Transcrição do episódio #13: El partido

Narrador :

Olá ouvintes! Estamos em 22 de junho de 1986, no Estádio Azteca num dia de futebol, sol radiante de meio-dia com 30 e poucos graus de calor nos mais de 2000 metros de altitude da Cidade do México. Você ouve aqui um dos jogos das quartas de final do Mundial do México 1986. E estou aqui com <Thiago Corrêa>, olá Thiago

Thiago Corrêa:

Olá <Julián> (…)

Hoje vamos ver uma das grandes batalhas do futebol moderno, de um lado a Inglaterra que vem de vencer o Paraguai por 3 a 0, está muito confiante e acredita que conseguirá lidar com o que vem a seguir. Mas do outro lado temos a Argentina de Diego Armando Maradona, que vem de um jogo duríssimo contra o seu arqui-inimigo Uruguai vencendo por 1 a 0.

Narrador:

Argentina parece preparada para tudo, querendo, não só uma, mas várias vinganças de derrotas sofridas em todos os níveis, então este jogo vai ser memorável pelo seu significado. Estamos nas quartas de final, os mata-mata do mundial de 1986 no México. 

Para lembrar aos ouvintes, a última copa do Mundo foi na Espanha em 1982. Argentina estreou em 13 de junho perdendo da Bélgica, mas os olhos do mundo esse dia estavam milhares de quilômetros ao sul, na mais recente das derrotas, nas ilhas que seriam chamadas por poucos dias de Ilhas Malvinas.

A batalha final pela posse das ilhas começou na sexta-feira 11 de junho, com os britânicos chegando à capital Puerto Argentino no domingo, quando as tropas argentinas são dominadas definitivamente no final do dia. No momento do jogo contra Bélgica estava acontecendo uma das maiores e mais sangrentas batalhas pelas ilhas, a tomada definitiva da capital, que se arrastou pelo final de semana. Na segunda-feira 14 de junho é assinada a rendição das forças argentinas, Puerto Argentino volta a ser Port Stanley e as Malvinas voltaram a ser Falkland Islands.

E digo batalha final porque Inglaterra e Argentina lutam pela posse desse arquipélago das Malvinas desde 1833 quando pescadores argentinos nas ilhas foram expulsos pela marinha britânica, que toma posse e coloniza as ilhas desde então.

E Argentina teve tantas guerras civis, tantos golpes de estado e governos provisórios que as protestas reivindicando o território sempre passaram em branco em cortes  internacionais.

Em 1982 sofria com um governo militar de ultra-direita, ou seja nacionalista. Se envolveu assim numa guerra interna que dizimou seus pares e quando ficou evidente que estavam sequestrados por uma ditadura ferrenha dentro de uma profunda recessão econômica, quando os protestos para acabar com a ditadura já eram ensurdecedores, os militares se agarraram ao nacionalismo barato levando o país à conquista das ilhas. A popularidade do governo foi enorme por alguns meses de delírio coletivo, e quando a grande imensa ficha veio a cair, que jamais iam ganhar do poderoso império britânico, que não iam resistir nem meses ao conflito, o país assinava a rendição quase simultaneamente quando saía do mundial. Por isso teve esse questionamento catártico do tipo “como cheguei até aqui?” que fez expulsar os militares, convocar eleições, tudo praticamente no decorrer de um ano, e começar assim uma reconstrução a partir de um novo sentimento patriótico: recolher os cacos e dar o melhor de si.

Thiago Corrêa:

E 1982 foi um ano terrível também nas copas. A participação da Argentina na copa de ‘82 iria terminar perdendo do Brasil por 3 a 1, com Maradona expulso.

Narrador:

Parece que a gente está misturando política e futebol, isso é um tabu que muitos esportistas e comentaristas não ousam abordar. Mas está sempre presente porque no imaginário um país se manifesta através do esporte, senão não haveria nações disputando mundiais e olimpíadas.

Bom mas estou aqui também com o Tiago Rosas para me ajudar a entender o que é o futebol em tudo isto.

Tiago Rosas:

(boa tarde aos ouvintes, etc)

O futebol é uma manifestação popular. É claro que não tem como comparar com uma guerra, mas simbolicamente jogos de futebol envolvendo nações, são sim eventos políticos, até mais representativos porque o coração do torcedor é assim. O fato dos argentinos sequer lembrarem da copa de ‘82 significa justamente isso: não havia um patriotismo que os levasse a torcer, estavam humilhados pelos seus próprios pecados, por ter deixado um governo militar determinar o que era patriotismo e o que não era, por ter torcido em ‘78 no meio de torturas a metros do estádio, por ter participado de uma guerra suja do Estado contra seus opositores.

Narrador:

Mas a muitos também provoca um sentimento ambivalente de afirmação assim como de rejeição, parecido talvez a um jovem brasileiro de 2020 na vontade de protestar com uma bandeira brasileira. É um símbolo pátrio, mas a partir do momento em que é sequestrado por uma ultra direita nacionalista, xénofoba e racista, passa assim como a manchar esse mesmo símbolo.

Tiago Rosas:

Você pode ter um amor genuíno pela sua pátria, pelos seus pares, pela sua cultura, pela sua língua. Mas o nacionalismo é um tipo de sentimento de superioridade nacional muito mais perigoso, porque tem o poder de engajar pessoas às coisas mais loucas, como guerras contra outros países ou perseguição política dos seus inimigos, que não seriam ‘patriotas’.

Narrador:

É, realmente, governos totalitários focam num inimigo interno que precisa ser eliminado. Como a gentalha precisa ser convencida, abusam de slogans para se apropriar de símbolos pátrios e assim manipulam as pessoas utilizando seu patriotismo. É assim como a Alemanha nazista usava o slogan ‘Alemanha acima de tudo’, o Brasil… bom, vai usar praticamente o mesmo slogan em 2018. Na época da ditadura argentina dos 70 o slogan “Las Malvinas son argentinas” foi algo parecido e mesmo que qualquer argentino fale que esse slogan é verdadeiro, por dentro fica esse sentimento contraditório pelo seu passado.

Bom, Argentina foi destruída numa ditadura que faliu o país e arrasou sua auto-estima. Então em 86 já está num governo democrático, já está novamente erguida, é novamente uma potência no futebol, e hoje é um dia de revanche. O que não se deu no campo de batalha, talvez haja uma compensação no gramado, pelo menos para curar de vez esse orgulho ferido e exorcizar esse fantasma de uma vez por todas.

O que você me diz da Argentina de 86 Thiago Corrêa ?

Thiago Corrêa:

Nesta copa de 1986 a equipe argentina se preparou para ganhar de uma forma profissional e obsessiva. A condução do diretor técnico Carlos Bilardo é assim, detalhista ao extremo, cuidando da alimentação, do preparo, de um esquema tático diferente. Mesmo assim se classificou a duras penas e é bastante criticado internamente, principalmente pela sua insistência em manter a jovem revelação Diego Armando Maradona com a camisa 10 e com a faixa de capitão.

Houve briga porque Passarella era o capitão e não concordou com a decisão, mas uma grave infecção intestinal nas vésperas do mundial o deixou de cama e depois no hospital a copa inteira, e foi substituído no gramado por José Luis ’El Tata’ Brown.

Os jogos são no escaldante sol do meio-dia. Um dos principais estádios reformados para a copa é o do América do Distrito Federal, a megalópole antes azteca e depois espanhola. O estádio Azteca é chamado de Coloso de Santa Úrsula pelo bairro que o abriga, o bairro onde viveram Diego Rivera y Frida Kahlo, Trotsky e o penúltimo rei romeno, Carlos II.

Narrador:

Bairro chique!

E os jogadores já aparecem no gramado. O time britânico se apoia mais na sua estratégia do que em jogadores de renome. O capitão e goleiro Shilton organizou uma defesa consistente, e a estrela do ataque é Gary Lineker. Ele acabou de sair do Leicester para jogar no Everton. Como todo time europeu ele aparenta representar esse embate entre a estratégia europeia contra a individualidade dos sudacas.

Tiago Rosas:

Mas o time argentino já está com jogadores experientes:

Nery Pumpido, Oscar Ruggeri e Héctor Enrique do River Plate, que este mesmo ano irão ganhar o campeonato nacional, depois a Libertadores e mais tarde no final desse mesmo ano o mundial de clubes.

Ricardo Giusti e Jorge Burruchaga do Independiente ganharam o mundial de clubes na primeira grande revanche aos ingleses, contra o Liverpool em ‘84, junto com Bochini, que não joga  como titular porque é centroavante e esse lugar é do Maradona. Bochini é o líder do Independiente e com ele o time ganhou nada mais do que 4 copas Libertadores.

Ainda tem Jorge Valdano que já é ídolo no Real Madrid, Cuciuffo de Vélez Sarsfield que fez o gol das oitavas contra os uruguaios, Sérgio Batista do Argentinos Juniors e um ídolo do River Plate e agora no Boca Juniors, Julio “El Vasco” Olarticoechea.

Para coroar a escalação, Maradona, el Pelusa, el Pibe de Oro, que saiu da base do Argentinos Juniors, para jogar no Boca, de lá para o Barcelona, e agora está no Napoli.

Narrador:

Baita equipe !

E começa a partida!

4 minutos de jogo, Cucciufo toca no lado direito e tenta o centro, a bola bate em Reid e é lateral para a Argentina.

Essa camiseta da argentina está esquisita…

Thiago Corrêa:

Na verdade foi uma camiseta azul escura feita às pressas, porque no último jogo com a camiseta escura, os jogadores reclamaram que ela era muito pesada. 

A camiseta oficial celeste e branca é mais leve por causa da gola ampla e por uma técnica nova para eliminar o suor que a camiseta escura não tem. Daí o diretor técnico Bilardo mostrou como queria as camisetas e estragou várias delas cortando a gola com uma tesoura, daí teve que mandar membros do staff comprarem camisetas Le Coq Sportiff mas de gola ampla e mais leves. Depois de andarem pelo centro da cidade, acharam elas, mas tiveram que colar esses números brilhantes que acharam no comércio local.

Narrador:

Depois de quase dez minutos de jogo, Cucciufo domina a bola no peito, freia e passa para Burruchaga, vai para Maradona que dribla um, dois tres e falta… ! Fenwick leva cartão amarelo. É falta para o time argentino bater.

Essa camiseta é diferente mesmo, os números parecem mais brilhantes.

Thiago Corrêa:

Dizem que as cozinheiras do América que estão junto à equipe passaram a tarde costurando os números. O staff do Bilardo pegou números do futebol americano e por isso são cinza brilhante. Por pouco o time argentino não perdeu de WO por não ter camiseta pronta.

Narrador:

Maradona bate, pega na barreira e quase entra, Shilton tira a bola para o corner.

O time sulamericano aos poucos vai controlando a partida.

Tiago Rosas:

Neutraliza bem o ataque inglês mas não acha o caminho do gol.

Narrador:

O jogo continua travado no meio de campo.  O time inglês tenta lançamentos e domina a bola bem na zaga e com dificuldade no meio de campo, o time argentino ataca mas não consegue chegar com qualidade no gol inglês.

E assim depois de várias pequenas batalhas o primeiro tempo se esvaiu e não saiu nenhum gol.

O que vocês esperam do segundo tempo ?

<Thiago Corrêa>

<Tiago Rosas>

Narrador:

As equipes entram com a mesma formação, Arg começa com a bola e determinada a marcar. Depois de algumas tentativas Valdano não consegue dominar na área, a equipe argentina recomeça e

Foi com a mão? Se foi desculpem, mas é a vingança perfeita!

Tiago Rosas:

Pelas Malvinas e por 66, também!

Em 1966 na copa no Reino Unido foi a última vez que Argentina e Inglaterra se enfrentaram em copas, num Wembley lotado. No segundo tempo, num dos vários lances que o capitão argentino Ratín não entendeu o que o árbitro alemão cobrava, foi questionar ele e foi arbitrariamente expulso. Ratín se plantou na área se recusando a sair e pedindo um intérprete, confiando que a racionalidade iria vencer, mas o árbitro confirmou sua decisão obrigando o capitão a sair, que num último gesto segurou a bandeira britânica no corner, e com isso ganhou o apelido nos jornais de ‘Animals’. 

Narrador:

Sim, daí os ingleses com 1 jogador a mais conseguiram o gol e passaram para a próxima fase, mas as protestas na FIFA foram tantas que foi inventado a partir disso o sistema utilizado até hoje de cartões amarelo e vermelho que não existiam até então.

Mas a equipe argentina se sentiu sempre injustiçada e agora Maradona lava a alma de todos os argentinos, se foi com a mão, elas por elas, “mano a mano hemos quedado” como diz o tango !

Vingança feita continua o jogo, estamos no começo do segundo tempo tudo pode acontecer, os ingleses tentam um segundo ataque mas não conseguem, Henrique consegue dominar a bola e passa para Maradona quase no círculo central.

Este é o gol do século, exatamente 4 minutos depois do gol mais controverso das copas Maradona faz o gol mais bonito das copas, contra o grande rival de sempre, contra O rival, contra a que se diz criadora do jogo, contra o império que simboliza todos os impérios pelos os sudacas que simbolizam todos os injustiçados, Maradona marca o gol do século deixando toda a equipe britânica para trás e o goleiro Shilton sem ação, é o gol da vida de Maradona, é o gol da revanche, da vingança final contra o rival mais odiado e assim Maradona salta de um jogador prodigioso para a glória eterna!

Ficamos assim, mano a mano, estamos quites iguais na traição. Ingleses empurraram pra fora das ilhas os malvinenses e ficaram com as ilhas, driblam as leis internacionais, ignoram os protestos. Mas hoje os argentinos conseguem lavar o sangue com triunfos passageiros como diria Gardel, na milonga, no gramado da vida conseguiram gambetear até o final e deixar 6 na fila.

O jogo continua tenso e com a bola com mais domínio inglês, inclusive com um escanteio e gol de Lineker, gol que ninguém mais lembra. Um gigante Maradona escureceu o sol do meio dia e a Inglaterra lhe resta tentar até o final da partida, tentar em vão até reconhecer que estão fora da copa.

E apita o árbitro, é fim de jogo no Estádio Azteca, Argentina vai para a semifinal e Inglaterra volta pra casa.

Bom, o que vocês acharam do jogo?

<Tiago Rosas>

<Thiago Corrêa>

<Agradecimentos>

O vestiário é festa e um desfile de jornalistas querendo falar sobre o primeiro gol, agora definitivamente reconhecido como feito com a mão, que Maradona nega até o fim. Das conversas no vestiário sai a admissão devocional ‘si fue con la mano, fue la mano de Dios’.

Irão passar anos e depois a grafia até do nome vai roubar o de desse deus cristão e gasto, D de Diego, o número 10 eterno de sua camiseta, e o ‘s’ do plural de todos os argentinos. D10S.

Ainda haveria mais feitos heróicos nessa copa, com Maradona fazendo dois gols belíssimos contra a Bélgica, um deles deixando 4 no caminho e acertando um cruzado de canhota no ângulo esquerdo do goleiro Pfaff. Isso porque um gol de Valdano com o peito foi mal anulado, o árbitro viu um braço que não existiu, provavelmente da FIFA ainda reagindo mal a ‘la mano de Dios’.

No jogo da final da copa contra a Alemanha, o zagueiro José Carlos El Tata Brown seria o primeiro herói, marcando o primeiro gol de peixinho contra o goleiro Schumacher que saiu mal e não calculou o efeito da bola no ar do altiplano mexicano, uma bela contirbuição asteca para sacramentar uma copa sudaca.

No segundo tempo, El Tata Brown se lesionou no braço mas não quis sair. Depois do atendimento do médico, fez um furo na camiseta com a boca, na altura do umbigo, e colocou o polegar, jogando o resto do segundo tempo com o braço imobilizado na sua tipóia improvisada.

El Tata Brown estava com o braço fora de lugar e só soube disso depois de ser campeão do mundo.

O segundo herói seria o impassível Maradona. Quando Weller marcou o segundo gol alemão empatando a partida já na segunda metade do segundo tempo, Maradona impassível segurou a bola, olhou para os seus companheiros, perguntou se estavam bem. Responderam que estavam bem, dava para fazer mais um gol sim.

Minutos depois aplicou uma gambeta clássica maradoniana chamando os alemães ao seu redor no meio do gramado sagrado azteca, e fez o passe para Burruchaga, deixando ele sozinho para correr e fuzilar o goleiro Schumacher e assim chegaram à glória.

Ad10s !


Comments

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *