O acidente de Deus

I

 

Chico olhava seus pés para não parecer nervoso.

 

– E por que você saiu de lá ? -indagou seu Joaquim, o dono da padaria  “Princesinha do Piraí”. Seu Joaquim olhava carrancudo como olhava a todos os candidatos a trabalhar com ele, embora Chico não soubesse disso.


– Ele está fechando, seu Joaquim. Não tem freguês – respondeu Chico

– E por quê não tem freguês ? – perguntou seu Joaquim quase desinteressado. Os óculos pequenos e quadrados lhe davam a impressão de aumentar a pressão do olhar. Chico sentiu seu coração disparar, mas obrigou-se a fazer uma cara despreocupada de desconhecimento. “Ai, Deus, pela Ritinha, não vais me fazer perder mais este emprego, … por favor,… me ajude!”, rezou mentalmente. Tomou coragem, e num segundo respondeu :

 

– Não sei, seu Joaquim, mas o pessoal anda falando que é caro. E caro, bom, o senhor deve saber que lá é um pouco.

 

– É, isso é verdade – disse seu Joaquim. E começou a dar uma pequena lição caseira de sobrevivência para o Chico. Bem para o Chico ! Mas, sim, como seu Joaquim tinha uma movimentada padaria e Chico nem tinha empresa, o direito de expor suas teorias era do seu Joaquim, muito embora o seu sucesso se devesse mais a que felizmente sua padaria ficava a uma quadra das únicas duas montadoras de calçados, e grande parte do pessoal tomava café e ia almoçar lá, do que à contagem obsessiva de vinténs do final do dia do seu Joaquim.


– Tudo bem, Francisco. Eu vou lhe dar uma oportunidade, pois todos merecemos sempre mais uma, não é ?

 

– Obrigado, seu Joaquim, o senhor não vai se arrepender !

 

E não ia mesmo. “Obrigado, meu Deus! A Ritinha vai ficar contente! ” 


II

 

Então Chico, magro e baixinho, e Dona Graça, bastante maior de tamanho embora da mesma altura, ficavam do outro lado do balcão, o que era mais cansativo do que parecia a simples vista. Toda de branco e suando profusamente, Dona Graça montava os pratos que o Chico contava e entregava enquanto esquentava algum prato diferente e não deixava a batata frita passar do ponto.

 

No fim do almoço a Dona Graça perguntou se o Chico segurava por vinte minutos, e foi sair. Chico montava um bife à cavalo quando pediram um omelete, ao mesmo tempo que o chapeiro pedia mais batata frita. Chico botou mais batata para fritar, cuidou dos ovos, o presunto e o queijo, caiu um pouco de polenta quando foi servir um outro prato, mexeu o feijão, e subitamente perdeu o equilíbrio com a frigideira na mão.

 

Chico nunca entendeu exatamente por que o óleo não o tocou, mas o seu desespero foi com  o pulo do omelete até quase o teto. O omelete perdeu velocidade antes de tocar o teto, ricocheteou na parede e foi se esparramar frouxo numa das bocas apagadas no enorme fogão. O catou o mais rápido que conseguiu e ficou em silêncio, tentando verificar se alguém teria percebido sua irrepetível manobra, sua cambalhota impossível, e a do omelete. Discretamente, jogou fora a parte mais comprometida do omelete, colocou a parte essencial dele de volta na frigideira e com mais um ovo encobriu as evidências do vôo sem pensar mais no assunto.

 

III

 

– O que é isso ? -ouviu do outro lado do balcão. Alguém apontava para o pequeno vidro que o Chico olhava petrificado: estava coberto de óleo, e até com um pedacinho delator de tomate, e um restinho de ovo.
Mas antes que o Chico possa falar, um homem dizia que uma imagem de São João e o Menino Jesus tinha se formado milagrosamente. Do outro lado do vidro, o resto de tomate era a cabeça de São José, a mancha de óleo o seu corpo segurando o menino Jesus. O impressionante era a mirada terna que o tomate parecia dar ao restinho do ovo, no fim da mancha, ou melhor, da imagem do menino Jesus. Enquanto o homem encontrava os detalhes e os descrevia para um espectador assombrado, o seu Joaquim saiu do caixa e foi até o vidro. Antes que chegasse, Chico limpou o resto de ovo e tirou o tomate ante o desespero do homem, o coração do Chico explodindo no seu peito, batendo cada vez mais forte quanto mais o seu Joaquim se aproximava. Então ficaram os tres falando da imagem miraculosa, agora uma mancha de óleo misturada ao pó já velho do vidro. Felizmente o tomate, que parecia tão importante, não afetou a formação da imagem miraculosa, que o Chico preferia sem ele. O olhar compassivo se perdeu um pouco, mas ainda São José carregava nos braços um menino que o olhava com um certo olhar entre alegre e sábio. Chico se desculpou a eles dizendo que “havia acreditado ser uma mancha”. A veia do pescoço latejava ainda, mas continuou servindo os contra filé, o arroz, o feijão, e até o bendito omelete, agora reformado e inocente ante o fato da imagem.

 

Enquanto Chico servia os pratos, cortava a salada, Dona Graça voltou, e o Chico pôde ver a aglomeração que já se formava na porta do banheiro, exatamente na sua frente, do outro lado do pequeno vidro. O que ele não sabia era que a notícia começou a se espalhar após o almoço, e já às quatro da tarde a padaria começou a receber filas de fiéis que ficavam enfrente ao pequeno vidro rectangular que vivia fechado desde que o exaustor novo retirava a fumaça. Os fiéis se ajoelhavam, murmuravam baixinho, e Chico começou a se incomodar de ouvir os pedidos de saúde, emprego novo, casamento da filha, de não ter engravidado ou de por favor dar uma nova esperança a sua vida. Da mesma forma que pareciam ser dirigidas a ele, o lembravam a toda hora do acidente que gerara o incidente todo, do qual se sentia ainda inteiramente responsável.

 

Chico saiu da cozinha assim que o horário de almoço passou, pouco antes das tres, mas tomou coragem e foi ver como se via o seu estrago do lado do fora. E ficou impressionado com a semelhança, que não era pouca, com uma imagem que tinha visto quando era pequeno, e que o havia impressionado, principalmente pelo olhar bondoso e alegre da criança. E começou a ficar confuso tentanto deduzir o que teria acontecido.

 

A sua prece da manhã tinha sido cobrada com um alto preço ? E como explicar que não tenha se queimado ? Não era um sinal de que Deus o tinha usado como seu sagrado Instrumento para o milagre ? Pois, se tivessem falado “Chico, arremesa o omelete para a parede, que quero que seja formada assim a imagem de São José”, obviamente não teria conseguido., e teria achado a exigência um tanto ultrajante. Tinha sido melhor assim, o bom Deus não ter preparado o seu coração para o que viria, mas mesmo assim o Chico estava confuso.

 

Perto do horário de saída, seu Joaquim, que era devoto mas também era padeiro, tentou interrogá-lo para adivinhar a origem daquela imagem, a qual Chico negou ter provocado (o que não era uma mentira completa, pois Chico não tinha de fato formado aquela imagem intencionalmente  e portanto da qual não se sentia responsável direto).

 

– Eu tentei limpar, lembra, seu Joaquim ?

– Lembro, lembro. Tudo bem, Chico, vai que já deu tua hora, seu trabalhou hoje foi muito bom. Amanhã às oito, sim ? Estas são as gorjetas, de hoje. Nunca teve tantas…

– Tá então, seu Joaquim. Obrigado, seu Joaquim ! Até amanhã.

 

E assim Chico se despediu do pessoal e saiu da padaria, esquivando os devotos que começavam a se aglomerar na porta da padaria. Estava cansado, mas os murmúrios o tinham deixado confuso e preocupado.

 

 


IV

 

Foi uma noite difícil, vendo o jornal local descrever o fato, ver o seu Joaquim descrever o milagre, ver depois no outro canal o famoso repórter Dudu Prezzo, com um certo capelão que o Chico desconhecia, comparando aquela imagem que Chico já tinha visto na infância com a imagem do vidro. Ritinha quis saber o que tinha acontecido, e o Chico contou exatamente o que acontecera, sem mencionar o incidente do omelete e de onde vinha o óleo que formava a imagem com a sujeira.

 

Como uma rádio tinha alegado que a mancha era formada pela poeira, um coro de incrédulos se formou em torno da possibilidade de ser uma junção aleatória de velha poeira. Mas o pior foi que alguém da padaria, usando esta alegação e após uma hora de indecisão geral, limpou a poeira com um pano, cuidadosa e respeitosamente. Mas a imagem não sumiu, pois a linha de óleo ainda continuava lá, e mesmo que o menino Jesus tenha sido impiamente destruído, São José continuou a olhá-lo compassivo, e os fiéis urraram vitória. Neste ponto, narrado pelo Dudu emocionado, Chico se convenceu de que não tinha sido quem provocara a imagem, mas somente mais um dos instrumentos divinos. Jantou e depois conseguiu dormir mais sossegado, por ter conseguido o emprego e por ter se livrado da culpa que ainda o atormentava.

 

No outro dia, após uma noite com a Rita como não passava fazia mais de mês, Chico acordou cedo, se arrumou contente e chegou dez minutos antes na padaria, que já tinha uma fila para as preces, mas que ele podia furar por ser funcionário. Fez a prece para São José, agradeceu a graça concedida e se dedicou a cortar os pães que iriam para a chapa.

 

Caçando mortos


I

Perto da fenda espaço-temporal que se abre às quartas-feiras de madrugada na rua Cornélio Bouchard e conecta Hokkaido com uma parte podre do oeste de São Paulo, lá perto havia um prédio velho que tinha sido filial de um banco do norte. Mas estava fechado para reformas há muito tempo, não sei ao certo quanto. O banco protelava as reformas aguardando algum dinheiro cair do céu, era por isso que a horda morta e malcheirosa se escondia por lá.


Eu não queria caçá-los, mais bem eram a mania do Damião. Eu ia para estar com a sua irmã Débora. Ele de manhã nos avisava dos lugares onde iríamos. Bah, melhor dizer que me intimava dizendo algo como “hoje é na rua da Glória, depois da meia-noite. Não vai mijar nas calças, hein, pirralho ?”. Como se alguma vez tivesse dito que não ia.


Não sei exatamente como descobria os lugares. Eu o via na escola, depois da aula, sumido na biblioteca. Juntava livros tão inesperados como o “Racionalismo Cristão” (que é na verdade um pout-pourri espírita escrito no século vinte no Rio de Janeiro), a “Vida dos símios da América” ou “Matemática Financeira”. Ainda coçava o queixo fingindo que estava pensando, e sempre me pareceu que antes que dissesse “já sei” com aquele olhar de sabichão, na verdade conhecia a resposta e fazia um suspense barato para dar mais valor ao seu ridículo hobbie.


O primeiros encontros não deram em nada, e julguei que o Damião tinha algum desvio esquizóide. Débora dizia que não, e conversando enquanto Damião ia e vinha pelas ruas da Casa Verde, a minha atração por ela ficou muito maior. Mas o que me chocou foi o primeiro dia em que realmente vimos um morto vivo desses. Porque até lá o Damião era um esquisitão que eu acompanhava por ser um desocupado, mas agora, agora o tínhamos visto, se lamentando de suas coceiras, arrastando os pés, com aquele cheiro putrefato de carne mole e o olhar de vidro quebrado.

Damião não tinha piedade. O coiso já estava morto, dizia, piedade seria uma forma covarde de não assumir o perigo que representava. Os insultava enquanto lhes entregava um punhado de sal. Eles olhavam num misto de curiosidade e rara felicidade. Levavam à boca, a coisa queimava, seus olhos percebiam a traição, caíam no chão em mímicas inocentes soltando espuma, e derretiam de dentro para fora, tossindo e apagando os olhos de vez, como um carro sem bateria.

Damião nos assustava com a lei do silêncio. Em circunstância nenhuma poderíamos contar a ninguém o que fazíamos, pois havia uma sociedade secreta que não só os protegia, senão que nas suas conclusões malucas às  vezes os zombies eram a sua maligna criação. E aquela sociedade secreta teria com certeza simpatizantes na escola (ele até desconfiava de uma ou outra pessoa, dependendo do que lhe faziam ou de como o tratavam, e dadas as várias esquisitices, a lista era grande).


O pior mesmo era que se deleitava em fazer comentários velados sobre o assunto quando havia outras pessoas, usualmente na escola, o que completava seu ar sabichão com um toque de infantilidade. Quando lhe falavam que estava com cara de cansado sorria que nem retardado, e dizia algo idiota como “estivemos ocupados, não é, Leandro ?”. Se gabava do seu segredo quando estávamos em público, mas não gostava que falássemos nisso. Ele não percebia a tola distorção que faziam dos seus comentários, e eu o odiava também por isso.


Mas aí estávamos os tres de novo, nesse velho prédio quase no centro da cidade. Eu queria tentar definitivamente ficar mais próximo a Débora. Bom, tentava juntar coragem fazia quase um mes, mas desta noite não passaria.

 

II

E esta é a noite. Estou preparado.

 

Entramos pelo buraco deixado por um vidro quebrado, mal escondido por um tapume que já havia sido propaganda eleitoral. No térreo abandonado, uma pilha de entulho, estruminho de rato em pontos como as pedrinhas de João e Maria, o reflexo azul da luz da rua. Tres motos com escapamento aberto arrebentam meus tímpanos.

 

Damião aproveita para correr, e o seguimos com nossas bolsinhas de sal.


Débora na sua blusa de frio, de cócoras, esperando atrás de uma porta. Odeia os coisos, mas gosta de matá-los, se sente protegida. Eu, do outro lado da porta, cobrindo a Damião que entra confiante.  O reflexo da luz nos olhos de Débora.


– Escuta, não podemos outro dia só sair por aí ?

– Como assim ?

– Ah, sei lá, estou meio cansado. Tipo ir no cinema, tomar um choppinho.


Entre contrariada e curiosa:

 

– E o Damião, como é que fica ?

– Mas nunca acontece nada. Olha só, ele entrou na boa. Um dia só… o que você acha ?


Desvia os olhos.

– Cuidado, escuto alguém respirar.


E vai atrás do Damião.


– Cuidado, Damião !

– Ghhghhgjk…


Salva o Damião ? Ou foge de mim ? Alguns deles às vezes falam, e este diz algo como que nos esperavam, ou esperavam que um dia acontecesse isso. E depois toma o sal, o põe na boca, cai tossindo.


Damião já avança e Débora olha o lento ´pshhhh´ onde o coiso submerge e se desfaz.


– Você não me respondeu. -instigo ela novamente.


Não tira os olhos do coiso.


– Eu não sei, Leandro, me deixa pensar.

– Não.


Mais insistente. Mais perto. Tomo uma mão, a coloco no meu peito.

 

– É agora.


Retira a mão, sorri.


– Agora não. Vamos atrás do Damião.


“Ela disse agora não, isso significa ´depois sim´ !”


Então fico admirando seu cabelo cheio e ondulado, recolhido delicadamente nas costas. Mas ela se vira:

– Leandro, eu prefiro que a gente continue com Damião.

 

Paro e penso. Barganha.


– Se for não, não preciso vir mais aqui. Estou cansado. Estes coisos são inofensivos e não vou ficar mais correndo atrás deles.


– É verdade, eles são mais inofensivos do que você, ou Damião.

– Isso é um não ? Você prefere que não venha mais ?

– Acho que sim.


E some do outro lado da porta. Fico lá, já do lado de uma pilha
efervescente do barro cinzento.



Meu coração dispara e tenho vontade real de chutar a coisa toda. Mas
uma pena imensa me invade, uma pena de mim mesmo que se mistura com o olhar do coiso que fica perto de mim.

 



– Eu – diz – também sei o que é isso. Eles simplesmente nos fazer
dançar na sua maldita frigideira.

Olho para ele. Automaticamente tiro um pouco de sal da sacolinha e
advirto:


– Então você sabe o que precisa fazer ?


– Todos sabemos, mas Damião não percebe o nosso sacrificio, nunca vai
entender.

Sim, o cheiro é desagradável, mas o abraço é sincero. Batemos um nas
costas do outro; foda não conseguir deixar de soltar uma lágrima por mim, e uma por ele.


Passo o punhado e ele a recebe sorrindo, curioso.