David Robert Jones (David Bowie) tem quase 700 músicas originais ao longo de 50 anos de produção musical.
Além de um compositor prolífico, obsessivo e complexo, namorava como ninguém o glamour da fama de um rock star, e alcançou o estrelato quando quis e como quis.
Mas, por outro lado, foi um compositor muito consciente do seu tempo, que navegou em todas as tendências da música contemporânea, e em cada uma delas tem pérolas muitas vezes desconhecidas por não estarem em álbuns famosos, ou por não virarem hits conhecidos. Também formou bandas com músicos consagrados aos quais influenciou, e pelos quais se deixou influenciar, o que era uma honra para o músico e para Bowie era mais uma oportunidade de expandir e ampliar seus próprios horizontes musicais.
Não vamos falar dos grandes sucessos de Bowie -do Major Tom do Space Oddity, ou de Changes, Life on Mars, Rebel Rebel, Ashes to Ashes, ou Let’s Dance, que também gosto demais!- mas hoje o foco é o lado B de Bowie, um Bowie tão brilhante quanto excêntrico e desconhecido e que merece muito ser ouvido.
É bem provável que você conheça a persona mais famosa de Bowie , Ziggy Stardust. Afinal ele inspirou do glam até o punk rock, um personagem que associou de forma magistral o imaginário da exploração espacial com o distanciamento e isolamento que os jovens sentiam diante uma geração de velhos repressores, jovens que preferiram se esconder nas viagens psicodélicas e que encontraram um ser humano menos racista, menos sexista, menos retrógrado.
Ele acabou com as apresentações do Ziggy subitamente, perto de 74, mandou embora os músicos da banda e começou uma nova banda do zero. Também estava lendo muita coisa, e musicalmente se sentia atraído pela música americana. As leituras o levaram para escrever as músicas de Diamond Dogs, especialmente a leitura de 1984 de George Orwell. É nessa época que escreve ‘Big Brother’, uma descrição do grande irmão como a faria John Winston, o protagonista da novela, já depois de uma lavagem cerebral, onde Bowie usa uma orquestração magnífica com um refrão inflamado como a devoção ao Grande Irmão.
Vamos ouvir então “Big Brother” do disco Diamond Dogs de ’74, junto com “Chant of the ever circling skeletal family“, a continuação que é um coda psicodélico de coros com gritos ‘brother!’ , uma guitarra hipnótica e um final inesperado.
Não, a memória do seu celular está ok, o seu player não quebrou, não é vitrola, é só Bowie que te trola e repete ‘Bro’,’Bro’ em loop !
Bowie faz uma nova viagem para os Estados Unidos e fica fascinado por tudo, pela cultura, pelas roupas, pelo soul, RnB, música toda regada a quilos de cocaína em que chafurdava a Los Angeles dos anos setenta. Mesmo com a aura hippie invadindo San Francisco, Ziggy Stardust tinha desaparecido e uma nova persona começava a emergir do seu interior.
Carlos Alomar o apresenta aos melhores inferninhos e companhias musicais, iniciando uma das grandes parcerias de Bowie. Alomar contou uma anedota da época na qual certa vez depois de uma noitada daquelas, chegou com Bowie na sua casa já entrada a manhã, e sua mãe, preocupada com tal figura pálida e magérrima, preparou um almoço latino-afro-americano reforçado (imagino que foi frango caipira, arroz, feijão, salada) e como Bowie sempre foi um gentleman, sentou à mesa, almoçou e agradeceu, claro, para voltar depois a sua vida de vampiro londrino admirador do real american way of life.
Nessa época já em ’75 grava ‘Young americans‘ como uma homenagem a esse Rhythm & Blues que tinha acordado o jovem Bowie para a música, que ele sempre tinha admirado e que agora tinha conseguido ouvir de primeira mão. Desse álbum são famosos a música título ‘Young Americans’ como também a música ‘Fame’ que gravou com John Lennon, mas vamos ouvir uma obra prima pouco conhecida, composta por Bowie e perfeitamente executada por Luther Vandross e sua banda, com um coro maravilhoso envolvendo um cânone dificílimo de cantar, contrapondo as vozes e o sax, a música ‘Right‘.
Nessa época já crescia em Bowie uma nova persona, uma personagem de um homem pálido, distante, um último romântico num mundo frio e ausente: o Thin White Duke.
Bowie decidiu que deveria apresentá-lo, e compôs uma apresentação dentro da música “Station to Station“, faixa título de seu próximo álbum.
“Station to Station” é uma peça operística de dez minutos que junta os vagões de um trem com os devaneios bowísticos de um ser romântico com as idas e vindas de alguém que não poderá ser freado (e por algum motivo Bowie confessou não lembrar como as gravações aconteceram, provavelmente por estar totalmente focado na composição num céu de champagne e cocaína, e assim Bowie canta que é tarde demais, é tarde demais).
Mas outra música que reflete muito bem o espírito do Thin White Duke é “Stay“, ainda influenciado pelo soul e partindo de um ritmo na guitarra de Carlos Alomar onde Bowie divaga e implora que fique com ele uma figura idealizada, ou talvez sua esposa Angie com a qual se amavam e se odiavam tanto, numa letra melancólica que reflete uma dificuldade de sincronizar os sentimentos com a pessoa amada.
Bowie fica mais introspectivo, começa a ler vorazmente sobre ocultismo, a admirar a nova cena eletrônica principalmente alemã, e acaba por conhecer uma outra figura do glam rock que também tinha musicalmente se reinventado: Brian Eno.
Eno fazia parte com Brian Ferry, Phil Manzanera e outros de uma das incompreendidas bandas do glam rock no início dos setenta: Roxy Music. Nessa época Eno se vestia com roupas brilhantes, com penas, salto alto, e fazia loucuras psicodélicas no sintetizador.
Depois teve desentendimentos musicais com Brian Ferry, saiu da banda, fez outra banda breve chamada 801, porém na turnê se acidentou gravemente de carro e ficou hospitalizado mais de 6 meses . As suas buscas o levaram para uma música mais contemplativa, e era essa virada na qual Bowie estava interessado.
Com Brian Eno, Bowie irá ter o que para mim é sua época mais brilhante, a chamada trilogia Berlin: os álbuns Low, Heroes e Lodger.
Low é um álbum profundo, rico em ambientes numa contemplação e desprovido da vontade de criar hits ou impressionar multidões, completamente diferente de tudo que Bowie já tinha feito: eles dois compõem em parceria, usando e abusando de teclados e sintetizadores. E destas longas sessões de composição e edição que nascem sucessos como “Speed of life” ou “Sound and Vision” e “Warsawa“, uma peça inspirada numa música tradicional polonesa, mas também uma música melancólica onde Bowie alcança esses raros momentos de iluminação que temos na contemplação da vida, que lembra de como às vezes parece que sempre erramos do mesmo jeito, como se andássemos em círculos repetindo os erros e cujo título é quase uma crítica risonha disso: “Always crashing on the same car“.
Low foi gravado nos alpes suíços, mas em Heroes, David Bowie, Brian Eno e a banda estavam em Berlin, respirando o ar dos habitantes do muro da vergonha, sentindo a opressão da guerra fria, ouvindo os primeiros punks ainda cibernéticos ou eletrônicos, ou crus como os Pixies de Iggy Pop, que Bowie estava ajudando e produzindo, até tocando timidamente como mais um músico, deixando Iggy ser a figura do palco.
Desta época de Heroes começa a parceria com Robert Fripp e surgem além da música tema do álbum outras obras como Beauty and The Beast e Joe The Lion.
Mas deixem apresentar para vocês uma outra obra prima desconhecida, inspirada na força motriz alemã que estava reerguendo a nação, simbolizada nos seus antigos foguetes V2, e em Florian Schneider, o genial fundador do Kraftwerk e é com essa inspiração que nasce V2-Schneider.
Brian Eno tinha produzido pouco tempo atrás uma banda promissora ainda desconhecida chamada ‘Talking Heads’ onde tinha conhecido um dos jovens guitarristas que agora estava na banda de Frank Zappa, um tal de Adrian Belew.
Ainda na Alemanha, Bowie soube que Zappa estava de turnê.
Por recomendação de Eno, Iggy Pop e Bowie foram ao concerto, e num momento em que Zappa solava, Belew aproveitou para se aproximar e tietar Bowie, dizer quanto o admirava. “Ah, é?”, disse Bowie. “E você gostaria de tocar na minha banda ?”, e assim à queima-roupa Bowie roubou o guitarrista de Zappa, que tinha o espírito perfeito para o próximo álbum: “Lodger”, um álbum totalmente inspirado nos assuntos randômicos, aleatórios, que dominam nossa vida. Bowie até se negou a dar dicas sobre as músicas para assim inspirar improvisações libertárias de Belew.
Neste disco tem outra obra excelente e desconhecida chamada “Boys Keep Swinging” onde um cínico Bowie brinca com a construção de gênero social e sem sentido num mundo conservador e machista (inclusive onde no vídeo promocional Bowie se caracteriza em tres personagens mulheres). Se repararem no solo nesta música poderão ver que foi construído a partir de vários takes de improvisos separados na guitarra.
Depois desta trilogia Bowie começa a tentar a fama.
Nas gravações de ‘Heroes‘ , Bowie tinha conhecido Robert Fripp que passa a ser a guitarra líder no seu disco ‘Scary Monsters‘. Essa faixa título é uma associação entre zombies e a forte adicção às drogas, mas que foi um fracasso de público, porém pavimentando o caminho ao estrelato que depois conseguiu com “Let’s Dance“.
A música que ficou um ícone dos anos 80 e que está neste álbum é ‘Ashes to Ashes‘, e também está a famosa ‘Fashion‘, porém vamos ouvir um outra obra desconhecida que talvez descreva os relacionamentos passageiros de Bowie dessa época, se sentindo um pouco usado ou em relacionamentos pouco maduros, adolescentes, música que tem um contraponto e um solo maravilhoso de Fripp: “Teenage Wildlife“.
(Os músicos dos anos sessenta e setenta se perderam completamente nos anos 80 e muitos nos 90 também. Vamos pular… mais… mais um pouco … mais… Tá bom!)
Na metade dos noventa já tem um Bowie repaginado, antenado com novos tempos. Além de dois enigmáticos, inovadores e densos álbuns como Outside e Earthling, um Bowie assumidamente cyberpunk monta Bowienet, uma rede que foi portal, discador e provedor de internet, a última novidade de um mundo novo.
Earthling tem aquela foto icônica com fundo teletubbies com Bowie de costas vestindo uma union jack rasgada. Mais uma vez pioneiro, nesse álbum está ‘Telling Lies’ que foi lançada previamente na rede, chegando a 300 000 downloads em ’96 quando a lançou -e não se engane, são números astronômicos para a época e o primeiro single lançado na rede por um grande artista.
Mas essa velocidade toda para repentinamente em 2002 quando um malestar na turnê de Reality faz Bowie interromper turnê, aparições públicas, faz uma cirurgia cardíaca, e depois passa a viver mais recluso, a se dedicar a sua esposa Iman – Zara Abdulmajid e sua recém nascida filha Alexandria.
O hiato acabou subitamente em 2013, e Bowie estava no seu segundo álbum de músicas inéditas desde a sua volta quando a morte exigiu o seu corpo finalmente e de uma vez por todas, talvez tentando completar o que seria sua última trilogia, nunca saberemos.
Para fechar então vamos ouvir do seu penúltimo álbum The Next Day uma composição desta última fase mas pouco conhecida, com uma letra forte sugerindo um demônio ou assassino serial tirando o pior de nós nesses tempos estranhos: “If you can see me, I can see you”.
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