Transcrição do episódio #12: Ushuaia feita de sangue

Tem poucos exemplos de canídeos na América do Sul. Tem um cachorro peruano, o viringo, e tem o lobo guará que foram quase extintos.

Um provável parente do lobo guará foi o ‘perro yaguán‘, mais emparentado com raposas do que com lobos, e que foi parcialmente domesticado no sul do continente por povos fueguinos.

São chamados povos fueguinos porque eram povos que viviam no final do continente, na chamada Tierra del Fuego, terra do fogo. Os primeiros navegantes portugueses e espanhóis que atravessaram o estreito indo para o outro oceano viam desde seus navios linhas de fogos no continente e nas ilhas do sul. Os fueguinos usavam fogueiras para se comunicar. “Venham, achei uma baleia encalhada” ou “cuidado, tem uma canoa gigante passando”.

Mapa do sul do continente incluindo Patagonia, Ilhas Malvinas e Tierra del Fuego

Isla Grande de Tierra del Fuego é o nome da maior ilha de um conjunto de ilhas, o arquipélago de Tierra del Fuego, que forma o sul continente, com ilhas e canais que conectam os oceanos. A Isla Grande tem pouco mais de 47 mil km2, duas vezes o tamanho de Fernando de Noronha (que também é um arquipélago). A região toda hoje na verdade é o único lugar que conecta 3 océanos: Pacífico, Atlántico e Ártico. Também é o único lugar do continente onde a cordilheira dos Andes não está de norte a sul e sim de leste a oeste.

Mapa de Tierra del Fuego

Essa passagem onde os fueguinos moravam era estrategicamente importante para os europeus porque era a passagem sul do Atlântico para o Pacífico. Mas também muito perigosa. É um encontro de ventos e correntes que se cruzam, embatem, entrelaçam e que mandaram muitos navios para o fundo do mar.

A primeira expedição que conseguiu dar a volta ao mundo lá por 1520, liderada por Fernão de Magalhães, deu nome ao passo que ele conseguiu para atravessar do Atlântico ao Pacífico, o estreito de Magalhães, entre o fim do continente e a ilha de Tierra del Fuego. Essa região é um arquipélago com ilhas, canais e entradas que às vezes não davam calado aos navios, e outras vezes não davam para lugar nenhum. Mas Magalhães dirigia uma expedição de vários navios, que na tentativa e erro acabaram por achar o que saberiam depois ser a saída para o outro oceano.

Não chegaram a descrever os seus habitantes mas havia várias etnias diferentes nessa região.

Kawésqar, yámanes, selknam, haush e tehuelches habitavam a região do sul do continente há milênios. Kawésqar e yámanes eram nômades que percorriam o atual sul do Chile, e navegavam em canoas, cada família numa delas. Caçavam, pescavam, dormiam nelas, ou em alguma ilha quando o tempo estava ruim. Desenvolveram uma técnica para fazer fogo dentro da canoa sem queimá-la e a deambular por dias procurando comida desde a canoa. Os selknam e haush (que provavelmente estavam emparentados com tehuelches da Patagonia argentina) também eram navegantes, mas preferiam ficar na ilha de Tierra del Fuego. Tanto yámanas quanto selknam domesticaram o perro yaguán, que os ajudava a caçar guanacos (um outro camélido como a lhama mas que habita essa região do sul do continente). Todos dormiam juntos nas suas pequenas ‘chozas’, refúgios de folhas, árvores e peles de nutria ou lobo marinho.

Selknam

Os selknam foram chamados onas provavelmente pelos primeiros ingleses que passaram por lá alguns séculos depois quando muitos navios ingleses e holandeses atravessavam pelo estreito de Magalhães e pelo Cabo de Hornos, e naufragaram bastante também. Um navio famoso que fez várias expedições foi o HMS Beagle e numa dessas viagens encontrou o canal hoje chamado de canal de Beagle, pela costa sul da ilha de Tierra del Fuego, um passo de melhor navegação para o Pacífico. Provavelmente indicado pelos selknam, onas.

Selknam na sua choza

Os ingleses ficaram impressionados pelo estado de barbárie dos onas, em geral nus ou com algumas peles de nutria como roupa, sem religião nem deuses, lutando todo dia pela sobrevivência do próximo. Desconheciam os espelhos e não usavam anzóis mas sim conheciam pirita de ferro para acender as fogueiras até dentro da canoa que era praticamente uma casa nessa vida nômade.

Os kawésqar, yámanas, selknam, tinham alguma adaptação que os permitia manter uma maior temperatura corporal para poder resistir a baixas temperaturas, e também andavam nus porque passavam óleo de nutria que os mantinha aquecidos mas sem deixá-los úmidos. Se há algo constante no fim do continente é que é frio e constantemente úmido.

Depois de reconhecido o terreno muitos navios passaram a percorrer a área para encontrar novas passagens para o Pacífico, e para caçar baleias e lobos marinhos. Com a diminuição drástica da principal fonte de proteína, e com os europeus indo e vindo na região, vieram a fome e as doenças, e as povoações foram diminuindo de tamanho. Além disso as tentativas de cristianizá-los e a conseqüente adoção de vestimentas européias, totalmente desaconselhadas para o lugar, fizeram com que chegassem novas doenças que aproveitaram a umidade da roupa para virar endêmicas. Poucas roupas úmidas eram piores do que andar nus, ’em pecado’.

Beagle

Na primeira viagem do HMS Beagle, já em 1830, houve uma circunstância bizarra em Tierra del Fuego: alguns homens, talvez yámanas, tomaram um dos botes do navio. Em represália e para forçarem a que devolvessem o bote, o comandante Robert Fitzroy sequestrou alguns jovens e crianças kawésqar e yámanas e manteve uma negociação até ter o bote de volta. Mesmo depois de devolver o bote, Fitzroy continuou com alguns jovens reféns, e levou 4 deles para Inglaterra: um menino de aproximadamente vinte anos cujo nome desconhecemos mas que foi batizado como Boat Memory, Orundellico de aproximadamente 15 anos, batizado Jemmy Button, um jovem de aproximadamente 20 anos, Elleparu batizado York Minster, todos eles yámanas, e uma jovem kawésqar de uns 10 anos, Yokcushlu, batizada como Fuegia Basket. Todos chegaram vivos no porto inglês de Plymouth porém Boat Memory morreu de varíola.

Os nomes cristãos se supõe que estão associados a estórias sobre seu batismo, e Jemmy Button, segundo Fitzroy, teria sido comprado em troca de uma moeda de quarto de libra, mas seria bem estranho que uma família trocasse seu filho por algo, e bem mais estranho por algo sem valor algum para um fueguino. Esses detalhes escapam ao leitor europeu que associa barbárie a qualquer tipo bizarro de troca e a um valor muito baixo da vida humana. É possível também explicar esse mesmo fato imaginando o poder de intimidação de um navio como o Beagle e a determinação do seu comandante que mesmo jovem era famoso pelo seu senso de autoridade.

Fitzroy também era muito religioso e decidiu educar os jovens, num sentimento cristão de lhes oferecer a civilização e a única religião verdadeira. Deveria ficar sinceramente angustiado e preocupado vendo as condições precárias em que imaginou que viviam e quis lhes dar a oportunidade de uma melhor condição de vida, que para ele era o mundo civilizado da Europa cristã.

Ele tinha contato com a Church Missionary Society, uma associação anglicana empenhada em levar o evangelho para povos não cristãos. O reverendo William Wilson ficou entusiasmado com a oportunidade e acomodou os jovens nos aposentos do professor da escola primária. Ele e sua mulher ficaram felizes que os fueguinos “eram gente tranquila y limpa, e não ferozes e sujos selvagens“.

Os jovens fueguinos foram para a escola inglesa. Ensinaram a eles o idioma inglês, as maneiras inglesas, a cultura inglesa. E a Bíblia, claro. Ensinaram a civilização e conheceram pessoas ilustres do outro lado do oceano, inclusive o rei Guilherme IV. Fuegia era bastante reservada mas mesmo assim foi quem melhor aprendeu o inglês. Contava pouco ou nada sobre seus familiares. Eles se limitavam a dizer que era o melhor lugar do mundo, ou a terra das melhores árvores.

Tempo depois Fitzroy começou os preparativos para uma segunda expedição, onde estaria também Charles Darwin, na época um jovem naturalista sem nenhum renome.  O reverendo William Wilson ficou interessado em que os jovens fueguinos, caso fossem retornar, o fizessem num assentamento que depois pudesse ser uma base evangelizadora.

“Começamos a recrutar cavalheiros que desejem fervorosamente que não seja perdida esta oportunidade de estender os benefícios da civilização”.

Fitzroy embarcou os jovens fueguinos na próxima expedição certo de que algum deles seria útil como intérprete na região, além da esperança de fundar um novo assentamento de plácidos cristãos fueguinos. Darwin descreveu eles de forma ambígua, ora elogia sua sensibilidade ora os compara ao tratamento entre cavalos não domesticados frente a um parente domado. O jovem Darwin carregava ainda alguns preconceitos comuns da época. Num momento se horrorizava com a escravidão e em outro comentava que escravos numa fazenda deveriam ter ‘uma vida feliz e contente’.

Em algum momento da viagem de volta, os jovens fueguinos, sempre abordados com perguntas, deram a entender que teriam hábitos canibais em circunstâncias de extrema fome. Matavam e comiam as mulheres mais velhas porque não tinham serventia. Segundo os jovens seriam mais inúteis do que os cachorros, que eram úteis para procurar nutrias.

Na parada no Rio de Janeiro ficaram alojados na casa onde Fuegia ensinou inglês para as crianças que lhe ensinaram algo de português.

Jemmy Button tinha 14 ou 15 anos quando sequestrado. Se mostrava alegre, e preocupado se alguém estava indisposto na viagem, inclusive consolando o jovem Darwin quando passava mal, embora achasse estranho alguém passar mal no mar.

Assim que chegaram nas imediações de Tierra del Fuego numa região chamada por eles de Wulaia na costa oeste da ilha Navarino, encontraram habitantes conhecidos de Jemmy Button e sua família foi localizada. Foram deixados lá com uma pequena horta, inclusive com o novo casal Yokcushlu e Elleparu. Jemmy soube que o seu pai estava morto, e sua mãe que um ano atrás se desgarrava pelo filho, demorou a se acostumar com sua volta. Provavelmente não parecia o mesmo. O seu irmão Tommy era conselheiro e xamã do grupo. Então Fitzroy e os seus se foram. Fuegia voltou a ser Yokcushlu, casou com Elleparu e ficou com ele até ser morto anos depois por ter matado um homem.

O Beagle foi para as Ilhas Malvinas que meses atrás acabavam de serem ocupadas definitivamente pelo império britânico. Lá Charles Darwin descreveu outro cachorro emparentado com o perro yaguán e o lobo guará, a raposa malvinense.

Tempo depois Fitroy voltou para Wulaia e viu que Jemmy tinha perdido tudo. Sua horta estava destruída, suas residência isolada e ele estava novamente sem ninguém. Aparentemente os selknam entendiam que a terra era deles e foi despojado de tudo. Depois de uma noite no navio e de Fitzroy prover roupa e até dinheiro, se despediram.

Ingleses e fueguinos compreenderam algo da cultura um do outro ? Há mapas com uma região chamada “Bahia Tekenika” que os habitantes não chamam assim. Inclusive é muito parecida com o “teke uneka” que significa “não entendi do que você está falando”.

Filtro Desenho do lago Fagnano Huayno

O capitão reformado Allen Gardiner continuou a iniciativa da South American Mission Society. Viajou várias vezes para as ilhas Malvinas junto com o capelão George Despard e se estabeleceu na ilha Keppel. Era um lugar afastado, mas seguro para um inglês em terras argentinas. Assim que estabelecido foi diversas vezes para Tierra del Fuego evangelizar fueguinos e procurou em Wulaia a Jemmy Button, a sua esperança de um elo entre os civilizados e cristãos ingleses e os ímpios e selvagens yámanas. 

Ele queria que Jemmy mudasse para a ilha Keppel nas Malvinas, mas Jemmy se recusou. Não ia abandonar sua família, morar em outra terra e arriscar tudo a uma viagem perigosa de 700 km até Malvinas só para ser evangelizado.

Em uma das viagens em que George Despard não foi, Allen Gardiner acabou sitiado por yámanas e a tripulação morreu de fome.

Despard não desistiu e em 1859 se estabeleceu na ilha Keppel junto com toda sua família, determinado a evangelizar os fueguinos. Na família estava seu filho adotivo Thomas Bridges, resgatado e educado pelo capelão. 

Novas expedições se aproximaram várias vezes da ilha Keppel até Wulaia e alguns dos habitantes foram até as Malvinas e voltaram. Mas numa expedição sem o capelão e liderada pela capelão Philip Garland o navio não voltou por cinco meses, e ficou claro que algo errado havia acontecido.

Depois do resgate do cozinheiro Cole, o único sobrevivente, Jemmy aceitou ir até a ilha Keppel a notificar o que tinha acontecido. Jemmy Button e seu irmão Tommy foram acusados de organizar o ataque e Tommy de matar pessoalmente um dos colonos. Os marinheiros que sobraram tiveram que fugir até morrer lentamente de fome. Jemmy negou as acusações mesmo que a explicação de serem selknam ser fraca. A congregação decidiu não acusá-los formalmente mas os ingleses deduziram que mesmo Jemmy já ter conhecido inclusive o rei da Inglaterra, não era confiável e rejeitava ser civilizado e evangelizado.

O que na época era estranho na traição de Jemmy hoje parece óbvio: ele sempre foi Orundellico, queria ter sua família, na sua terra, mas para os missionários ingleses isso não fazia sentido. Para eles era mais do que óbvio que viver em pecado era impensável, que deambular seminu não era vida e que Jemmy estava traindo os ingleses e sendo teimoso. E provavelmente se sentiu no direito de usufruir da inocência e a clara posição em desvantagem dos colonos, e as coisas fugiram do controle.

O capelão George Despard se deu por vencido. Sem o apoio de Jemmy era impensável voltar a Tierra del Fuego. Continuar sacrificando sua vida e a vida de sua família começou a pesar na consciência. Pediu permissão para executar sua decisão de voltar, e a South American Mission Society autorizou sua volta a Inglaterra.

Mas o seu filho adotivo Thomas Bridges, com 18 anos na época, decidiu ficar e mudou o rumo dessa história.

Thomas Bridges foi abandonado ainda bebê na cidade inglesa de Bristol em 1844. Foi acolhido pelo capelão Despard e recebeu o nome de Thomas Bridges. Thomas porque levava um T na pequena roupa bordada. Bridges por ter sido abandonado numa ponte. No mesmo ano foi fundada a South American Mission Society que teve como primeiro secretário a Allen Gardiner, um antigo militar inglês convencido em evangelizar os fueguinos, e que o capelão Despard iria anos depois integrar com esse objetivo.

O capelão Despard e sua família, junto com Thomas, suas duas irmãs e mais outro filho adotivo deixaram Inglaterra quando Thomas tinha aproximadamente 12 anos. Foram viver na ilha Keppel, uma ilha do norte das Ilhas Malvinas. Thomas passou a sua adolescência nessas ilhas.

Ficou convencido de que, antes de trazer sua cultura, precisava compreender a cultura dos yámanas. Para isso pegou lições do seu idioma com um casal de yámanas que estava na ilha, Okoko e sua mulher Gamela. Junto com eles escreveu o maior dicionário yámana-inglês que se tem notícia contendo até 32 mil palavras e que começou nessa época como estudo fonético baseado no sistema de Alexander John Ellis e levou a sua vida completando e aperfeiçoando. O reverendo Stirling substituiu Despard, e ele junto com Thomas Bridges passaram a visitar as imediações dos yámanas regularmente, levando mantimentos, falando sua língua e sempre em companhia de outros yámanas ya estabelecidos na ilha Keppel. 

Thomas imaginou que suas atitudes amigáveis mudaram o relacionamento, mas também temos que pensar que depois dos ataques os habitantes das ilhas certamente temiam uma represália e por isso se mostravam menos agressivos e permitiam que eles os visitassem. Ele então aproveitou para conhecer a cultura dos yámanas, sua comida, costumes e língua.

Lago Fagnano Hualo

Inclusive percebeu não haver evidências que sustentem a informação sobre o canibalismo dos fueguinos. Há evidência dos yámanas comendo sua vestimenta em momentos de fome. E pensou nas circunstâncias em que os jovens yámanas deram essas informações. Sequestrados, tendo vivido mais de um ano numa terra estranha, obrigados a fingir que agora eram civilizados. Importunados uma e outra vez na viagem de volta a suas terras.

Atardecer Tierra del Fuego

Não sabemos se foi uma informação baseada em um sucesso extremo que eles vivenciaram ou foi só para reforçar o que seus captores queriam ouvir.  Tanto FitzRoy quanto Charles Darwin descreveram essa conversa, e foi suficiente para que estes desbravadores do último canto do mundo sejam considerados canibais e rebaixados para os últimos lugares na escala imaginária de civilização entre os povos, mesmo não havendo qualquer outra evidência dessa prática.

Após algumas viagens Thomas Bridges e o reverendo Stirling decidiram que podiam fundar uma missão e após procurar vários lugares se decidiram por Ushuaia (‘baía no fundo’ em yagán falado por yámanas).

Ushuaia tem uma baía tranquila, sem ventos fortes do oceano, com boa profundidade para os barcos e longe das terras que os yámanas consideravam suas. Na verdade estavam em terras dos selknam, onas. Mesmo assim os yámanas assentados com os missionários não foram incomodados por selknam, talvez por terem sofrido epidemias pouco tempo atrás.

Ushuaia prosperou como missão anglicana e como assentamento para os yámanas. Thomas Bridges viajou para Bristol diversas vezes para comunicar o seu progresso e ainda conhecer uma jovem e casar. Enquanto isso os países que disputavam a região, Chile e Argentina, chegaram num acordo e separaram a Ilha Grande de Tierra del Fuego em dois: a parte oriental chilena e a ocidental argentina.

O governo argentino percebeu que o seu território mais austral tinha como centro uma missão anglicana e decidiu reocupar a região para que não acontecesse o mesmo que com as Ilhas Malvinas, nunca recuperadas. Enviou uma expedição liderada pelo comandante Augusto Lasserre que chegou num acordo pacífico com Thomas Bridges de trocar a Union Jack para colocar a bandeira argentina, tendo em troca a segurança de que a missão seria reconhecida e apoiada pelo governo, colocaria uma prefeitura, e ainda ajudou a terminar um farol e vários sinais para proteger na perigosa navegação entre as ilhas.

Matadores em Tierra del Fuego

Começaram a chegar colonos na região, tanto ingleses quanto argentinos. O que levou a tentativas de criar ovelhas na região, ao mesmo tempo que chegou uma epidemia que começou a dizimar os yámanas. Não chegaram à conclusão se era tifoidea pneumónica ou sarampo mas foi a primeira de várias doenças que matavam tantos yámanas, selknam e kawésqar que Thomas Bridges saía de manhã com outros colonos só para fazer valas e enterrar famílias inteiras.

A região era difícil e inóspita, mas anos depois houve do lado chileno a descoberta de ouro que levou a suspeita de que Tierra del Fuego fosse uma nova Alasca. 

A notícia do ouro atraiu pessoas como Julio Popper, José Menéndez e Alexander McLennan, El Chancho Colorado. 

Julio Popper, de origem romeno e família judaica, era um famoso ingeniero com uma boa experiência em mapeamento geográfico, que com 28 anos já tinha estudado em Paris, trabalhado em Constantinopla e vivido em New Orleans. Se interessou pelo ainda pouco explorado sul do continente, explorou e mapeou várias regiões dos lados chileno e argentino do arquipélago fueguino e fez uma entusiasmada conferência geográfica em Buenos Aires onde fez dois fabulosos anúncios.

O primeiro foi uma das descrições oficiais do perro yaguán como ‘inúteis para a caça’ e servindo só como provedores de calor dentro das tendas selknam. Essa noção permaneceu por quase 100 anos, e foi desmentida somente a partir dos anos 80 pela pesquisa histórica assim como nos anos 2000 foi identificada sua origem pelo rastreamento de DNA de canídeos da América do Sul.

E também anunciou a provável existência de uma nova região rica em ouro e apta para exploração, e com isso conseguiu uma autorização para a exploração da região.

Perro Yagán
Ilustração de perro yagán

A descrição do perro yaguán como inútil demonstra a observação despectiva e preconceituosa para com os yámanas e outros habitantes originários de Tierra del Fuego. Como seria possível que nômades seminus fossem um dos poucos exemplos do continente de domesticação de raposas ? 

E não foi uma observação leviana. Julio Popper era um renomado geólogo, que fez descrições detalhadas de jazimentos de minério na ilha a partir de descrições que os mesmos habitantes fizeram. Mas não teve cuidado com o cachorro esquisito dos onas.

Julio Popper criou sua milícia e passou a explorar as terras em busca de ouro. Em geral precisava fazer isso nas margens dos rios e nas areias dos canais, lugares de caça e pesca para os selk’nam, kawésqar, yámanas e haushs. Começou então o último capítulo do extermínio dos fueguinos, desta vez abatidos a tiro de escopeta. Os massacres eram constantes e houve ataques onde morreram famílias inteiras, seus pertences saqueados e sua terra ocupada. Os aborígenes que tinham sobrevivido às doenças estavam sendo massacrados pelas milícias contratadas pelos colonos, ou pelos próprios colonos.

Popper chegou a cunhar sua própria moeda para bancar a expedição, o popper, que foi uma moeda de circulação no sul do país, em paralelo ao peso nacional que circulava no resto da Argentina.

Popper e seus matadores. No centro um selk'nam morto.

Muitos aventureiros chegaram à ilha buscando ouro, e os ataques eram constantes, além da disputa por terras. Julio Popper morreu em Buenos Aires sob circunstâncias nunca explicadas, e o seu corpo desapareceu antes de ser possível uma autópsia.

Anos depois José Menéndez reclamou as terras que eram de Popper e passou a explorá-las. José Menéndez era um español de Asturias pouco ou mal instruído que foi para Cuba tentar a sorte. Na época a ilha de Cuba ainda era colônia espanhola. Depois para Uruguai onde casou, e finalmente se instalou no sul do continente na atual Punta Arenas, cidade do lado chileno em frente à Ilha Grande de Tierra del Fuego formando com a sua esposa uma das dinastias da ilha, os Menéndez Behety. Convidou a missão salesiana, que manteve por anos. Mas após a morte de Popper passou a ocupar as terras dele e reclamar outras, e ficou claro que a missão era uma desculpa para sua presença na ilha.

José Menéndez contratou um capanga para ajudá-lo com o seu rebanho de ovelhas e evitar os ataques dos selknam. Era Alexander Maclennan, um bronco escocês apelidado de ‘chancho colorado’. Para el ‘Chancho Colorado’ índio bom era índio morto.

Ele perseguia os selknam que tentavam pescar nas imediações de alguma das estâncias do patrão ou roubavam ovelhas. Certa vez ele propôs uma trégua, e fez um banquete regado a muito vinho. Quando os selknam dormiam ele e seus pistoleiros contratados realizaram uma das maiores massacres na ilha, com ao redor de 300 vítimas, famílias inteiras de selknam mortas a tiro de espingarda. Vários outros ataques e perseguições se seguiram até começo do século XX e os selknam que sobreviveram tinham como opção se refugiar na ilha Dawson, ou morrer nas mãos dos pistoleiros como o ‘Chancho Colorado’.

Os selknam praticamente desapareceram até antes da segunda década do século XX enquanto a mineração e a pesca ocuparam a ilha, que muitos anos depois se converteu numa zona franca e abrigou várias industrias.

Quase um século depois, já nos anos 80, Chile e Argentina assinaram nessa época um acordo final para resolver outras áreas disputadas no arquipélago o que também pacificou e estruturou o desenvolvimento e o estudo da região. A lenta chegada das democracias abriu novamente a pesquisa antropológica para a redescoberta dos povos originários.

O perro yagán assim como a raposa malvinense são variações extintas de canídeos da América do Sul.

raposa malvinense
Ilustração da raposa malvinense

Kawésqar, selknam, yamanas, haushs desapareceram quase totalmente até serem encontrados descendentes no início dos anos 2000 onde uma mudança na política do governo de integração e de releitura da história passou a valorizar as culturas originárias, no caso do sul continente, tarde demais.

Referências :

Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo – Charles Darwin

El último confín de la tierra – E. Lucas Bridges

Los pueblos indígenas que viven en Argentina – Lucía A. Golluscio
Edición electrónica: www.proinder.gov.ar

KAWÉSQAR – Seria introducción histórica y relatos de los pueblos originarios de Chile – Christine Gleisner, Sara Montt (organizadoras)

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Por Outro Lado

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