Era uma vez um grupo de colonos. Tinham passado dificuldades, mas depois de sacrificar frutos do mar num fogo sagrado, aparentemente tudo ia correr bem.
Eles vinham cantarolando como se estivessem bem, embora as notícias fossem péssimas. Os colonos estavam famintos, mas aquele baixinho de óculos e cara de sabichão tinha dito que logo iam chegar investidores das fontes aquíferas e iriam trazer trilhões de galões de água.
E chegaram a um obstáculo.
Uma depressão grande para poder atravessar.
O general Asterra Omar, especialista em obstáculos, tranquilizou o comando. Era um buraco profundo, todos iam ter que atravessá-lo e se encher de lama. Alguns até poderiam morrer na lama, sim, mas depois da lama haveria o outro lado e eles iam conseguir chegar lá. Era fácil. Todos os gráficos estavam do seu lado.
Não podiam dizer a todos que alguns iam morrer e o resto passaria por cima dos cadáveres porque era uma propaganda ruim, mas nos bastidores foi decidido que retroceder, jamais.
Então a ordem foi avançar.
Alguns que chegaram perto e que tinham estudo de terreno falaram “não é um buraco e não tem lama, é um abismo e o outro lado está muito distante, se tentar pular ou atravessar assim vamos morrer”.
Mas não foram ouvidos, o comando era atravessar, não ser maricas, parar de mimimi, e ter coragem para se sacrificar por todos, afinal, se alguns atravessassem primeiro, os outros poderiam ficar acima deles.
Soldados e colonos foram atravessando, gritando e desaparecendo.
Outros grupos de colonos mais longe começaram a construir pontes, mas este grupo não, tinha certeza de poder atravessar mesmo ouvindo cada vez mais gritos, o desespero, e depois o silêncio de quem tentava atravessar.
Os corpos iam caindo sem fim.
As centenas viraram milhares, e os milhares viraram centenas de milhares. Quantos mais caíam no abismo, mais ficava evidente: era um abismo.
Nem mesmo a macabra ideia de atravessar pelos corpos ia funcionar. Mas aparentemente a alta cúpula de colonos cultivava uma predileção por rituais macabros. Mortes eram considerados sacrifícios por um bem maior, a colônia, e a eliminação de milhares era comparado ao ceifar do campo para depois florescer uma nova safra. Eram idéias impopulares que não saíam da cúpula porque seriam mal interpretadas fora dela. Por isso eles insistiram nessa ideia suicida aparentemente.
Como será que esta fábula irá terminar ? A alta cúpula de senhores que secretamente cultuam a morte conseguirão atravessar o obstáculo ? Será que os poucos dissidentes conseguirão impedir que o abismo se encha de corpos inocentes ? Quantos terão que morrer para perceberem todos que o abismo não poderá ser atravessado simplesmente jogando inocentes ao vazio ?
E enquanto isso, um membro afastado da cúpula, a esperança da ciência e da inovação, sonha um sonho …
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