Começava agitada a segunda metade do século XX. Época de guerra fria, o mundo dividido em dois: de um lado o bloco influenciado pelos Estados Unidos e do outro lado pela Rússia soviética (URSS). Europa estava se reerguendo, Gringolândia eufórica, latinoaméricas crescendo num momento econômico favorável mesmo que governadas por caudilhos nacionalistas. Ainda era o tempo do rádio e a TV era para poucos. Carro era para poucos.
Porém a comunicação conectava a sociedade do mundo todo, mesmo dividida na guerra fria, começava a se conhecer.
A música conectava essas culturas, assim como o rádio, e também as revistas e uma invenção de início de século e que agora era muito popular: as histórias em quadrinhos.
Mas Oesterheld estava cansado de estórias de heróis americanos.
Héctor Germán Oesterheld, geólogo de formação, tinha começado escrevendo estórias para crianças e agora já era um famoso roteirista de quadrinhos. Tinha escrito Ernie Pike, um correspondente de guerra, onde o famoso desenhista ítalo argentino Hugo Pratt usou o rosto de Oesterheld para desenhar o protagonista, um rosto que parecia talhado no aço. Também tinha escrito Sargento Kirk, ambientado no faroeste americano mas que originalmente seria um gaúcho da fronteira, idéia vetada pelos editores por considerar mais charmoso usar nomes gringos, talvez para homogeneizar as estórias das revistas. Eles compravam estórias de fora e de roteiristas locais, e as estórias eram similares se citavam os mesmos interesses que os americanos gostavam de ler: segunda guerra, cowboys, gangsters contra super-heróis.
Então em 4 de setembro de 1957 a revista de quadrinhos adultos Hora Cero apresenta a primeira edição do Eternauta, escrita por Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López. Hora Cero é revista da sua própria editora La Frontera, controlada pelos irmãos Jorge e Héctor Oesterheld.
Oesterheld já nessa época estava casado com Elsa Sánchez e tinha 4 filhas: Estela, Diana, Beatriz e Marina. Moravam num bairro nobre no grande Buenos Aires, onde recebiam desenhistas e onde planejava suas estórias.
Francisco Solano López era homónimo e parente do presidente paraguaio que invadiu Argentina para defender uma frente uruguaia, fato que foi considerado um ato de guerra e desencadeou a Guerra da Tríplice Aliança onde Argentina, Uruguai e Brasil dizimaram o Paraguai. Solano López tinha um traço forte, realista, e já tinha feito outras estórias com Oesterheld como Bull Rocket, um sucesso da revista Misterix.
Mas chega de introdução e vamos à estoria do Eternauta.
- O plot
“Estou na Terra, suponho”
A estória começa com o escritor, Germán, olhando as estrelas, sentado no seu estúdio, quando um homem se materializa na cadeira na sua frente. “Estou na Terra, suponho” diz a figura. Será o protagonista que irá narrar a estória para explicar o que aconteceu.
Ele é Juan Salvo, El Eternauta, viajante do tempo. Juan começa a contar o que irá acontecer daqui a alguns anos.
A estória de Juan Salvo começa numa casa típica dos anos 50 na grande Buenos Aires quando ouvem algumas informações do que parece uma experiência atômica no Pacífico -coisa da época, afinal, a estória é escrita em plena guerra fria.
Sua mulher Elena e sua filha Martita estão dormindo nos quartos; Juan Salvo está com seus amigos Favalli, Polsky e Lucas, jogando truco. Um típico fim de noite nos arredores da cidade.
Mas a vida deles está para mudar completamente: ‘ouvem’ um silêncio total na rua, há um apagão e olhando pela janela vêem uma neve mortal, flocos de uma neve florescente que toca as pessoas e as mata em segundos. Eles testemunham a morte do vizinho da casa da frente ao abrir a janela e sua esposa morrer junto quando vai ver o que ocorreu. É o primeiro indício do que percebem depois ser uma invasão extraterrestre de níveis globais.
O primeiro inimigo é o medo: num momento de loucura, Polsky sai correndo aflito pela sua família, e morre na frente da casa. Os personagens irão ver o seu cadáver muito tempo, como um aviso permanente da presença de invasores e do perigo mortal que estão correndo.
Favalli, que tem conhecimento de engenharia e é o cérebro da equipe entende o que aconteceu e rapidamente projetam um traje para sair na neve mortal e conseguir alimento e se situar do que está ocorrendo. Improvisam um traje com luvas, restos de equipamento de mergulho e restos de látex, construindo o que será a mítica imagem do eternauta andando pelas ruas da cidade.
“Chegou o momento. Duvidei. A porta, ainda que não muito grande, me separava da morte que reinava lá fora. Abri-la era se jogar no meio da nevada mortal.
Mas tinha que sair. Tinha que abandonar a casa, aquela ilha de vida perdida no oceano de morte. Assim como Robinson Crusoé para chegar no barco encalhado teve que se lançar ao mar, … abri a porta.”
Depois o perigo serão os sobreviventes: Lucas é morto por alguém desesperado pelo seu traje. A lei da selva se instala num thriller que depois iremos ver em toda estória de zumbis.
Favalli e Juan se convencem de que não podem ficar na casa e se organizam para pegar alimentos e fugir para algum lugar mais afastado.
Logo Favalli, Juan e depois outros sobreviventes organizados pela polícia e exército começam a percorrer o que sobrou da cidade, citando lugares famosos como a General Paz, uma famosa estrada que liga o subúrbio à cidade, o estádio do River Plate…
“Enorme, impressionante, erguia-se ante nós a complicada estrutura de cimento. Os pilares, não sei por que, me pareceram as estranhas patas de um monstro colossal, um monstro que esperava nos ter a distância para atirar.”
Os próximos inimigos serão cada vez mais sofisticados: primeiro encontram seres parecidos a enormes besouros do tamanho de um ser humano, que chamam de ‘cascudos’, que podem ser mortos facilmente. Porém depois de analisar eles, percebem que seus animais inimigos são um exército dirigido por outra raça através de dispositivos atrás da cabeça.
Quanto mais avançam, pior ficam os inimigos: máquinas que lançam raios, ou que produzem visões fantasmagóricas, seres enormes como elefantes que chamam de ‘gurbos‘ também dirigidos pelos inimigos, que não se mostram.
A estória do Eternauta aparecia em pequenas entregas de 3 páginas por edição, e a sua primeira parte tem quase 200 páginas. Sua riqueza e complexidade deixava os leitores pendentes a cada entrega e ao longo dos próximos anos seria a estória mais lida e esperada na cidade.
Na famosa ‘batalha de River Plate’ quando estão vencendo ‘cascudos’ são surpreendidos por homens-robô, pessoas que foram capturadas e que tem um dispositivo na nuca, assim como os ‘cascudos’, convertidos em soldados comandados à distância. Mas por quem?
Depois de vencidos os homens-robô, o que abala muito a luta, o inimigo oculto ilude a resistência com visões que confundem a tropa e os fazem lutar entre si, até Juan Salvo encontrar e destruir o dispositivo que lançava as visões.
Após muitas batalhas, acabam por encontrar quem acham ser o inimigo : um ser humanóide de cabelos loiros e pontudos, de orelhas longas e olhar sério, com dezenas de dedos em cada mão e que dirigem os exércitos através de painéis clicáveis, alavancas e botões, seres que eles passam a chamar de ‘Os mãos”.
Após várias lutas conseguem capturar um ‘mão’ e outra surpresa acontece: os mãos não são os invasores, são um povo escravizado que quando sente medo, uma glândula inserida artificialmente solta um veneno que o mata em poucos minutos. Os invasores são ‘Eles’. O ‘mão’ já vencido canta uma canção triste sobre seu planeta. Os malvados também tem um lado poético, e essa riqueza é que completa a estória, assim como as observações dos seus heróis ao longo das descobertas de como tentar vencer o inimigo.
Não há no Eternauta nenhum desenho claro de como seriam ‘Eles’, os verdadeiros invasores. Na única ocasião na qual Juan quase captura um, ele parece uma sombra e consegue escapar, como se pudesse adotar qualquer forma, como uma nuvem compacta e que se esvai quando corre perigo.
A primeira parte do Eternauta termina com Juan Salvo acidentalmente acionando um dispositivo que o transporta para um local além do espaço-tempo, e de lá termina sua narração, volta para sua casa e aparentemente esquece toda a estória, sendo Germán quem precisará escrever tudo para tentar que acreditem nele.
(Fim do plot – Eternauta 1)
Oesterheld queria uma estória que tivesse ciência-ficção com pessoas normais. No princípio sua inspiração foi Robinson Crusoé, onde a ilha é sua casa, no meio de uma cidade sem vida. Porém El Eternauta é uma saga de sobrevivência coletiva diante de uma catástrofe global.
Lembrando que foi escrito antes dos anos 60 a estória tem várias inovações que conquistaram e ainda conquistam os leitores:
- é totalmente ambientado em Buenos Aires, seus personagens caminham por lugares conhecidos, próximos do leitor que assim se envolve no enredo
- os heróis são pessoas comuns: Favalli, de ascendência italiana, Polsky, do Leste Europeu, Elena e Martita, a família típica.
- Os antagonistas são sofisticados, completos, tem problemas, são quase ‘humanizados’ mesmo sendo alienígenas. Alguns são meros animais escravizados, outros têm personalidades complexas com os Manos.
- todos esses elementos comuns da ciência-ficção numa estória acontecendo próxima ao cotidiano do leitor conquistou gerações e permitiu a Oesterheld criar personagens complexos
- havia também em Oesterheld a confiança de estar fazendo história numa mídia reconhecida como underground, escura, não literatura. E revolucionou o que hoje chamamos de graphic novel para dar um nome bonito e complexo para uma nova forma de literatura que estava se formando ainda.
No Eternauta, Oesterheld mostra que o herói é o coletivo, os sobreviventes que se organizam. A ciência-ficção está nas soluções que eles geram para sobreviver, e nas invenções dos invasores. A sua assinatura, os personagens comuns, reais, locais, não idealizados de heróis americanos. Os locais próximos como a toma do estádio River Plate, os soldados andando pela Avenida Las Heras até Plaza Italia geram uma proximidade no leitor, que se identifica com os personagens por serem próximos, com o ambiente, e com a invasão.
Mesmo com a popularidade da revista, não pagava as contas e os Oesterheld fecham La Frontera, Hora Cero se reduz e Oesterheld procura trabalho em outras revistas. As suas filhas saíram de colégios privados para escolas públicas, e os tempos com uma nova ditadura e uma mudança na visão da realidade pelas filhas e pelo Héctor acabam por politizar ainda mais suas estórias.
Argentina vivia nessa época os tempos tumultuados pós peronismo de ditaduras e opressões. O peronismo estava proibido, e agremiações e organizações sociais passam a pressionar para trazer Perón do exílio. Entre essas organizações uma defende a tomada de poder e a volta de Perón: Montoneros.
Os Montoneros ganham destaque nacional quando sequestram o general Eugenio Aramburu, principal líder militar envolvido na derrocada de Perón em 1955 (ou seja, um velho inimigo). Aramburu é julgado e executado pelos Montoneros e nesse ato começa uma guerra envolvendo peronistas de direita, peronistas de esquerda e grupos armados como a Triple A (Alianza Anticomunista Argentina) que querem eliminar os ‘subversivos’, ou seja qualquer indivíduo que se identifique com as mesmas idéias socialistas destas organizações de extrema esquerda.
As filhas de Oesterheld se integram aos Montoneros e o pai passa a apoiar também essa causa. O humanista Oesterheld, cansado de ver os tanques impedindo as democracias, apóia os jovens que pegam em armas para derrubar o governo.
Oesterheld não pegou em armas, ou pegou se pensar que suas armas eram as palavras: fica responsável pela coordenação da divulgação do movimento, publicando pasquins da organização para disseminar suas idéias. Sai da casa então para um local desconhecido.
Perón, que no exílio exalta os ‘jovens valentes’ das organizações que realizam atentados e manifestações para a sua volta, quando já está no poder se desentende e força sua ilegalidade, chamando eles agora de ‘alguns imberbes’ que estariam atrapalhando a manutenção da ordem, e os expulsa dos movimentos sociais. Isso cria um racha no peronismo, e com isso mais atentados, mais confusão, e Montoneros acaba por se isolar e entrar lentamente na clandestinidade.
Pouco tempo depois Perón morre , assume a vice presidente, sua última esposa Isabelita, que não consegue manter o governo coeso, os atentados de um e outro lado continuam e a crise do governo, pela sua própria inépcia, desencadeia o desejo da população de uma ‘volta à ordem’.
Montoneros assim se transforma na desculpa perfeita para a nova ditadura argentina, chamada de “Proceso de Reorganización Nacional”, aplaudida pela população cansada de bombas e lutas urbanas, porém apoiando com isso a mais sangrenta ditadura que a Argentina já sofreu (e olha que em matéria de ditaduras sangrentas Argentina goza de exemplos com requintes de crueldade).
Oesterheld, na clandestinidade, contrata Alberto e Henrique Breccia (pai e filho) para uma obra sobre o Che Guevara, morto recentemente. A obra será proibida e retirada de circulação e Oesterheld perseguido.
Mas enquanto isso ele deixa secretamente em locais combinados os roteiros para uma nova série do Eternauta. Roteirista e desenhista não podiam se falar embora os roteiros chegassem pontualmente para serem desenhados. E assim nasce
- El Eternauta parte 2
A segunda parte começa no final da primeira, Germán insistindo que conhece Juan Salvo e Juan que não lembra de nada mas abriga Germán. Porém todo o cenário desaparece e a casa de Juan Salvo é transportada para 200 anos no futuro.
No futuro não existe Buenos, Aires, só planícies quase desérticas, barrancos onde alguns homens sobrevivem como homens das cavernas, animais e plantas sofreram mutações, há homens-robô e sub-humanos que caçam homens a serviço de “mãos” que mantém seu domínio numa fortaleza.
Juan Salvo tem agora poderes telepáticos, força sobre humana e nenhum remorso. Em várias operações sacrifica linhas de combatentes (e até a sua família) para conseguir o objetivo final de derrotar o ‘Ele’ que queria fugir do planeta não sem antes destruir as forças dos sobreviventes sacrificando 500 homens como combustível para a nave.
Logo começam as dissidências com Solano López que vê o lado político influenciar a obra e quase interrompe o trabalho algumas vezes.
A qualidade do desenho, agora colorido, é muito superior embora a trama da primeira parte seja mais cativante. Oesterheld tenta nos surpreender a cada página, mas aos poucos a estória é a luta de um líder quase sobre humano contra a opressão dos ‘Eles’, que também não aparecem embora Juan Salvo lute contra um deles envolto numa nuvem, que seria o seu traje espacial.
Na estória há uma menina jovem, Maria, que o Germán idealiza fantasiando poder no futuro viver com ela. Há quem veja nela uma personificação de suas filhas, envolvidas numa guerra e embora sejam meigas e doces, tomam posição na luta.
O povo das cavernas luta para manter sua humanidade diante de um inimigo muito mais perigoso e que os esmaga como a formigas. Não podemos negar nos identificar com essa ficção com um pé na realidade.
Realidade esmagadora : pouco antes de ser publicado El Eternauta parte 2, a filha menor, Beatriz, é morta numa operação pelos operativos que perseguem os Montoneros. É a única filha que Elsa, a mãe, consegue sepultar.
Oesterheld é capturado e fica detido em Campo de Mayo e levado a vários outros locais.
Diana, com um filho de 2 anos e grávida de outro, é sequestrada aparentemente numa emboscada em Tucumán, interior da Argentina. Seu corpo jamais foi encontrado. Passam a engrossar a longa lista de números na macabra estatística de ‘desaparecidos’ que contam com aproximadamente 30 mil pessoas cujo destino desconhecemos e cujos corpos viraram pó, como eliminados pelo raios dos ‘Mãos’ contra o povo das cavernas. Aparentemente Diana só ficou viva até dar à luz.
Marina é sequestrada, também grávida, aparentemente torturada e morta após dar à luz seu filho, de paradeiro desconhecido.
Estela é morta aparentemente também grávida, e cai junto com o seu companheiro. Seu filho de três anos é recuperado anos depois pela sua avó, Elsa. É possível que tenham levado o neto de Héctor Oesterheld até seu cativeiro para mostrar o destino que suas filhas levaram, ou quem sabe com remorso para mostrar o neto que jamais iria ver crescer.
Oesterheld finalmente desaparece ao redor de 1977 provavelmente em Mercedes. O corpo jamais foi encontrado.
Todas suas filhas mortas, três delas grávidas. Após o massacre desta família, sobreviveram somente a avó e dois netos. Os outros dois filhos que aparentemente nasceram em cativeiro de suas mães, o paradeiro é desconhecido.
Elsa foi uma das Abuelas de Plaza de Mayo, familiares que pacifica mas enérgicamente pediam respostas para saber onde estavam seus familiares, sequestrados, humilhados, mortos e ajudaram a recuperar e manter a memória desta guerra injusta e sangrenta.
Além destas sequências houve uma terceira parte do Eternauta, porém não foi nem roteirizada nem desenhada pelos autores principais e por isso não acho que valha a pena comentar aqui.
Houve também uma deplorável tentativa de associar a imagem do Eternauta com o já falecido Néstor Kirchner, aparecendo em lambe-lambe e graffitis da cidade na época da Cristina presidente a figura do Kirchner no famoso traje do Eternauta.
Também houve a tentativa de realizar um filme nessa mesma época, mas os idealizadores abandonaram o projeto quando viram a tentativa do uso da imagem do personagem pelo governo.
A óbvia correlação da invasão alienígena com o imperialismo é fruto tanto das idéias recorrentes na ciência-ficção e das distopias de totalitarismos como das ideologias de esquerda e Oesterheld fez brilhantemente uma obra de ciência-ficção baseada diretamente na sua vida conturbada de um país conturbado numa época de confronto direto, fez uma obra a partir de sua leitura filosófica contada através da ciência-ficção.
Oesterheld mudou para sempre as estórias em quadrinhos. Combateu com a palavra as forças que se opunham a sua orientação política, mas essa oposição era o inimigo do estado e sofreu por isso, assim como suas filhas. El Eternauta é sua obra principal, hoje um clássico mundial do comic e uma referência de sua época e do graphic novel.
Descanse em paz viejo Héctor, a sua luta não foi em vão.