da Espanha, em 1527, para na atual República Dominicana, perde alguns homens que preferem ficar, outros que morrem de febre, aguarda o tempo melhorar, vai para Cuba, toma alguns cavalos, aguarda o tempo melhorar, e parte para a Flórida com tres embarcações.

Aguardar o tempo melhorar não foi repetido sem querer, é algo constante para todos esses primeiros conquistadores: todos eles enfrentaram as dificuldades de navegação no Caribe e muitos deles encontraram a justiça da natureza dormindo para sempre no fundo do mar.

Dos seiscentos homens em cinco embarcações do começo da viagem desde a Espanha, serão agora quatrocentos em tres embarcações que se dirigem para a Flórida, mas perto do fim da viagem enfrentam as tormentas da região, naufragam, se separam e acabam sobrando alguns poucos no meio da desconhecida baía da Flórida.

Logo após o naufrágio os espanhóis conseguem se reagrupar e tentam em vão entrar terra adentro. São terrenos desérticos e sem habitantes, o que significa que são inóspitos e por isso os conquistadores não se aventuram onde não há ninguém.

E quando tem habitantes, não são nada amistosos e os invasores são expulsos.

Sem as embarcações são presa fácil de todo tipo de ataques, passam fome, sede, e não conseguem locais de descanso, mas mesmo assim sobem pela península, sempre ao norte e seguindo o Golfo de México, até chegar no atual Alabama, onde estão os Apalaches.

Esperavam habitantes que os ajudassem, mas os apalaches se organizam para um ataque que elimine os espanhóis. Perdem homens, cavalos e num ato de desespero constroem embarcações com resto de árvores até sua própria roupa. Pánfilo de Narváez cansa de tentar entrar rio acima e encara o Golfo do México com canoas, e a natureza faz justiça afundando ele na tentativa de enfrentar as terríveis correntezas da região.

Álvar cai doente como muitos espanhóis, mas é dos mais resistentes, e que sempre consegue comida, inclusive também ajudando seus companheiros e carregando eles por kilómetros. Em outras situações consegue revender objetos e circular por entre as tribus como um vendedor ambulante, às vezes vendendo somente conchas marinhas ou objetos de corte que ele mesmo faz.

Até onde sabemos pelo relato de Álvar Núñez no seu livro batizado de ‘Naufrágios’, sobraram somente quatro náufragos da expedição original: Alonso del Castillo Maldonado, Andrés Dorantes de Carranza , um escravo berebere chamado Esteban, provavelmente o primeiro africano a pisar o território do futuro Estados Unidos, e ele mesmo Álvar Núñez.

Eles são feitos escravos, são trocados uma tribo após outra e passam fome e privações. Em um momento crucial alguns índios caem doentes e Álvar, talvez imitando um velho xamã, consegue curar alguns deles mediante uma estranha imposição de mãos e muita reza. Álvar fica nessas terras aproximadamente 6 anos, aos poucos ganhando prestígio entre os habitantes dessas terras (que já seria aproximadamente em Houston), e depois, já com muitos habitantes dessas terras que o seguem, se lança ao sul pela costa do Golfo do México decidido a encontrar outros espanhóis.

A viagem será mais longa do que Álvar nunca poderia ter imaginado. Os quatro náufragos, sempre juntos e seguidos de um séquito de homens, mulheres e crianças, caminham em direção oeste, indo desde o atual Texas até Chihuahua no México, e chega até Sinaloa após atravessar o deserto de Sonora, sempre com índios que o seguem, muitas vezes tendo que abençoar comida, crianças e pessoas por onde passa.

Àlvar sempre dialoga com os habitantes procurando lugares conhecidos ou habitados por espanhóis. Dificilmente se zanga, e quando o faz recusa a comida ou dormir com os habitantes do lugar, que ficam com medo do xamã branco e o acompanham, mesmo atravessando o deserto. Dessa forma Álvar Núñez consegue finalmente chegar até a atual Culiacán (chamada de San Miguel), já no conquistado México, território ainda chamado de Nova Galicia.

Ele não era um cristão comum: os índios que o seguiram por milhares de kilômetros não querem se separar de seu benfeitor, e desconfiam, com razão, que serão escravizados, porque os cristãos matam, sequestram, escravizam ou saqueiam a quem encontram a seu passo, enquanto que Álvar comparte o que tem com eles e os trata como iguais. Álvar convence seus seguidores a ficarem para serem cristianizados, mas muitos são escravizados por outros espanhóis, e outros fogem.

Após uns meses de descanso, com roupas de cristão e depois de uma saga de quase 18 mil quilômetros e dez anos mais velho, Álvar Núñez Cabeza de Vaca volta para Espanha em 1537.

E aparentemente a estória deveria terminar aqui. Álvar Núñez sobreviveu a comandantes gananciosos e estúpidos, a naufrágios, a aborigens, à fome, à caminhada mortal de toda a baía do Golfo do México até a outra ponta do continente, e ainda à volta para Espanha. Era de se esperar que termine seus dias revivendo sua jornada ao redor de uma chaminé e contando estórias para os seus netos.

Mas Álvar não se aposenta tão cedo, continua como membro da corte sempre querendo ajudar seu rei, o que o leva a uma segunda viagem ainda mais incrível do que a primeira.

 

Segunda viagem

As notícias da América não eram nada boas: Pedro de Mendoza tinha fundado Buenos Aires, mas meses depois foi sitiado pelos índios querandíes que mataram a população de fome. Pedro de Mendoza foge com alguns dos seus tentando voltar à Espanha, mas morre no caminho de volta. Outros sobrevivem como Juan de Ayolas e Domingo Martínez de Irala e sobem rio acima ao longo do rio Paraná, até a atual Asunción del Paraguay.

A coroa espanhola estava preocupada com os portugueses navegando na América do Sul, talvez navegando demais, talvez passando a franja   muito mal definida em tratados e que nem cartógrafos estavam de acordo onde ficavam, e preocupado também com os conquistadores que faziam o que queriam nas terras do rei se aproveitando da longa demora das viagens e da pouca e confusa comunicação desses tempos.

E também era difícil seguir o business plan do rei espanhol: ainda não havia notícias do que acontecera ao certo em Buenos Aires mas era sabido que a sede agora estava em Asunción del Paraguay. Nomeia então Álvar Núñez como adelantado del Río de La Plata.

Adelantado era o título dado para um procurador do rei nas terras além-mar, uma espécie de governador que levava o plano principal das terras ocupadas e tinha voz de mando em todo o território a ele assignado.

Álvar Núñez chega a Santa Catarina em janeiro de 1541. Ele se informa com os indios guaranis que conhecem a região e inicia uma viagem a pé pela estrada de Peabiru desde Santa catarina até Assunción del Paraguay. O tato com os indígenas fica claro por dois fatores:

  • As pouquíssimas baixas de espanhóis, que morrem por causas naturais
  • As indicações dos índios na travessia são premiadas por Álvar com anzóis, lanças e outros presentes, pelos quais os guaranis são sempre amistosos, e até previnem os espanhóis para evitar as correntezas dos rios

Álvar Núñez desta forma é o primeiro espanhol a testemunhar a força descomunal das cataratas do Iguaçu, testemunha as imensas e complexas povoações de guaranis ao longo dos rios Iguaçu e Paraná e continua a travessia ao longo do rio Paraná, até chegar nos assentamentos de Assunción del Paraguay.

 

Esse rio Iguaçu é tão largo quanto o Guadalquivir e está situado a vinte e cinco graus. É muito povoado em toda a sua ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além de mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel.

Comentários“, Álvar Núñez Cabeça de Vaca

 

Álvar Núñez consegui um feito raro: a sua travessia pela estrada de Peabiru feita pelos guaranis, por quase mil quilómetros por meio da mata, foi realizada praticamente sem baixas de espanhóis e sem batalhas, demonstrando como governar pela justiça e pela recompensa dos povoados sem os maltratos que outros conquistadores utilizaram como moeda comum. Ele já tinha andado pela América e sabia muito bem se comunicar sem precisar da espada.

Em Asunción governava Domingo Martínez de Irala, que não gostou nada da chegada de um adelantado com poderes diretos do rei que pudesse colocar em cheque o seu domínio.

Álvar tentou um governo de harmonia entre indígenas e colonos mas não foi recebido com bons olhos pelos espanhóis. Depois de várias dissidências, Álvar foi colocado em prisão por ‘abusos de poder na repressão de disidentes’ e enviado para Espanha, onde teve que defender sua honra ante uma corte e já desprovido de poderes reais.

Álvar Núñez Cabeza de Vaca morreu em Sevilla, anos depois de reestabelecer sua honra mas sem nenhuma posse e velho demais para encarar novas aventuras.

 

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Por Outro Lado

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