Ao fundo, o Cerro Colorado, desde a casa de Atahualpa Yupanqui. Na transparência, desenho de Atahualpa com a sua guitarra.

Transcrição do episódio: Aquele que veio de longe contar as coisas

 

O Tahuantinsuyo, do quechua ‘4 regiões juntas’.

Antisuyu, a região montanhosa dos Andes descendo para o leste, para a selva amazônica.

Chinchaisuyu, a região norte da costa peruana até o Equador.

Contisuyu, a região que ia desde Cuzco, a capital do Tahuantinsuyo, até o mar.

E finalmente o Collasuyu, a região do altiplano boliviano, norte do Chile e norte da Argentina.

Huayna Capac, o Sapa Inca Yupanqui, o líder de uma monarquia que se chamava assim mesma de Inca.

Os povos eram muitos. Entre eles os collas, aymaras e diaguitas no sul, quechuas do centro, e que iniciaram o Tahuantinsuyo. Chinchas y chachapoyas no norte, tucunas, jíbaros na região amazônica , e centos de outros povos. Afinal a distância do Tahuantinsuyo de norte a sul correspondia a ir de Lisboa a Kiev.

Os seus monarcas, eternos, estavam e sempre estiveram junto do seu povo, a dinastia incaica era como um continuum de ancestrais imortais, vivendo e morrendo mas permanecendo ao longo das eras. Cada novo governante era como se se sumasse a um panteão de imortais.

Quando os espanhóis chegaram à América do Sul, a inca era uma dinastia relativamente nova naquilo que foi visto como o maior império americano. O Tahuantinsuyo não era um império como os europeus, o mais aproximado a outros governos europeus seria dizer talvez que era uma monarquia de uma república federativa, um conjunto de nações com uma regência central e regiões interdependentes. Esse conjunto de nações já vivia e se desenvolvia naquela região há milênios.

Os espanhóis chegaram do norte atraídos pela riqueza desses monarcas, e travaram batalhas contra as tropas desses líderes por anos. Huayna Cápac morreu repentinamente, talvez de varíola, a grande arma bacteriológica que os espanhóis carregavam sem sabê-lo. Sem ter preparado sua sucessão, com literalmente dezenas de candidatos entre filhos e parentes dispostos a assumir o poder, e mesmo tendo deixado o seu filho Huáscar como sucessor, instalou-se uma guerra fratricida nas linhas dos governados pelo inca. Um novo governante precisava da aprovação de várias linhagens e monarcas regionais, e isso não aconteceu. O império entrou numa guerra civil, bem com os espanhóis atacando o seu flanco norte.

Atahualpa, outro dos filhos de Hauyna capac, tinha no seu poder vários exércitos e aliados em Cuzco, mesmo estando ligado à região norte, no atual Equador. Ele ia se encontrar com vários líderes para tentar sua coroação, mas Francisco Pizarro o chamou para uma conferência. Pizarro liderava uma incursão de alguns espanhóis que se atreveram a entrar nos limites do Tahuantinsuyo. Outras expedições já tinham atravessado e fundado uma cidade no Panamá, depois chegaram na Colômbia, e agora tinham chegado procurando conhecer o soberano inca e sua riqueza.

No encontro para a suposta conferência, Pizarro sequestrou Atahualpa, que ficou preso por meses. Então, poucos anos depois, Huáscar foi morto provavelmente porque Atahualpa acreditava que o seu irmão ia se aliar com os inimigos espanhóis.

Ofereceram ouro e prata para liberar Atahualpa, e quando o resgate foi entregue, mesmo assim foi acusado de heresia, traição, de ter assassinado o seu irmão e de práticas de magia (ou seja, acreditar em outra religião que não a católica).

Foi condenado à fogueira, mas depois de uma negociação desesperada, conseguiu trocar a pena. Aceitou ser batizado Francisco e morrer por estrangulamento por um motivo muito importante na sua tradição: dessa forma evitou que o seu corpo fosse consumido pelo fogo, o que acabaria definitivamente com a dinastia.

O seu corpo foi roubado (ou recuperado) antes do sepultamento, provavelmente por sua própria família, para lhe dar um destino mantendo as tradições: untar o seu corpo e prepará-lo num complexo processo de embalsamamento que iria garantir que poderia retornar e voltar a reinar o Tahuantinsuyo. Há quem acredite que ele ainda retornará um dia para governar novamente.

Também podemos dizer que a vida do camponês dos Andes pouco mudou em termos práticos quando trocou o poder na capital de uma elite incaica para uma espanhola. Isso é mais ou menos verdade, havia uma guerra civil sangrenta quando os espanhóis chegaram. Mas a elite espanhola foi particularmente perversa por literalmente centenas de anos em perseguir, matar e torturar tudo e quanto fosse povo que tivesse informações sobre a produção das riquezas de ouro e plata incaica, e transformaram as montanhas em Potosí em buracos na terra, sugando e levando tudo o que conseguiram. Geraram essa escravização nos Andes e riqueza nas metrópoles européias, que incentivou mais e mais morte e escravidão, mas enfim, dizer quem foi pior é um jogo viciado onde o mineiro boliviano perde sempre.

O Tahuantinsuyo também é um continuum de estradas de pedra ao longo do altiplano. As estradas até hoje serpenteiam as montanhas e os vales desde Quito em Equador até Tucumán no noroeste argentino. Os caminhos são um dos legados do antigo império ainda presentes, assim como as construções de pedra e os espaços para a vida cotidiana das chamadas canchas, lugares de lazer da comunidade, hoje associados aos campos de futebol.

É o caminho do índio que Héctor Chavero homenageou na sua primeira composição.

Caminito del indio

Sendero colla

Sembrao de piedras

Caminito del indio

Que junta el valle con las estrellas

trilhazinha do índio

caminho colla

cheio de pedras

trilhazinha do índio

que une o vale às estrelas

   

Desde jovem Héctor Chavero se fez chamar Atahualpa Yupanqui. Primeiro Yupanqui (do quechua “irás contar coisas”), depois Atahualpa Yupanqui (em quechua “que veio de longe contar as coisas”).

A família paterna de Atahualpa falava quechua. O seu rosto, sempre sério, tem as marcas dos vascos da familia de sua mãe, e os traços dos olhos profundos e nariz reta dos quechuas. Desde cedo ele foi familiarizado à cultura e costumes gauchos e de origem de imigrantes e povos originários já misturados. Héctor Chavero não mencionou muitas vezes a coincidência entre o significado das palavras em quechua e a relação dos nomes com os antigos monarcas. Mas a escolha de palavras para um poeta se batizar, além de sagrada, nunca é uma coincidência.

Lembra de Julius, o personagem do pai de Chris na série de Chris Rock “Tudo mundo odeia o Chris” ? O pai que tinha, 2, 3 empregos? O pai de Atahualpa era um Julius do início de século: o seu trabalho formal era de telegrafista na linha de trem. Mas como gaucho nascido no centro árido da Argentina, Santiago del Estero, era especialista em domar cavalos, converter cimarrões, cavalos selvagens, em cavalos amansados. Essa era uma de suas várias formas de ganhar o pão. Assim Atuahualpa e o seu irmão conheceram a vida do gaucho – já vivendo em Paris ele disse que sua maior saudade que sentia era do seu cavalo.

A música que todos associam com Argentina é: <tango>.

O tango é filho dos imigrantes que povoaram Buenos Aires e arredores, alimentado pela milonga, e ritmos de fora como a habanera, e outros do mediterrâneo que os imigrantes traziam.

O tango -ouça o episódio 21- O Tango de Tita- foi derivado da milonga pampeana, mais lenta.

Mas há mais do que tango na Argentina, está o folclore como chacarera ou milonga.

Essa milonga do interior vai se misturar com os ritmos de cada região e é a base fundacional da música regional argentina, tocada fora dos holofotes da cidade grande, tocada nos longos caminhos de uma cidade a outra, tocada no fogo de chão das reuniões de gauchos.

Assim o jovem Atahualpa trabalhava de tudo e andava à cavalo por todo o país, quando tinha oportunidade compondo e cantando.

Já eram os anos 30 e existiam outros autores de música regional que começavam a usar o rádio para popularizar suas músicas. A música tradicional era mais ouvida no interior, o tango na cidade grande. A música regional se destacava falando da vida no interior, apela para a simplicidade do homem do campo, ou exalta uma região, ou fala do amor romântico e pastoral.

Atuahualpa canta a música regional, mas recolhe os sons das pessoas, e também seus problemas e anseios. Faz letras sobre a desigualdade do trabalhador e do dono das terras, fazendo as letras do que seria chamado depois ‘de protesta’.

Nem o tango da cidade, nem o folclore tradicional. Atahualpa seguiu o caminho tortuoso e cheio de dificuldades de cantar o que ninguém mencionava: a paisagem que as pessoas da cidade não conhecem, as forças da natureza (assim como os seus ancestrais cantavam à lua, ao vento). Tem coragem de falar da solidão, da pobreza, das dificuldades.

A música que por muito tempo será o seu cartão de visita é El Arriero.

Arriero é como o peão boiadeiro, o gaucho que transporta os bens à cavalo, ou leva vacas ou ovelhas a pastar, alimenta, cuida -geralmente para o patrão. Na música El Arriero irá ficar imortalizada a frase que será utilizada dali em diante para demonstrar a desigualdade social do interior da Argentina:

“Las penas son de nosotros,

las vaquitas son ajenas”

“As desgraças são nossas,

as vaquinhas são de outros” 

Essa é uma das muitas músicas escritas com o seu par nas composições, Pablo del Cerro (Pablo del Cerro?).

Até a sua letra mais ateísta é na verdade uma reclamação de que a religião católica, é elitista.

<Preguntitas sobre Dios>

O protagonista da música pergunta para cada pessoa da familia, que representa cada atividade laboral. Um é um trabalhador das minas, outro das empresas madeireiras. E conclui que esse deus não está com o mais pobre. Esse mesmo distanciamento que a religião católica tem com as pessoas de baixa renda e de vida difícil é o terreno fértil onde muito tempo depois os evangélicos irão plantar suas crenças e ter o retorno tão popular que hoje eles tem.

Atahualpa já mencionou que essa música lhe rendeu a prisão.

Na família de Atuahualpa eram partidários de Irigoyen, e na ascensão de Perón, ele não se enquadra. O movimento operário industrial sempre ignorou a situação social do interior do país. Os líderes regionais se aliaram ao núcleo fascista que mantinha Perón no poder, e tudo continuou igual.

Pelas intensas leituras e pela orientação política de Atuahualpa Yupanqui, ele se aproxima do Partido Comunista, o que enfureceu o anti comunista governo de Perón.

Atuahualpa pode dar renda solta à sua pluma nas revistas coordenadas pelo partido, porém foi censurado, proibido de tocar nas rádios e de se apresentar. É nessa mesma época também que foi preso e torturado, onde chegaram a quebrar definitivamente um dos seus dedos da mão direita.

Mas Atuahualpa era ambidestro, e continuou tocando a sua guitarra.

O problema mesmo era a censura. Proibido de tocar suas músicas, o partido sugeriu tentar a sorte na Europa. Após uma conversa com o seu par musical, Pablo del Cerro, acharam melhor ele ficar com o filho deles Kollita e ele partir … ?

Pablo del Cerro… 

Antoniette Paule Pepin Fitzpatrick, chamada pela familia carinhosamente de Nennete, nasceu num dos territórios franceses de ultramar, as frias e longínquas ilhas de Saint-Pierre-et-Miquelon , um arquipélago ao sul de Terranova, a grande ilha na costa leste do Canadá. Viveu na França e depois dos seus estudos musicais, migrou para Buenos Aires onde já vivia sua irmã. Estudou em conservatórios de música na Argentina e passou a se especializar no folclore argentino, estudando e depois compondo músicas. Nessa época conheceu Atahualpa Yupanqui, que estava separado da sua primeira mulher -ainda não existia o divórcio legal. Passaram a viver e trabalhar juntos, realizando em conjunto várias das famosas composições de Atuahualpa, como “Luna tucumana”.

Mas a Argentina dos anos 40 não iria aceitar uma compositora, mulher, e ainda estrangeira, fazendo folclore. Então de comum acordo Atahualpa Yupanqui assinava suas obras em conjunto com Pablo del Cerro. Pablo por Paul que é era o segundo nome de Nenette, del Cerro porque moravam no Cerro Colorado, na província de Córdoba, onde nasceu o filho deles, Roberto Kolla Chavero, apelidado de Kollita.

O problema mesmo era a censura. Proibido de tocar suas músicas, o partido sugeriu tentar a sorte na Europa. Após uma conversa com Nenette, acharam melhor ela ficar com o filho deles Kollita e ele partir e tentar a sorte no Velho Mundo. O partido mandou ele deambular nos países soviéticos, mas acabou em Paris com os poetas. Alugava um quarto num hotel piolhento até ter a felicidade de ser ouvido pela Edith Piaf.

Edith Piaf tinha passado péssimas noites na pobreza até ser reconhecida e sabia como era difícil começar. Quando viu que Atahualpa nem trabalho tinha e seria forçado a voltar a sua terra de mãos abanando, onde era proibido de cantar, abriu as portas da Paris intelectual com uma apresentação onde deixou o próprio Atahualpa cantar e fazer o encerramento do seu show.

“São aquelas dívidas que jamais poderemos pagar” comentou muito tempo depois sobre o que Edith Piaf representou para ele. Porque após ser ouvido e ganhar um prêmio de música estrangeira, conseguiu gravar e se apresentar não só em Paris quanto em outros lugares primeiro da França, depois Alemanha e Espanha e sempre passou a se apresentar cada vez mais no mundo todo (inclusive nessa época que se apresenta no Japão).

Logo mais começaram as tensões com o partido comunista: a estrutura era mais rígida do que ele pensava, e Atuahualpa pensava que não os ajudavam. O partido esperava que ele se conectasse com o operário, industrial, da cidade. Ele se conectava com o homem do campo, uma realidade que o partido pouco conhecia.

Tendo renunciado à filiação, e com o reconhecimento internacional, conseguiu voltar a ser ouvido nas rádios, se apresentar e gravar álbuns.

Entre os 50 e os 60, já com vários álbuns gravados decide completar o seu maior projeto: uma série de payadas muito ao estilo gauchesco clássico, mas cantando sua biografia, a partir do seu olhar de gaucho e de autor proibido no governo fascista de Perón: “El payador perseguido”.

(Sobre payadas ouça o episódio 23 sobre o Martín Fierro).

Ele usa as mesmas sextinas imortalizadas pelo Martín Fierro:

El trabajo es cosa buena

Es lo mejor de la vida

Pero la vida es perdida

Trabajando, en campo ajeno

Unos trabajan de trueno

Y es para otros la llovida

O trabalho é coisa boa,

é o melhor da vida,

mas a vida é perdida

trabalhando no campo dos outros

uns trabalham de trovão

mas chove na horta de outros.

   

Tal vez otro habrá roda’o

Tanto como he roda’o yo

Y le juro, creameló

Que he visto tanta pobreza

Que yo pensé con tristeza

Dios por aquí no pasó

Talvez outro tenha andado

tanto quanto andei eu

e juro, pode crer

que vi tanta pobreza

que pensei com tristeza

por aqui não passou Deus.

   

Também nessa época outros intérpretes passam a cantar as músicas de quem passou a ser chamado carinhosamente Don Ata. Os principais nomes da nova onda de folclore de protesto como Jorge Cafrune, Mercedes Sosa até revelações da época como a venezuelana Soledad Bravo e Violeta Parra. É a época de ouro da Nueva Canción Latinoamericana, onde os intérpretes voltam a falar ‘do índio’, de que no interior há pobreza e desigualdade, Buenos Aires praticamente descobre que é a capital de um país imenso e rico culturalmente.

É dessa época também um dos hinos mais famosos no cone sul (e que a letra é de um poeta uruguaio, Romildo Risso) “Os eixos de minha carreta”, que resume muito bem todas essas ideias.

O som das rodas nos eixos são o único divertimento na vida monótona do condutor da carreta.

E demasiado aburrido
Seguir y seguir la huella
Demasiado largo el camino
Sin nada que me entretenga
 

é chato demais

seguir e seguir a pegada

longo demais o caminho

sem nada para me entreter

No necesito silencio
Yo no tengo en qué pensar
Tenía, pero hace tiempo
Ahora ya no pienso mas

 

Los ejes de mi carreta
Nunca los voy a engrasar

 Não preciso de silêncio,

não tenho no que pensar

Tinha, mas tempo atrás

agora não penso mais.

Os eixos de minha carreta

nunca vou engraxar.

 

Atahualpa morreu trabalhando, passou mal indo fazer um show quando vivia em Paris. Estava com mais de 80 anos. Não vivia no exilio, mas na terra que o acolheu quando foi esquecido pela sua pátria. Vivia na mesma terra da mulher com quem casou e viveu compondo suas músicas por quase 50 anos e que tinha falecido 2 anos antes.

Só teve o reconhecimento de sua terra após pessoas de terras distantes lhe rendirem homenagem, e mesmo que às vezes tenha voltado a sua terra natal, faleceu como um feliz homem do mundo, junto do seu poncho e sua guitarra.

 


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